quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Dois dias, uma noite: a invejável liberdade dos pássaros


Em um dado momento do filme Dois dias, uma noite, a protagonista Sandra almeja uma liberdade que não tem. “Queria estar no lugar deles”, ela diz insatisfeita. “Deles quem?”, pergunta o marido sem entender. “Dos pássaros”, responde sem pestanejar. Liberdade, igualdade e fraternidade foram os lemas basilares da Revolução Francesa que culminou com a declaração dos direitos civis dos homens. No entanto, no mundo contemporâneo, em plena era da valorização do consumo exacerbado e da competitividade extremada, nada mais distante da realidade do que a tríade humanista francesa.

Os irmãos belgas Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne nos lançam no mundo particular de Sandra, interpretada com delicadeza, melancolia e fragilidade por Marion Cottillard (Piaf - Um hino ao amor, 2007), uma operária que, após uma decisão interna de sua empresa, descobre que perderá o emprego. Apoiada por uma colega de trabalho, ela convence seu chefe a realizar uma nova eleição na qual será decidido o seu futuro. A partir de então, durante um fim de semana, a trabalhadora vai à casa de 16 funcionários para tentar dissuadi-los de receber um bônus de 1.000 euros a favor de sua permanência no cargo. É preciso observar que a luta da protagonista – com viés trágico de uma Antígona de Sófocles – não é só pela manutenção de sua dignidade, mas também pela conservação de sua saúde mental abalada por uma forte depressão.

O roteiro escrito pelos próprios irmãos cineastas é simples, porém, valoroso em suas intenções. A tentativa de demover os companheiros de labuta do recebimento do pagamento extra chega a ser cansativa para quem assiste devido à repetição do texto de convencimento. Entretanto, a ideia é exatamente essa, de que sintamos um pouco da circunstância extenuante pelo qual a moça está passando. Nada nos filmes dos Dardenne é por acaso. Sejamos atentos, por exemplo, às músicas que são ouvidas pelos personagens, sempre dentro de um automóvel em movimento. No interior do veículo, a sensação de claustrofobia parece aumentar, mesmo que as pessoas estejam procurando, por meio das melodias, desanuviar o peso de suas vidas. As próprias letras das canções são traduções do que eles estão sentindo, seja na voz de Petula Clark, que lamenta o mundo insensato em La nuit n`en finit plus, ou na voz de Van Morrison, que grita o refrão de Gloria numa alusão à mulher que supera obstáculos e não apenas em relação a um nome feminino. O automóvel, como símbolo máximo de uma sociedade de consumo, surge, aqui, como metáfora. Uma cápsula capitalista que nos aprisiona e sufoca sem ao menos nos darmos conta. Como contraponto à realidade sufocante de Sandra, ao fundo de diversas cenas, pássaros cantam alegremente, insetos murmuram ruidosamente e vozes esparsas de desconhecidos se espraiam pelo ar.

Nas entrelinhas da narrativa do longa-metragem há questionamentos profundos: como ser livre se necessitamos de um trabalho que nos pague um salário digno para que tenhamos, não apenas o básico da subsistência, mas qualidade de vida também? Como ser livre se dependemos o tempo todo da boa vontade do outro ou - muito além disso - de remédios tarja preta para podermos acordar, dormir e sorrir porque as pressões sociais, na maioria das vezes, são insuportáveis? Como ser livre se vivemos cercados pelo medo? Como podemos pensar em igualdade se para uns terem, outros precisam perder? Como ser fraterno se, no mundo da competição acirrada, o individualismo é a voz mais ressoante? Todas essas questões vêm à tona na medida em que a protagonista encontra seus colegas, e desses encontros surgem as emoções mais contraditórias, tais como, a culpa, o medo, a raiva, o desespero, a vaidade e a dúvida.

Muito mais que fazer um retrato da Europa atual na qual o desemprego é uma realidade tanto quanto é em países ditos emergentes como o Brasil, os cineastas auscultam o comportamento dos homens que, indubitavelmente, vêm lutando muito mais pela conquista de bens materiais do que por valores humanos. Não chegam a seguir a linha de pensamento de um Ingmar Bergman, cineasta sueco que, certa vez, disse não acreditar mais em revoluções. O que, de fato, os Dardenne fazem é nos mostrar que a tal revolução que tanto esperamos que aconteça no mundo, talvez, deva começar em nós, primeiramente, a partir de pequenos enfrentamentos contra a degradação humana. Pode parecer piegas, mas esta é uma importantíssima reflexão a ser engendrada por todos nós de maneira conscienciosa, ainda mais em tempos tão confusos como os que estamos vivendo, de passeatas esvaziadas de sentido ou com propósitos bastante inumanos. Nessa perspectiva perpetrada pelos diretores, é importante analisar o figurino que veste a protagonista. No primeiro dia de sua jornada, ela veste uma blusa rosa e, no segundo dia, uma blusa alaranjada. É como se a própria roupa, na tonalidade reforçada, refletisse uma aproximação maior com o vermelho que na bandeira francesa representa a fraternidade. Na segunda blusa há, estampados, pequenos laços interligados que, aos olhos menos atentos, podem passar despercebidos. Eu não disse que na obra dos Dardenne nada era por acaso?

Dois dias, uma noite, apesar dos contornos melancólicos, é um filme otimista de certa forma, pois chama a nossa atenção para pensarmos sobre nossas atitudes como indivíduos e sobre o mundo que nos cerca. É um grito de esperança, que nos impulsiona para a ação no sentido de não deixarmos nossas utopias de lado em sonhos de papel ou lemas de bandeiras. Faz-se necessário, de forma salutar e imperiosa, murmurar nosso protesto tímido à sombra do mundo errado, como diria Carlos Drummond de Andrade em seu poema Consolo na praia. Porque o movimento que tem ganhado mais força nos últimos tempos, com muita clareza, é o da desumanização. Quando vemos memes circulando nas redes sociais em que a sequência Liberté, Égalité, Fraternité é acrescida de um Beyoncé - cantora norte-americana, ícone de valores de uma cultura de massa -, muito mais que nos fazer rir, deveria nos provocar um estranhamento reflexivo. É inegável que algo está muito errado e que o mundo está resvalando para caminhos bastante obscuros, disfarçados sob a égide do sucesso, da felicidade, da beleza e do poder. Todavia, segundo a narrativa dardenniana, precisamos continuar acreditando no homem, nas utopias e no próximo, para podermos seguir adiante com uma ideia melhor de futuro. É preciso lutar com as armas que se têm - e no filme, o diálogo é a grande arma de Sandra (e me pergunto se não deveria ser a de todos nós?) - para que um dia, quiçá, possamos caminhar todos juntos com uma felicidade mais genuína estampada no rosto e sem precisar invejar a liberdade dos pássaros.


*Texto escrito para publicação na revista independente Ácido Plural, nº 3. 21 de novembro de 2015. Para conhecer, acesse o link abaixo:

http://acidoplural.wix.com/revista#!edicoes-anteriores/c1bf2

*Filme disponível em dvd.

domingo, 1 de novembro de 2015

Tubarão: uma aula de cinema escapista


Passados 40 anos de seu lançamento, Tubarão, além de ser considerado um clássico do cinema de entretenimento, é também uma das obras-primas do diretor Steven Spielberg. À época, com apenas 27 anos, o cineasta ainda não era o nome tão celebrado da indústria cinematográfica como é hoje e, por isso, dirigiu o filme com muitas dificuldades e orçamento baixo. São famosas as histórias de bastidores sobre os tubarões mecânicos feitos para o filme que nunca funcionavam a contento, sempre deixando a produção na mão na maior parte das cenas realizadas. No entanto, Spielberg contornou as adversidades das filmagens com muita criatividade como, por exemplo, no uso da câmera subjetiva que revelava a presença do predador em diversos momentos sem que houvesse a necessidade de mostrá-lo. Assim, a ação deu lugar ao suspense, o que acabou gerando uma atmosfera de perigo muito maior. Numa tela grande de cinema, com imagem restaurada e som de qualidade, as cenas se potencializam e a experiência cinéfila torna-se bastante interessante por nos dar um pouco da sensação que as plateias de 1975 sentiram numa sala escura.

É impressionante observar que, apesar do tempo decorrido, Tubarão ainda é muito bom, e revela muito sobre o fazer cinematográfico. Spielberg nos dá uma aula de cinema com seu longa-metragem, provando que, às vezes, a falta de grana pode ser o chamariz da criatividade. A despeito de ser um evidente entretenimento escapista, que se aproveitou bastante do sucesso que o livro homônimo de Peter Benchley fazia nas livrarias da época, não há como negar as qualidades da produção que conta a história de um balneário dos Estados Unidos que se vê às voltas com um ataque de tubarão em uma de suas praias. Na iminência do feriado de 4 julho, o prefeito da cidade só está interessado em encher a cidade de turistas e, por isso, ignora a potencial gravidade do perigo. Compondo os personagens centrais, há um policial com fobia do mar por causa de um trauma do passado, um oceanógrafo que descobre estar diante de um monstro de proporções nunca antes vistas e um pescador rude disposto a caçar o animal em troca de dinheiro. Considerado o primeiro grande blockbuster da história do cinema americano, o longa-metragem ultrapassou, pela primeira vez, a cifra de mais de 100 milhões de dólares nas bilheterias americanas. No Brasil, deteve a primeira posição na lista dos filmes com o maior números de espectadores do país até o ano de 1998, quando Titanic chegou aos cinemas desbancando o seu posto. Também foi o responsável por inaugurar o formato do calendário de lançamentos de filmes de Hollywood, reservando às produções de grande porte (leia-se: marketing agressivo) a temporada do verão americano.

Uma revisitação ao filme nos revela questões peculiares da produção como a sua famosa trilha-sonora composta por John Williams, que entrou para a história das composições musicais de suspense/horror - os acordes anunciando a chegada do tubarão próximo às vitimas se mantém intacta no imaginário dos cinéfilos. Vencedora do Oscar em 1976, o filme também recebeu os prêmios de montagem e som, e perdeu o de melhor filme para Um estranho no ninhoNo entanto, ouvindo o restante da trilha instrumental, nossos ouvidos de hoje não ouvem mais um som eletrizante e sim algo que beira ao cômico. Não foi à toa que, ao escrever sobre o filme na comemoração de seu quadragésimo aniversário, alguns críticos tenham dito que, com o olhar de hoje, Tubarão mais pareça uma comédia do que um filme de terror. Não estão enganados quando dizem isso, mas não é tão exagerado assim. O suspense ainda se mantém em muitas sequências como na bela cena de abertura na qual uma mulher entra na praia e se banha, completamente nua, sob a luz crepuscular do sol, sofrendo, logo em seguida, o primeiro ataque que desencadeia toda a narrativa. Ou na cena em que crianças brincam felizes na praia e o alarido das brincadeiras já nos deixam inquietos com a possibilidade de um ataque surpresa. É inegável, tudo é muito bem conduzido. Mas, na minha opinião, a parte mais problemática do filme é o final quando os três personagens masculinos, o policial, o oceanógrafo e o pescador adentram o mar para liquidar a razão do pânico na ilha. As cenas surgem um pouco arrastadas e, muitas vezes, perdem sua tensão se transformando em mera pescaria de um peixe grande.

O grande deleite de assistir esta produção icônica do cinema norte-americano após quatro décadas, é perceber que, intencionalmente ou não, Spielberg fez um filme que refletiu (e ainda reflete) a estupidez humana. Não podemos deixar de perceber a burrice do prefeito que, imbuído de interesses comerciais, ignora os riscos à vida dos turistas. Também não podemos deixar de constatar a espetacularização da mídia que, ao invés de afastar o público da praia, só aumenta a curiosidade de todos, noticiando os acontecimentos como se fossem um grande programa televisivo. A própria postura dos frequentadores da ilha revela esse desejo de ver a tragédia alheia como um verdadeiro espetáculo. Observe como as pessoas reagem quando uma possível vítima é atacada, ao invés de se desesperarem, gritando para salvá-las, por exemplo, eles, acomodados na areia, simplesmente, pegam seus binóculos para assistir o ataque, como se estivessem diante de um grande show. 

Analisando a narrativa com atenção, podemos perceber que a tríade de protagonistas masculinos representa, cada um a seu modo, uma postura diante daquilo que ainda não compreendem. O policial Brody (Roy Scheider) representa o medo, o pesquisador dos oceanos, Hooper (Richard Dreyfuss), representa o conhecimento e o pescador Quint, a ignorância, guiada pela ganância no dinheiro. Sendo assim, o tubarão torna-se metáfora dos mistérios que envolvem a vida e que despertam no ser humano os mais variados comportamentos. De frente para o desconhecido, podemos ser ora medrosos, ora curiosos, mas também, bastante presunçosos. No livro escrito por Benchley, o oceanógrafo morre num ataque, no entanto, no filme, Spielberg preferiu mantê-lo vivo. Assim, apenas o pescador interesseiro e machista - diga-se de passagem - morre, fruto de sua própria petulância. A grande caçada final ao tubarão não pode deixar de ser percebida como um reflexo da extrema ignorância humana, e é engraçado notar que a trilha-sonora supracitada, ouvida hoje, com uma sonoridade mais aventureira, resvalando para o cômico, parece refletir essa insensatez do homem em sua relação com a natureza beirando, assim, ao risível. Diante do peixe cartilagionoso de mais de 6 metros e de mordida poderosa - por vezes fatal - o homem torna-se um ser medroso e ridículo. Ao final da projeção, não há como não indagar: quem estava errado nessa história? O homem que invade o território do tubarão ou o tubarão que apenas goza de seu habitat? A resposta não me parece tão complexa assim.

O tubarão mecânico

O filme foi reexibido na sessão Clássicos Cinemark nos dias 24, 25 e 28 de outubro de 2015.

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Homem Irracional: uma provocação existencial


Há um tempo atrás, Woody Allen listou para o jornal britânico The Guardian os seus cinco livros preferidos. A lista, atraindo a atenção de fãs e curiosos, percorreu o mundo e agradou, principalmente, a nós, brasileiros, pois, na seleção - entre O Apanhador no Campo de Centeio de J.D. Salinger, a biografia do cineasta Elia Kazan e mais dois volumes - figurava o nosso celebérrimo Machado de Assis com Memórias Póstumas de Brás Cubas. No entanto, causou-nos certo espanto que no top 5 literário do criador de Noivo neurótico, noiva nervosa não constasse Crime e Castigo de Fiódor Dostoiévski. Afinal, ao longo de sua extensa carreira, o diretor norte-americano parece ter se inspirado um bocado na obra literária cujos filmes Crimes e Pecados, Match Point, O Sonho de Cassandra e, agora, o recém-lançado Homem Irracional são, evidentemente, influenciados pela narrativa russa.

O roteiro do 47° longa-metragem, escrito e dirigido por Woody Allen, gira em torno de Abe Lucas que, insatisfeito com os rumos que sua vida tomou, passa a conviver com uma devastadora depressão que o faz perder o interesse por tudo, incluindo as aulas que ministrava, os filósofos que idolatrava e as mulheres que amava. Sua visão de vida é tão pessimista que, sem nenhum receio, se arrisca numa perigosa roleta russa na frente de diversas pessoas. Tudo começa a mudar quando, acompanhado da aluna Jill - interpretada pela atriz Emma Stone, musa atual do cineasta - ele acaba ouvindo uma conversa alheia na qual uma mulher reclama da injustiça perpetrada por um juiz na decisão da guarda do filho dela. A partir de então, como um Raskólnikov (personagem central de Crime e Castigo), o professor Lucas cria sua própria filosofia e propósito de vida. Em sua tese, ele acredita que estaria fazendo um grande bem à humanidade, eliminando o lesivo juiz da face da terra. Sua linha de pensamento é a de que, sendo um estranho à situação vivida por aquela mulher, ninguém jamais imaginaria que ele, um professor de filosofia acima de qualquer suspeita, seria o assassino da autoridade jurídica. Ou seja, seria o crime perfeito. É claro que nem tudo sai do jeito que ele planejava, afinal, de perfeição, nada tem a vida.

Quando li algumas críticas sobre Homem Irracional, dei-me conta de uma certa irritação que se manifestara, de forma geral, entre os críticos de cinema devido à repetição de fórmula que vem acompanhando o trabalho do diretor nos últimos tempos. O argumento que usam, é sempre o mesmo: ele já fez isso melhor há anos atrás. Antes de mais nada, é preciso ter em mente que, prestes a completar seus 80 anos de idade, o cineasta não tem que provar mais nada a ninguém. Repetir-se, faz parte do seu show. Mas ao dizer tudo o que já tenha dito, me parece que, também, sempre acrescenta algo - senão inovador – no mínimo instigante. Todo filme de Woody Allen, nas palavras de um crítico americano do Hollywood Reporter, o qual não me recordo o nome, é sempre uma “provocação existencial”. Concordo com a afirmação. Em tempos nos quais praticar a reflexão parece uma tarefa enfadonha para a maioria das pessoas, Allen é sempre um sopro de provocação e inteligência não importa o que faça, como faça ou se faz com alguns pequenos descuidos. Sabe aquela cotação em estrelas que os jornais e revistas fazem para avaliar um filme? Então, tenho uma cotação específica para as produções do roteirista mais prolífico do cinema americano: cinco estrelas para os grandes filmes e quatro estrelas para todos os outros. Homem Irracional entra na lista do segundo grupo. Tornando mais claro: de ruim, tem muito pouco.

Tudo bem que ao criar a história do professor universitário assassino, haja repetições. Mas agora, creio que se coloque um pouco mais de fogo na lenha da fogueira do descontentamento. Abe Lucas é retratado como um homem que busca um sentido para a sua vida e nessa jornada desenfreada, de querer fazer algo grandioso a todo custo para significar a sua existência antes da morte, envereda por caminhos muito obtusos. Não bastou ser bem-sucedido na carreira que escolheu, não bastou praticar atos humanitários e de caridade ao redor do mundo, não bastou amar e ser amado, a incompletude ainda se fez presente. Ele só encontra o tal "sentido da vida" diante de um ato totalmente incoerente para quem sempre viveu de pensar à condição humana: tirar a vida de outra pessoa. O que o enredo faz, o tempo todo, é nos provocar com questionamentos bastante complexos. Precisamos mesmo buscar esse tal sentido da vida? Existe realmente um sentido para a vida? Estas são algumas das indagações que permeiam a obra. O protagonista, que antes pautava toda a sua vida na intelectualidade, incide num desencanto  para com o mundo que anula tudo aquilo que um dia aprendeu com seu repertório literário-filosófico. Tanto é que chega a dizer que o pensamento de Kant, Sartre e Kierkegaard é pura “masturbação verbal”. A defesa de que o intelecto não capta tudo sobre a vida e de que é necessário estar preparado para uma grande dose de imprevistos que interpretamos, dependendo do acontecimento, como sorte ou azar; A eterna insatisfação humana propulsora de atos bizarros e inesperados para satisfazer um ego medonho; O nosso desejo de poder, emulando o todo-poderoso, capaz de nos fazer acreditar que podemos mudar o mundo e a vida das pessoas (não é à toa que há algumas cenas diante do mar, refletindo a nossa pequenez diante do mundo); Tudo isso entra em cena e nos faz pensar. É provocação da melhor qualidade.

Com uma narrativa sobre um crime, Allen aproveita para fazer sua própria filosofia sobre a violência, expressada na fala da personagem de Emma Stone ao dizer que um assassinato é apenas o estopim para que outros aconteçam. A violência como gesto humano teria um efeito de reação em cadeia, um ato violento levaria a outro, num processo contínuo de perda de controle de si mesmo e dos efeitos do ato que se praticou. De fato, assim ocorre no filme. Buscando referências em Alfred Hitchcock, o qual o próprio Woody diz, em entrevistas, não ser muito fã, o enredo abarca questões psicanalíticas inquietantes. Por detrás da fachada de bons humanos, podemos esconder lados muito obscuros, perigosos e inumanos. A racionalidade, aqui, surge como uma máscara que esconde comportamentos inimagináveis. Alguém aí pensou no estudante quietinho que um belo dia entra numa escola e metralha toda a turma? Nos pais bondosos aos olhos da vizinhança que planejam e executam a morte do próprio filho? Nos filhos amáveis que matam os próprios pais? Ou ainda no admirável piloto de avião que resolve jogar, contra as montanhas, uma aeronave com 200 passageiros a bordo apenas com o intuito de entrar para a história e ser lembrado? A cena no parque de diversão em que Abe e Jill estão diante de um espelho que os distorcem, não surge apenas como efeito escapista para divertir, mas serve como imagem-metáfora desse lado "deformado" do ser humano, e a presença do livro A banalidade do mal de Hannah Arendt, também não aparece como mero objeto de cena, funciona como intertexto que se articula ao roteiro apresentado. Em eras tão apáticas, acho tudo isso incrível.

Na parte técnica do filme, merece destaque a belíssima fotografia, realizada por Darius Khondji, que tem trabalhado, freqüentemente, com o cineasta. Observe como a imagem solar preenche as cenas realçando o tom idílico da narrativa woodyalliana. Com uma estética bucólica, o filme nos remete às obras do Arcadismo no qual um certo artificialismo permeava toda a produção artística. Com esse efeito fotográfico rutilante, a realidade deprimente de Abe Lucas contrasta com a ambiência aprazível ao seu redor, provocando, ora uma relação homem infeliz X mundo feliz, ora uma relação homem feliz X mundo artificial. Sinceramente, acho que até merecia uma indicação ao Oscar 2016. O próprio comportamento da personagem Jill, que pratica aulas de equitação e piano, como uma mulher de séculos atrás, soma-se ao que aqui tento explicar. A trilha-sonora, outro elemento técnico muito bem executado, foge um pouco do convencional jazz que Woody sempre utiliza em seus filmes, ganhando, agora, um ar mais jocoso que também confronta-se com as angústias do protagonista. Perceba que nos créditos iniciais, não há música. Apenas os nomes do elenco e da produção surgem em fundo preto, o que nos prepara para embarcar numa trama com viés um pouco mais trágico. Ainda é importante ressaltar a interpretação de Joaquim Phoenix, um ator bastante versátil que conduz seu personagem com talento, escapando um pouco dos trejeitos dos personagens masculinos criados por Woody Allen que sempre são a mimese de seu criador. Phoenix insere um elemento de enfado à sua composição, conferindo mais substância ao homem que questiona o tempo todo a validade do mundo das ideias.

Problemas? Sim, há alguns. Por exemplo, estranhamente, todo o restante do elenco - excetuando Joaquim Phoenix - não ganha expressão ao longo da trama. A professora que se apaixona por Abe Lucas, vivida pela atriz Parker Posey, e o namorado e os pais de Jill não ganham profundidade e se perdem ao longo da história. Juntos, poderiam compor um interessante painel de seres humanos insatisfeitos com a vida, mas isso só aparece como sugestão. Mas este é um deslize perdoável perto do que a obra significa. Diminuí-la por isso, com o perdão do trocadilho, seria irracional. Os erros fazem parte da vida de qualquer pessoa (eu mesmo posso ter cometido muitos equívocos no texto aqui escrito) e no trabalho do cineasta, especificamente, muito do que se imaginava quando se escrevia o roteiro, não se concretiza durante as filmagens por diversos motivos. O próprio Woody Allen diz que não assiste aos seus filmes alegando que nunca ficam do jeito que idealizara no papel, e isso o mortifica. Dessa forma, é inegável que entre o pensar e o fazer há um abismo incomensurável e, na maioria das vezes, a teoria, quando em prática, tende a resvalar para o fundo do poço. (Os que viram o filme, me entenderam). Homem Irracional pode ser visto como uma obra falha e, por isso, ruim. Ou como uma obra falha, mas que tem muito a dizer. Depende do ponto de vista de cada um. Eu prefiro a segunda opção: é falha, tem muito a dizer e é sensacional.

Joaquim Phoenix sendo dirigido pelo mestre

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Missão Impossível: Nação Secreta - A ilusão do cinema


A capacidade que Hollywood tem de se reinventar, contando sempre a mesma história, é, de certa forma, admirável. Missão Impossível: Nação Secreta nos dá uma boa ideia deste poder de reinvenção, ou, melhor dizendo, “recontação”. Nesta quinta parte da série protagonizada por Tom Cruise, tudo o que foi visto nos filmes anteriores retorna. Para requentar a fórmula de sucesso: cenas mais exageradas e mirabolantes, situações mais conflituosas, acréscimo de locações paradisíacas e exóticas, e novos personagens coadjuvantes passam a fazer parte do arcabouço do novo longa-metragem do agente Ethan Hunt, que há 19 anos se mantém no imaginário cinéfilo. A direção é sempre modificada para que seja conferida uma marca autoral nos projetos, e é nesse ponto que os filmes da série ganham destaque. No primeiro, Bryan De Palma imprimiu charme e elegância à condução da história, baseada num célebre seriado de televisão dos anos 60. No segundo, o exagero descerebrado de John Woo fez da produção um engodo, que a marcou como a pior sequência. A inteligência e criatividade de J.J.Abrams foi a bola da vez na subestimada terceira aventura. No quarto trabalho, surpreendentemente, a trama se elevou em qualidade com a direção impecável de Brad Bird, um cineasta proveniente dos filmes de animação. Dessa vez, quem assume o leme é Christopher McQuarrie, que escreveu o roteiro do excelente Os suspeitos (The Usual Suspects), em 1995, e que, agora, realiza seu quarto filme roteirizado para Tom Cruise exercitar seus dotes de herói salvador do mundo. Talvez, por McQuarrie ser roteirista, acabamos acompanhando uma narrativa que tem grande importância para o decorrer do que assistimos, não sendo apenas um mero fiapo de ideia para engambelar o público.

Sobre a história, não há muito o que falar se você viu, ao menos, um dos filmes já produzidos até agora. Resumidamente, temos o agente secreto Ethan Hunt que trabalha para a IMF (Impossible Mission Force). Ele vê sua agência ser dissolvida (mais uma vez) e, para tentar salvar o mundo (mais uma vez) de um psicopata-terrorista-maluco (mais uma vez), que lidera uma agência extraoficial do governo chamada Sindicato, passa a agir praticamente sozinho, contando apenas com seus parceiros mais fiéis (mais uma vez). Entre um diálogo e outro, muita correria, suspense, pirotecnia, lutas e perseguição automobilística, bem ao gosto do freguês. Para os fãs do gênero, M.I é um prato cheio, pois, diferente de outros produtos hollywoodianos (Velozes e furiosos e Transformers), o filme investe na inteligência para nos trazer algo a mais, tornando a nossa experiência cinematográfica mais virtuosa e não apenas um enfadonho jogo de efeitos digitais desnecessários. Quem disse que diversão tem que ser algo desmiolado? E quando falo de inteligência aqui, não estou focando em filosofias e teorias herméticas, mas sim em criatividade na condução dos eventos de um roteiro. A confirmação do que aqui vos escrevo está numa bem construída cena dentro do imponente Viena State Opera, localizado na Áustria, na qual me detenho um pouco mais detalhadamente.

Aos olhos menos atentos, tudo pode parecer apenas uma bela locação para a criação de um momento eletrizante, no entanto, vai muito além disso. Observe: vários personagens entram em cena, cada um motivado por um interesse, sendo o principal deles, assassinar o chanceler do país. Todo o desdobramento acontece, na maior parte do tempo, na coxia do teatro - por trás das cortinas - enquanto uma ópera é executada para uma plateia lotada de figuras ilustres. A situação reflete muito bem a condição do agente Hunt, que age na clandestinidade, como se fosse um fantasma. A opera que está sendo executada no palco é a italiana Turandot de Puccini. Basta uma rápida pesquisa para conhecermos um pouquinho da composição e entendermos que ela não está ali à toa. Turandot, em linhas gerais, conta a história de uma princesa que, obrigada a casar, propõe três enigmas para os seus pretendentes decifrarem, caso contrário, perderão a cabeça. Ela faz isso com requintes de crueldade. Mas, um dos candidatos a mão da moça vence os enigmas, simplesmente, por ele ser o único que se identifica com o lado sádico da princesa. Entre Ethan Hunt e Isla Faunt - personagem feminina de grande importância para a trama e interpretada de forma competente pela atriz sueca Rebecca Ferguson - há uma relação dúbia de natureza bastante sádica. Ora eles estão jogando do mesmo lado, ora rivalizando. Ela é sedutora e, apesar de se revelar uma ameaça em potencial, Hunt, muitas vezes, se deixa seduzir, colocando a própria vida (ou a cabeça) em risco. O enigma no filme, às avessas, ocorre quando Hunt precisa saber quem de fato é Isla Faunt e a identificação ocorre pelo gosto que ambos tem pelo perigo.

Há mais elementos interessantes na cena aqui analisada. As armas, por exemplo, chamam a atenção por estarem disfarçadas de instrumentos musicais. Precisão no manuseio de ferramentas de trabalho é algo necessário tanto para o músico (Quem assistiu Whiplash, sabe do que estou falando) quanto para o atirador que não pode errar o alvo. A associação do mundo da arte com o mundo obscuro dos agentes secretos, refletido nessa ideia da exatidão, ganha destaque no momento em que a partitura musical surge com um ponto marcado em vermelho sobre uma nota, que será o exato momento em que a mulher terá que atirar no chanceler. Interessante observar também que, apesar de estarmos falando de precisão, tudo o que acontece nos bastidores tem um forte viés de farsa, um gênero tipicamente teatral. O arremate da longa cena, sem querer entregar tudo, não poderia fugir à ideia de uma encenação. Completando tudo isso, ainda ouvimos a trilha-sonora eletrizante de Joe Kraemer que é executada durante todo o filme, como se um maestro estivesse conduzindo o enredo de uma grande ópera, tal qual é a que está sendo executada no palco da ficção fílmica. O clássico tema instrumental de Missão Impossível é usado de forma genial, misturando-se a outras sonoridades até que, nos momentos certos, de mais intensidade, a música-tema explode com os seus famosos acordes já tão conhecidos.

Missão Impossível é pura diversão, e não espere nada além disso. No entanto, eu também não esperava e acabei me surpreendendo. Surpreender-se ou não, depende da forma como cada um assistirá ao filme. Como cinéfilo, é um deleite tentar descobrir as referências, os jogos propostos pelos diretores, as entrelinhas do roteiro e as mensagens subliminares utilizadas para a criação dos universos artísticos. Indo além da superfície de um roteiro de filme de ação, o que está incutido neste quinto episódio, é a ilusão que o cinema nos proporciona e Nação Secreta brinca com isso. O poder de iludir plateias que os cineastas possuem hoje em dia, é o mesmo que, outrora, os mágicos possuíam. A diferença é que enquanto a mágica clássica usava uma cartola e um coelho, os mágicos-cineastas contemporâneos usam computadores potentes e muita criatividade. Acreditamos no inverossímil porque diversos elementos (montagem, fotografia, narrativa, elenco, etc), nos conduzem a uma imersão num mundo à parte da realidade. Por isso, os exageros são perdoados quando assistimos a um filme como este, afinal, estamos sendo seduzidos por um encantamento toda vez que estamos diante de uma tela. Se isso não acontece é porque estamos diante de uma obra muito, muito, muito ruim. A piada com a máscara humana, que os agentes tanto usaram nos filmes anteriores - um recurso exagerado bastante gasto na franquia - surge agora para que sejamos, de fato, enganados. Assim, o artifício acaba sendo utilizado mais adiante de forma surpreendente - e mais inteligente - num momento pontual da história. A cena da caixa de vidro surge, bem ao final, como metáfora dessa ideia de iludir plateias para divertir, da mesma forma que faria um habilidoso ilusionista.

O grande "mágico" de Missão Impossível, entretanto, atende pelo nome de Tom Cruise que, aos 53 anos de idade, demonstra uma vitalidade de garoto. Porém, sua faceta mais elogiosa, aqui, é a de produtor. Por trás de todas as cenas bem filmadas, pensadas e urdidas está a mente esperta do ator/produtor, que soube escolher com precisão (a repetição da palavra é proposital) um diretor talentoso e bons atores coadjuvantes para manter o nível de seu show. Ele também não mediu esforços para entregar um produto de fôlego para as plateias mais jovens - afeitas ao escapismo - mas também ao público mais exigente e adulto, que quer se divertir sem ser feito de idiota. Missão Impossível é um acerto do cinema comercial num ano que teve Mad Max – Estrada da Fúria como melhor filme de entretenimento vindo das terras do tio Sam, segundo a minha opinião, é claro.


segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Uma nova amiga: a vida que vivemos e a vida que escondemos dos outros


A etimologia do vocábulo travesti vem do francês e significa disfarçado. A palavra está relacionada ao ato de uma pessoa se vestir com roupas do sexo oposto. A questão do travestismo, no entanto, pode ser levada a outras proposições se pensarmos na atitude de se vestir como um exercício do disfarce. Homens e mulheres dissimulam-se, todos os dias, no intuito de passar uma ideia daquilo que, aparentemente, são ou dizem ser. Nas roupas que se veste, sucesso, status, beleza, sedução e poder são alguns códigos inseridos. Estas informações são importantes quando nos deparamos com a projeção de um filme como Uma nova amiga que está em cartaz em pouquíssimas salas de cinema. 

O longa-metragem é baseado num conto da inglesa Ruth Rendell - a mesma que escreveu Carne Trêmula, adaptado para o cinema por Almodóvar - e conta a história de Claire, uma mulher que perde de forma extemporânea a amiga de infância, Laura. Abalada, promete ajudar, por toda a sua vida, David - o marido da amiga morta - e o filho recém-nascido do casal. A moça é bem-sucedida financeiramente e tem um amoroso casamento com Gilles, mas tudo começa a ruir quando ela descobre, acidentalmente, que David se veste de mulher dentro de casa. O argumento inicial usado para se defender, é de que ele faz isso para que o bebê não sinta falta da mãe. Mas, com o decorrer dos acontecimentos percebemos que há questões muito mais profundas relacionadas ao comportamento do protagonista.

François Ozon - um importante cineasta francês que aborda temáticas fortes e transgressoras e, geralmente, tende a criticar a superficialidade do comportamento humano, expondo seus fetiches, anseios, desejos, medos e hipocrisias - construiu seu 16° longa-metragem de forma tão sutil que é quase impossível não se envolver com tudo o que se assiste. O que vemos na tela, aos poucos, vai nos seduzindo de forma que não só adentramos às vestes dos personagens, mas também nos embrenhamos em seus domínios psicológicos. A questão da identidade de gênero é a tônica da obra, mas passa longe da categorização inevitável e limitante de "filme gay". O que, de fato, importa é o desnudamento do comportamento conservador que permeia toda a sociedade ocidental, muitas vezes, gerando a necessidade desesperada de dissimularmos aquilo que somos. E a forma como nos vestimos tem muito a ver com essas máscaras sociais que utilizamos para sobreviver no mundo. Não é à toa que uma das cenas se passe dentro de um shopping center, local no qual a maioria das pessoas alimentam seus ideários de “travestismos” num sentido mais amplo que essa palavra pode ter. Nesse enredo, as categorias de homem e mulher se embaralham nos revelando facetas mais complexas do ser humano, fugindo, felizmente, de visões preconceituosas socialmente defendidas e impostas.

Seguindo a cartilha de cineastas como Pedro Almodóvar e Alfred Hitchcock (o momento da revelação do travestismo me lembrou bastante da famosa cena final de Psicose, quando a irmã de Marion Crane descobre Norman Bates vestido como a mãe), Ozon - com linguagem própria - adentra à dualidade existente em nossas vidas: a vida a qual vivemos socialmente e a vida que escondemos dos outros. O embate entre conservadorismo e transgressão segura a trama até o final sem nunca deixar de ser interessante. Quando Claire descobre que David se traveste, ela profere: “Você é um pervertido”. Em outra cena, quando precisa sustentar uma mentira, David diz “Seria mais sincero se eu fosse de Virgínia”. São pequenas falas assim que dão conta da preferência que a maioria dos homens tem pela mentira descabida em detrimento da compreensão da complexidade do comportamento humano. O que delineia toda a trama é o fato de que aquilo que chamamos de perversão ou bizarrice, muitas vezes, tem a ver com uma visão de mundo bastante restrita e Ozon conduz tudo isso muito bem. Tanto a direção como o roteiro são excelentes e encontram nas atuações impecáveis de Anais Desmoustier e Romain Duris a confirmação de um excepcional trabalho cinematográfico. Ela, interpreta Claire de forma meio perdida e insegura em suas próprias emoções, desejos e convicções. Ele, confere fragilidade, sensibilidade e vitalidade ao seu David/Virgínia. Ainda há uma mescla de suspense, comédia e drama realizada de forma bastante coesa, sem nunca tender mais a um ou a outro gênero.

A cena que abre o filme é contundente na medida em que insere a plateia no universo inquietante o qual o diretor propõe nos apresentar. A cena mostra David vestindo e maquiando a esposa para o enterro, ao mesmo tempo a marcha nupcial toca como trilha-sonora. Há, nessa rápida introdução, elementos importantes para compreendermos e refletirmos sobre o que assistiremos. Pensando, além da visão rasteira defendida comumente sobre o casamento heterossexual, podemos ver a união matrimonial, tão celebrada no mundo, não apenas como um viver a dois, mas como uma intersecção de um universo masculino com um universo feminino no qual ambos os elementos distintos de cada grupo, muitas vezes, se confundem de forma inconsciente. Quem nunca escutou o comentário que diz que casais que convivem longos anos juntos tornam-se muito semelhantes um ao outro, inclusive no jeito de falar. Feminino e masculino, inevitavelmente, se confundem. Quando David perde Laura, não está perdendo apenas um corpo, ele está perdendo também algo do seu lado feminino, que ele acaba canalizando para seu comportamento ao se vestir de mulher. François Ozon problematiza vida e morte, começo e fim, junção e cisão, descoberta e repressão, e eleva tudo isso a patamares psicanalíticos com graça, intensidade e delicadeza, nunca deixando resvalar para o senso-comum.

Uma nova amiga, muito mais que se debruçar sobre a temática que abarca, fala do ato de se vestir como um mascaramento social originador de preconceitos e hipocrisias. E, encerrando o que aqui escrevo, recorro a uma frase cunhada pelo cineasta Pedro Almodóvar, já citado nessa resenha, que diz: “Os homens mentem, as mulheres dissimulam”. E nesse palco que é a vida somos todos atores, sejamos homens, mulheres, travestis, transexuais ou qualquer outra nomenclatura social que nos seja incutida. Certamente, um dos melhores filmes do ano.


quarta-feira, 22 de julho de 2015

Longevidade e efemeridade em Woody Allen


Woody Allen afirma que foi uma criança brincalhona e feliz. Mas, quando se deu conta de que um dia iria morrer, tornou-se uma pessoa muito rabugenta. O diretor nos conta isso como quem conta uma anedota pessoal e, logo em seguida, vemos o quanto aproveitou-se dessa história para falar da infância de Alvy, seu personagem no filme Noivo neurótico, noiva nervosa (Annie Hall). Numa cena em um consultório, uma mãe desesperada e irritada leva o filho ao psicólogo para tentar entender por que o menino desistiu de estudar ao descobrir que um dia ira morrer. O garotinho, com muita sapiência, argumenta não ver mais sentido em fazer o que faz se o fim de sua vida é algo inevitável. Woody Allen é tão genial que não sabemos se suas histórias, de fato, são parte de sua vida ou de uma persona engenhosamente criada para sobreviver ao mundo e à poderosa indústria do cinema americano.

Seguindo essa linha de contar os “causos” da vida e dos bastidores dos filmes do cineasta, Woody Allen: Um documentário faz um registro de mais de 60 anos de carreira (53 anos só no cinema) de um artista que começou a trabalhar como comediante nos anos 50, driblou uma timidez gigantesca, se tornou ator e, posteriormente, veio a se transformar num dos maiores cineasta norteamericanos de todos os tempos. Sem deslumbramento algum e com uma boa dose de sorte, o realizador de sucessos como A rosa púrpura do Cairo, Vicky Cristina Barcelona e Meia-noite em Paris nos conta sua particular história de vida que tinha tudo para dar errado, mas acabou dando muito certo. Seu estilo avesso a badalações e meio impaciente poderia lhe conferir um ar pedante, mas o que ocorre é o oposto e o diretor acaba se tornando uma figura muito engraçada e perspicaz. A passagem em que o vemos criticando o estardalhaço que as pessoas fazem em festivais como Cannes é hilária. Em dado momento, um repórter alemão lhe diz que toda a Alemanha ama Woody Allen e ele duvida: “Todos?”. E o interlocutor confirma: “Sim, todos”. E Woody com seu humor sarcástico rebate com certa provocação: “Mas são muitas pessoas”. A unanimidade de opiniões em um país, decerto, é uma impossibilidade e o diretor, com sutil inteligência, brincava com o lugar-comum do jornalista puxa-saco.

Assistindo ao documentário dirigido por Robert B. Weide, não é difícil testemunhar o que fez de Woody Allen um grande cineasta. Humor e inteligência foram as armas utilizadas para driblar dificuldades, para conquistar fãs, produtores e profissionais gabaritados do cinema, além de atores e atrizes consagrados que abriram mão de salários astronômicos para estar num filme do diretor. E completando sua receita de sucesso: produtividade, persistência, baixo orçamento, liberdade para fazer tudo do jeito que idealizava e uma visão de mundo muito peculiar. Com mais de 45 filmes - um feito raro na história do cinema - Woody Allen vem, ano após ano, lançando um longa-metragem atrás do outro, provocando, dessa forma, um evento quase que obrigatório no calendário anual de cinéfilos e admiradores. 

É incontestável perceber que a trajetória de tenaz atividade do cineasta está intrinsecamente ligada à sua vida. Vida e obra em Woody Allen são indissociáveis. Não é por acaso que todos os personagens masculinos que cria são sempre versões dele mesmo. Ele canaliza para seus roteiros todas as suas angústias, neuroses, medos, compulsões e desejos, produzindo, desse jeito, obras tão cheias de questões filosóficas e existenciais que é impossível não se reconhecer em ao menos uma de suas narrativas. O diretor mesmo justifica sua prolificidade se baseando na teoria da quantidade. Filma compulsivamente como quem faz terapia através do cinema na tentativa de escapar da própria realidade. Faz isso como quem deseja enganar a morte, que é uma de suas maiores obsessões. A longevidade, aqui, surge como resultado da obstinação de criar sem interrupções, convertendo-se, assim, num poderoso antídoto paradoxal contra a inevitável efemeridade da vida.

O documentário peca, no entanto, por tentar dar conta de 79 anos de uma mente criativa e instigante, algo quase que ingrato se observamos o quanto de história, tanto de vida quanto do ofício da profissão, o filme acaba não explorando em suas quase 2 horas de projeção. A fase pós-Match Point, por exemplo, na qual o cineasta passa a filmar fora dos E.U.A, por si só já renderia um filme. Contudo, como numa produção ruim de Woody Allen, que sempre acaba sendo algo acima da média, o documentário, mesmo falho, ainda assim, é um excelente programa a ser assistido.

E anote na agenda: dia 6 de agosto, nos cinemas, tem filme novo de Woody Allen. Homem Irracional (trailer abaixo) é estrelado por Joaquim Phoenix e Emma Stone e conta a história de um professor de filosofia que entra em crise existencial e tem na ideia de um assassinato um novo sentido para sua vida. Não dá para perder.


terça-feira, 7 de julho de 2015

O medo e a raiva de Nina Simone


Eunice Waymon foi uma garota pobre do sul dos Estados Unidos que sonhava em ser a primeira pianista clássica negra da história americana. Por força do racismo avassalador dos E.U.A, acabou sendo rejeitada pelo conservatório de música. Seu sonho se manteve, no entanto, mesmo diante de todos os empecilhos. Com a ajuda de uma professora aprendeu a tocar piano com perfeição, amava Bach. Para se sustentar e continuar estudando música clássica, começou a cantar - e não somente a tocar - em bares. Algo inimaginável para quem sonhava em se apresentar em salões classudos e teatros pomposos. De família religiosa, precisou driblar as reprimendas que surgiriam caso sua mãe soubesse que ela cantava “músicas do demônio”. Então, para não chamar a atenção, mudou o nome e, assim, surgiu Nina Simone. Numa boate, acabou conhecendo o homem que viria a se tornar o seu marido, o sargento de polícia Andrew Stroud que, encantado com a voz da moça, prometeu transformá-la numa das maiores cantoras dos Estados Unidos. Conseguiu, a custo de muito controle e exploração. A biografia de Eunice/Nina é uma das mais interessantes e importantes no que concerne ao universo da música norte-americana.

O documentário dirigido por Liz Garbus, disponibilizado para os assinantes do Netflix e que passou por vários festivais de cinema, faz um apanhado da carreira da cantora Nina Simone que fez de sua música uma mistura de jazz, blues, soul e música clássica e, mais tarde, acabou sendo reconhecida como uma das mais poderosas vozes contra o racismo inflexível que se espalhava por seu país. Por meio de gravações de shows, fotografias, depoimentos de pessoas próximas, entrevistas gravadas em áudio e trechos de cartas e de um diário, conhecemos um pouco mais sobre esta mulher forte, combativa, de opiniões polêmicas, um pouco melancólica e bastante controversa. Agenciada pelo marido, a autora de Felling Good e Misunderstood se transformou num sucesso absoluto. Vendeu muitos discos e fez amizade com os principais artistas e intelectuais da época, mas ainda assim sentia que algo estava lhe faltando. Queria mais, e sua condição de artista famosa a empurrou para o engajamento político na luta pelos direitos civis dos negros americanos. Queria ser uma voz que incomodava. E foi. Engajou-se com tanta veemência, que chegou a convocar os negros para um combate armado contra os brancos, num protesto com claro viés terrorista. “Vocês estão dispostos a esmagar coisas brancas”, proferia com fúria.  Sua atitude radical, contudo, afetou sua carreira e ela acabou perdendo contratos. Os shows tornaram-se escassos, os programas de televisão não a convidaram mais e os empresários a abandonaram. Um verdadeiro boicote à cantora, que nos induz a pensar no poder do sistema quando, incomodado com a opinião contrária à norma vigente, decide anular uma pessoa.

Duas grandes emoções conduziram toda a carreira e vida de Nina Simone, o medo e a raiva. Não é à toa que o documentário se inicie com uma entrevista da cantora na qual lhe perguntavam o que é ser livre, e ela respondeu com convicção que "ser livre é não ter medo". Sabia o que estava dizendo e falava com conhecimento de causa. À sua época, o recrudescimento do racismo foi violento. O atentado a uma igreja do Alabama foi um dos episódios mais chocantes e tristes culminando com a morte de quatro crianças. O fato fez com que a artista compusesse uma música chamada Mississipi Goddam, que provocou rebuliço quando lançada, sendo rejeitada por muitas gravadoras e rádios. Nina Simone foi uma das primeiras artistas da música americana a colocar palavrões em suas músicas. Ela esteve presente em momentos históricos importantíssimos dos Estados Unidos como o funeral de Martin Luther King e a perigosa marcha de Selma. (Este último episódio, recentemente, tornou-se um bom filme e foi até indicado ao Oscar 2015 de melhor longa-metragem. Recomendo.). A cantora viveu todo o medo da violência do preconceito fruto da ignorância do homem. Viveu também o medo da violência doméstica ao ser surrada pelo marido, como deixou registrado em desesperados desabafos em páginas de seu diário. Sabia, como nos versos do poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade, que "a dor era inevitável, mas o sofrimento opcional", assim sendo, em vez de se fazer vítima, transformou todo o medo em raiva e canalizou toda a dor para sua arte. “A raiva a sustentava”, explicou sua filha em depoimento registrado no filme. Sugiro que se coloquem fones nos ouvidos e ouçam as canções de Nina Simone. É impossível ficar imune à dor que ela exasperava de seu timbre vocal, ela foi a voz das feridas sangrentas do racismo de seu tempo, infeliz e aterradoramente, ainda abertas, até hoje.

O documentário é linear, sem inovações ao gênero. É fácil acompanhar a história dividindo-a em cinco partes. O início, pela dedicação da menina no intuito de realizar o sonho de se tornar uma grande pianista clássica, o auge do sucesso e do reconhecimento, a fase política, o ostracismo na África e o ressurgimento na França onde viveu até a morte. Porém, “What Happened, Miss Simone?” nos mostra uma artista como poucas. Artistas que fazem de sua arte algo além da performance de palco, que pensam o papel do artista no mundo em que vivem. “Como ser artista e não refletir a época?”, questionava-se Nina em uma entrevista. Hoje em dia, é tão raro uma concepção genuína do ser artista que não esteja relacionada somente à imagem de ser uma celebridade, que é emocionante ver o quanto Nina Simone respeitava seu ofício. É fascinante ver a postura de reverência que ela tinha ao entrar no palco se inclinando durante longos segundos enquanto o público a ovacionava. Como também era instigante o olhar com o qual fitava a plateia assumindo a seriedade de quem sabia o significado de estar ali. A severidade de seu rosto, no entanto, se dissipava várias vezes durante os shows e as câmeras flagraram e registraram o sorriso contente de Nina Simone, que, em comunhão com o público, revelava a menina que insertou no nome artístico. 

Já no final da vida, foi diagnosticada com bipolaridade o que explicava, em partes, sua agressividade, algo que lhe causou muitos problemas, principalmente, quando, ressentida da América, embarcou para a África e, posteriormente, para a Europa. Suas últimas entrevistas antes de falecer ganharam um tom amargurado e desesperançoso, dizia que sua obra fora irrelevante para o mundo. Compreensível que pensasse assim, afinal, ela cantou a dor de ser artista num mundo no qual a violência, a banalidade e o preconceito estavam sendo mais fortes que a força da arte. (Qualquer semelhança com a contemporaneidade não é mera coincidência). Sua voz, de fato, incomodou muita gente, como bem queria. Mas, muito mais que provocar, ela emocionou milhões de pessoas ao redor do mundo e fez pensar. Portanto, torna-se imperioso assistir este documentário, principalmente em tempos como o nosso em que o racismo se banaliza de forma tão absurda no Brasil e no mundo. Assistir “What Happened, miss Simone?” é atestar o quanto uma voz como a de Nina Simone - seja pela qualidade artística ou pela mensagem transmitida - faz falta, muita falta.


domingo, 12 de abril de 2015

Acima das nuvens: a implacável força do tempo


Duas mulheres são apresentadas ao público durante uma viagem de trem. Uma delas é uma célebre atriz que está se preparando para prestar uma homenagem a um grande dramaturgo, que foi uma espécie de mentor em seu início de carreira no cinema. A outra, é sua jovem assistente que resolve por seus vários telefones celulares os pormenores da vida da famosa estrela. Antes mesmo da chegada ao destino, as duas mulheres são surpreendidas com a notícia da morte inesperada do homenageado. A seqüência serve como prólogo do filme Acima das nuvens, novo trabalho de Olivier Assayas (Depois de maio), um dos melhores cineastas da França atual.

Após a seqüência que abre o filme, a conceituada atriz Maria Enders (Juliette Binoche) chega ao seu destino e acaba recebendo o convite de um importante diretor para realizar uma nova montagem de uma peça baseada no texto Maloja Snake de Wilhelm Melchior, o dramaturgo/diretor de cinema que seria homenageado. Enders participou da primeira montagem da peça como Sigrid, uma jovem impetuosa que seduziu uma mulher mais velha levando-a à beira da loucura e, posteriormente, à morte. Agora, na nova versão, ela interpretaria Helena, a personagem mais velha da narrativa. Maria Enders, no entanto, se sente insegura, pois, ainda em sua memória há a interpretação marcante que fez de Sigrid quando era jovem. Enquanto Maria passa o texto com sua assistente, Valentine - interpretada por Kristen Stewart - Maria e Valentine vão se tornando uma espécie de espelho de Sigrid e Helena. Em dado momento da projeção, o espectador já não sabe mais se os diálogos são parte da ficção ou da vida real das duas mulheres. É mais um trabalho incrível de direção de atores realizado por Olivier Assayas.

As atrizes foram corajosas ao aceitarem a proposta evidente do cineasta de trazerem um pouco (ou muito) de si mesmas para compor suas personagens no longa-metragem. A performance de Valentine realizada por Kristen Stewart acaba satirizando sua própria carreira como atriz em Hollywood e Juliette Binoche também se utiliza de sua imagem de atriz respeitada, que fez filmes com importantes diretores de cinema, mas que também enveredou pelo cinema de entretenimento. A química entre as duas atrizes é ímpar e a narrativa torna-se ainda mais complexa quando Maria conhece Jo-Ann Ellis (Chloe Grace Moretz), a atriz que assumirá o papel de Sigrid na nova versão teatral e que é famosa por estrelar filmes de super-heróis americanos e também por seus escândalos na mídia, o que inclui um vídeo íntimo vazado na Internet e cenas de agressividade. Olivier Assayas faz de Acima das nuvens um estudo do comportamento de artistas e celebridades, mas vai além ao dar conta de nuances do comportamento humano que são universais. Solidão, desejo e envelhecimento compõem a narrativa.O receio da personagem interpretada brilhantemente por Juliette Binoche é ambíguo demais e não sabemos o quanto disso provem de seu passado mal resolvido ou da cultura superficial que fortemente circunda o mundo em que vive. O universo efêmero e raso das celebridades é discutido no enredo desse filme. Basta observar a cena quando Maria conhece Jo-Ann e percebe que ela é uma pessoa muito diferente da imagem que a Internet atribuiu à garota ou então quando a atriz conversa com a assistente sobre a "psicologia" dos filmes de super-heróis, caindo numa gargalhada descontrolada. São passagens pontuais que deixam transparecer um pouco da opinião crítica do cineasta, mas que nunca chegam a julgar as condutas de suas personagens.

Há ao longo de toda a história, um verdadeiro embate de gerações revelado no interessante jogo de metalinguagem entre a peça que está sendo ensaiada, o filme que estamos assistindo e a vida real das atrizes que dão corpo às personagens do longa-metragem. Maria e Valentine estão sempre próxima do conflito; Uma não consegue entender muito bem o universo da outra, são vivências diferentes, mundos diversos, pensamentos distintos. É desses “mundos” que fala o diretor e isso explica, em partes, o título desta obra. Clouds of Sils Maria foi traduzido para o português como Acima das nuvens. Numa tradução mais ao pé da letra teríamos As nuvens de Sils Maria, menção ao local onde a atriz e a assistente se refugiam para ensaiar o texto e também residência do dramaturgo morto no início do filme. As nuvens do título faz evidente referência a implacável passagem do tempo, mas também podem ser compreendidas como sutis metáforas de mundos à parte, podendo estar relacionadas tanto ao mundo da criação do artista, quanto ao mundo das celebridades, ou ao mundo particular de cada pessoa, permeado de segredos íntimos inconfessáveis e situações difíceis de lidar. Acho que não seria inútil, e nem forçado, também pensarmos nas "nuvens virtuais" dos tempos atuais em que armazenamos milhões de informações particulares desde músicas, fotos e filmes preferidos até informações de trabalho e estudo que dizem muito sobre nós. Lembram quando dados sigilosos do governo e de artistas foram roubados e caíram na mídia causando um estardalhaço no mundo todo? A imagem da nuvem é uma simbologia poderosa do século XXI. 

Acima das nuvens é um filme lacunar, que requer atenção do espectador e que apela para sua capacidade interpretativa o tempo todo. Personagens surgem e desaparecem de cena sem que se deem muitas explicações. Isso ocorre com o ator Henryk, rival e provável amante de Enders. Com Rosa, esposa do falecido dramaturgo. E até mesmo com Valentine, a fiel escudeira de Maria Enders. O longa-metragem é construído com base em referências da linguagem teatral. Por isso, além de ser dividido em capítulos, a produção se utiliza de uma transição lenta, de uma seqüência para outra, que vai escurecendo pouco a pouco a tela, emulando as cortinas que descem e encerram um ato de uma peça. A fotografia também é executada com primor.

Os bastidores da fama e da criação artística, o jogo de aparências, os duplos e espelhamentos humanos, os desejos e motivações contidas, a crítica à Hollywood, o conflito de gerações, a força da interpretação, a juventude em contraponto à velhice, identidade e alteridade, tudo isso se converte em arcabouço desta obra complexa, sofisticada, inteligente e extremamente envolvente. A questão do tempo, aliás, é a chave para se entender a narrativa proposta pelo cineasta. A relutância de Maria Enders para interpretar Helena é a síntese de um comportamento bastante atual no qual é cada vez mais difícil aceitar a passagem do tempo como algo natural. No mundo das estrelas e astros do cinema isso se torna um fator de complexidade ainda maior, pois eles cultuam a juventude como um elemento de poder que parece conferir uma aura de eternidade às suas personas tornando-as, de algum modo, especiais. No entanto, como todos nós, artistas/celebridades são criaturas humanas e frágeis, passíveis de envelhecer, adoecer e morrer. Não há nada de imortal, nada de sobre-humano. As belas locações nos Alpes Suíços, que numa grande tela de cinema são impactantes, são o contraponto perfeito entre a grandeza do mundo e a pequenez do ser humano. Ao final, a solidão de Maria Enders encontra a solidão de Helena. Quando ela está se preparando para entrar em cena num teatro lotado, já não nos importa mais assistir a peça em questão, pois o que vimos até ali foi a força tragadora do tempo, as perdas, os embates, os amores, as vitórias, as derrotas, as ambiguidades, as inseguranças, as inquietações e o trabalho na arte transformando de forma inexorável a vida desta mulher. Assim como a vida transforma a todos nós.



sábado, 28 de fevereiro de 2015

Birdman: ou a grande farsa do cinema americano


Este texto contém spoiler.

A pergunta que não quer calar: como um filme que critica o sistema de produção hollywoodiano pode ganhar o maior prêmio do cinema americano se ele está preso a esse mesmo conjunto de regras que mantém a grande indústria cinematográfica funcionando? Imagine uma pessoa que trabalha numa grande empresa e resolve, de um hora para a outra, apontar os erros, falhas e comportamentos execráveis do modo de agir dessa firma. Como você acha que o patrão vai se comportar? Ele daria um prêmio de melhor funcionário do ano ao sujeito? Diante de inquietações cinéfilas, tentei refletir sobre o feito realizado por Birdman: Ou a inesperada virtude da ignorância. Eis as minhas observações.

Antes de tudo, é preciso abordar os aspectos relevantes da obra em questão. Filmado pelo cineasta mexicano Alejandro González Iñarritú, o filme foi considerado um divisor de águas na carreira do diretor. Responsável por dramas densos como Amores Brutos, 21 gramas e Babel, a comédia dramática surge como um trabalho atípico no seu currículo. O longa-metragem conta a história de um ator decadente interpretado de forma magistral por Michael Keaton. O projeto de Inãrritú é conduzido como se não houvesse cortes, uma técnica de excelência aplaudida mundo afora, mas que não é nenhuma novidade como bem apontou o crítico do IMS José Geraldo Couto. Alfred Hitchcock, em 1948, realizou Festim Diabólico utilizando a mesma ideia. Porém, o criador de Birdman usou a contento os falsos planos-sequência para dar conta do percurso labiríntico dos corredores do grande teatro e realizar uma sagaz analogia com a própria mente perturbada do protagonista. A trilha-sonora composta por solos de bateria também reflete o turbilhão de sentimentos e sensações que se passam no interior do personagem.

Birdman é criativo e sua força motora é a atuação de Michael Keaton. Ele interpreta Riggan Thomson que teve um passado glorioso como ator de Hollywood encarnando, por três vezes, o super-herói Birdman. O personagem foi tão forte em sua carreira que acabou por se tornar um alter-ego que o persegue o tempo todo como uma voz que clama para que ele faça a quarta sequência da famigerada produção. Entretanto, Riggan está disposto a retomar sua carreira como um grande ator dos palcos e não das telas. Por isso, esforça-se para montar uma peça baseada num conto de Raymond Carven, mas o que de fato entra em cena é o seu desejo de ser amado e respeitado pelo público, por suas mulheres e pela filha. Outrora um ator de grande sucesso (ele fez os dois Batmans de Tim Burton em 1989 e 1992), Michael Keaton há anos não emplacava um sucesso, muito menos um filme relevante. O ator, como poucos, soube tirar proveito dessa situação e fez piada da própria condição colocando-se como objeto de análise. Qual ator de Hollywood conseguiria processar, frente ao público, seus fracassos, decadência e vaidades? Pouquíssimos, seria a minha resposta com certa convicção. Uma pena que o ex-Batman do cinema tenha sido preterido com a perda do Oscar de melhor ator para Eddie Redmayne, que interpretou Stephen Hawking no sentimental A teoria de tudo. Redmayne é bom ator e se beneficiou pela transformação, mas Keaton, ao contrário, é pura atuação. Intensa, desesperada e insana.

Mas e a pergunta feita no início deste texto, como se responde? Ora, Birdman pode ser genial pelas atuações e por suas técnicas de filmagem, porém, o premiado longa-metragem é uma verdadeira farsa no que concerne ao seu conteúdo crítico. Conduzido com humor duvidoso e certo histrionismo, o filme parece nunca chegar ao cerne da questão que pretensamente quer apontar ou denunciar. A cena em que Riggan fica preso do lado de fora do teatro e precisa andar, apenas de cueca, entre os frequentadores de uma Times Square movimentadíssima pode ser engraçada, mas nada mais é do que aquele humor rasteiro que o cinema americano sabe fazer muito bem. O que assistimos com essa cena? Bem, alguns poderão acreditar que estão vendo uma crítica à decadência de Riggan. Porém, o que se vê, é muito mais a ideia da humilhação de ser velho, de estar fora de forma e de passar vexame no meio da multidão. Ou seja, é gratuito demais. Essa mesma graça que supostamente torna o filme divertido, acaba por enfraquecer o seu potencial de meter o dedo na ferida. Se num determinado momento da projeção ousa fazer alguma crítica, no outro momento anula tudo o que disse recorrendo a alguma piada ou clichê estapafúrdios. É um verdadeiro morde e assopra que não chega a lugar nenhum.

A cena final, no entanto, parece-me a chave para o entendimento da questão que aqui saliento. Sem coragem para finalizar mais incisivamente o seu trabalho, Inãrritú recorre ao fantástico. Ao se lançar pela janela de um hospital e se transformar literalmente no personagem que o perseguia, Riggan encontra a liberdade naquilo que mais o atormentava. Perceba: fica subentendido que a filha ao ver o pai morto também enlouquece e, daí em diante, passa a vê-lo como o Birdman. Tudo fica muito óbvio nesse desfecho: o que vence no final das contas é o sistema. É Hollywood e seus personagens exagerados, suas narrativas vazias e mirabolantes e seus efeitos especiais de ponta, que seduzem e alienam, que permanecem no imaginário e que se perpetuam mesmo depois da morte.  O que triunfa é o super-herói, não o homem. Essa é a mensagem incutida na obra com ares de respeitosa crítica inteligente, mas que não faz nada mais do que manter aquilo que torna Hollywood o que ela é. Birdman é a ilusão da crítica. Não há humor incisivo como, por exemplo, fazia Charles Chaplin ou como faz Woddy Allen. Não há provocação, não há incômodo, não há estranhamento, não há subversão. O filme apenas mantém a indústria cinematográfica perfeitamente intacta, sem arranhões. Iñarritú é perspicaz e sabe que para se manter no jogo precisa jogar com as cartas certas.

A indústria do cinema norte-americano é a mais agressiva do mundo e não deixaria passar em branco um filme forte e expressivo que abalasse suas estruturas. Algo mais vigoroso correria o risco de afastamento do cineasta dos grandes estúdios de produção. A meu ver, uma verdadeira crítica amplia o olhar sobre aquilo que observa, vira do avesso, sacode...Isso é tudo o que Birdman não faz. Criticar para manter o status quo é o mesmo que falar da boca pra fora, o resultado será sempre inócuo. Alejandro González Iñarritú é um cineasta espetacular, isso é inegável. Mas também é muito esperto. Se ganhou o Oscar foi puramente por enaltecer nas suas entrelinhas mais distraídas, o sistema que paga o seu valoroso cachê. Anote: no teste do tempo, Birdman será lembrado apenas como o filme que ganhou o Oscar ou que foi injustiçado pela ausência de uma estatueta dourada para a atuação de Keaton, mas seu conteúdo crítico será tão somente esquecido como os astros e estrelas que envelhecem na indústria e são postos fora de cena.


Michael Keaton sendo dirigido por Iñarritú

sábado, 21 de fevereiro de 2015

Os oito filmes indicados ao Oscar 2015

Amanhã é dia do Oscar e eu, como bom cinéfilo inveterado, fiz a lição de casa. Assisti todos os longas-metragens indicados para melhor filme. A ideia era resenhá-los aqui neste blog, mas como algumas histórias não me provocaram a ponto de merecerem um texto, desisti da empreitada. Abaixo, EM ORDEM DE PREFERÊNCIA, listo as produções com um breve comentário. 

1-     O Grande Hotel Budapeste: O filme do diretor Wes Anderson não é o favorito ao prêmio de melhor filme, mas deve sair com muitas estatuetas em categorias técnicas. Visualmente inteligente, com belo e detalhista trabalho de fotografia, direção de arte, figurinos e maquiagem, o longa-metragem tem uma deliciosa verve que nos remete aos filmes de Charles Chaplin; uma referência evidente nessa obra. Anderson é sempre genial ao misturar belos cenários, fotografia de cores vibrantes e uma atmosfera lúdica que faz com que seus filmes se tornem grandes obras de arte. A narrativa, dividida em três momentos, tem roteiro original desenvolvido a partir de textos do escritor vienense Stefan Zweig. Premiar "O Grande Hotel Budapeste" significaria reconhecer a arte de um cineasta de estilo  inconfundível. É o meu favorito.


2-     Whiplash – Em busca da perfeição: Furioso, vibrante, dinâmico e catártico, o filme do jovem diretor Damien Chazelle traz à tona a discussão dos limites de um mestre diante de seus pupilos. Como incentivar grandes talentos? Eis a questão. Em busca de um gênio, o rígido maestro Terrence Fletcher - interpretação que certamente concederá o Oscar de melhor ator coadjuvante para J.K. Simmons - encontra no jovem Andrew Neiman um excepcional baterista. Assim, o chama para compor sua famosa banda de jazz. A relação entre os dois é explosiva e o filme nos brinda com ótimas atuações, momentos intensos e uma vitalidade que está em falta nos dias de hoje, tanto na arte quanto na juventude. Em tempos de apatia, nada como um filme que sacode plateias.


3-     Boyhood - Da infância à juventude: Este é o favorito ao Oscar de melhor filme. Mas se ganhar, o que estará sendo premiado nada mais será do que a técnica. O diretor Richard Linklater conseguiu realizar uma obra curiosa sobre o tempo. Narrativamente, não é espetacular. Mas conseguiu um resultado plausível graças a dedicação de seus atores que se lançaram em filmagens ao longo dos últimos 12 anos e a uma montagem eficiente que garantiu a coesão do trabalho. É um daqueles casos em que a vida real se confunde com a arte. Acho um bom filme, mas muito superestimado.


4-     Birdman ou ( A inesperada virtude da ignorância):  Dirigido de forma exemplar pelo mexicano Alejandro González Iñarritú, o longa-metragem tem em seu falso plano-sequência e na atuação soberba de Michael Keaton a sua força. É um filme que critica com humor o sistema de produção hollywoodiano. Seu maior trunfo, no entanto, é o protagonista Riggan Thomson, um ator decadente em busca do reconhecimento nos palcos da Broadway. Qualquer semelhança com a carreira do próprio Keaton não é mera coincidência. Apesar dos elogios que vem recebendo, na minha opinião, o final careceu de melhor desfecho.


5-     A teoria de tudo: A cinebiografia do físico Stephen Hawking, muito mais que abordar a sua genialidade e inteligência, tem seu verdadeiro cerne na relação que o físico teve com a esposa Jane. Antes de mais nada, é bom saber que o longa-metragem do britânico James Marsh é uma história que fala da força inexplicável do amor. É romântico, emocional e sentimental, mas tem seu valor. A performance brilhante do ator britânico Eddie Redmayne é perfeita e em momento algum resvala para a caricatura. A atriz Felicity Jones, que interpreta a esposa dedicada de Hawking, também não deixa a desejar.



6-     Selma: O filme faz um recorte da luta de Martin Luther king pelos direitos civis dos negros norte-americanos na cidade de Selma, no Alabama. Durante o governo do presidente Johnson, que assumiu o posto após o assassinato de John Kennedy, a cidade sulista era uma das mais racistas e resistentes a conceder o direito de voto aos negros. Seja para lembrar do quanto o ser humano é capaz de negar a outro ser humano direitos básicos de uma sociedade, seja para rememorar a história do homem que muito fez pela justiça e humanidade daqueles que eram desprezados por aqueles que deveriam governar para todos e não apenas para um grupo específico, esse é um pequeno grande filme que merece ser visto.


7-     Sniper Americano: Clint Eastwood é um dos cineastas mais importantes do atual cinema americano e um dos mais prolíficos. Eastwood domina as técnicas do cinema como ninguém e conduz qualquer história com muita competência. "Sniper Americano" é a prova desse talento. No entanto, a produção é de um maniqueísmo assustador. A ideia contida no roteiro é a de que todo iraquiano é um terrorista. O tom patriota também não ajuda muito e o filme ainda foi acusado de humanizar o atirador americano Chris Kyle, um homem frio e calculista que ceifou, a sangue frio, a vida de cerca de 160 pessoas. Não precisa ser nenhum gênio para perceber que o verdadeiro terrorista da história é o próprio Kyle. Porém, isso não foi problema para o público norte-americano que abraçou o filme transformando-o num grande sucesso de bilheteria. Como escrito em artigo na revista Carta Capital: é a história de um herói ou a glorificação da violência americana no Iraque?


8-     O Jogo da Imitação: O filme é cheio de boas intenções, mas se transformou num grande equívoco cinematográfico. A história de Alan Turing que inventou aquilo que foi considerado o primeiro computador, tenta se desenvolver em duas partes distintas que se conectariam em algum momento da projeção. Ao mesmo tempo em que o matemático tenta desvendar códigos secretos nazistas para tentar dar fim a II Guerra Mundial, Turing precisa esconder sua homossexualidade, comportamento condenado à época e que acarretaria sua prisão se descoberto. O filme tenta intercalar essas duas camadas: os segredos que precisam ser revelados e os segredos que precisam ficar escondidos. O resultado, entretanto, é insatisfatório. As atuações são descabidas resvalando para um tom piadista que enfraquece a tensão vivida pelos personagens. Apenas em uma cena ou outra conseguimos vislumbrar traços de verdadeira intensidade e entrega, e todos estão nas mãos do ator Benedict Cumberbatch que protagoniza a obra. Dos oito, é o mais fraco.