domingo, 1 de novembro de 2015

Tubarão: uma aula de cinema escapista


Passados 40 anos de seu lançamento, Tubarão, além de ser considerado um clássico do cinema de entretenimento, é também uma das obras-primas do diretor Steven Spielberg. À época, com apenas 27 anos, o cineasta ainda não era o nome tão celebrado da indústria cinematográfica como é hoje e, por isso, dirigiu o filme com muitas dificuldades e orçamento baixo. São famosas as histórias de bastidores sobre os tubarões mecânicos feitos para o filme que nunca funcionavam a contento, sempre deixando a produção na mão na maior parte das cenas realizadas. No entanto, Spielberg contornou as adversidades das filmagens com muita criatividade como, por exemplo, no uso da câmera subjetiva que revelava a presença do predador em diversos momentos sem que houvesse a necessidade de mostrá-lo. Assim, a ação deu lugar ao suspense, o que acabou gerando uma atmosfera de perigo muito maior. Numa tela grande de cinema, com imagem restaurada e som de qualidade, as cenas se potencializam e a experiência cinéfila torna-se bastante interessante por nos dar um pouco da sensação que as plateias de 1975 sentiram numa sala escura.

É impressionante observar que, apesar do tempo decorrido, Tubarão ainda é muito bom, e revela muito sobre o fazer cinematográfico. Spielberg nos dá uma aula de cinema com seu longa-metragem, provando que, às vezes, a falta de grana pode ser o chamariz da criatividade. A despeito de ser um evidente entretenimento escapista, que se aproveitou bastante do sucesso que o livro homônimo de Peter Benchley fazia nas livrarias da época, não há como negar as qualidades da produção que conta a história de um balneário dos Estados Unidos que se vê às voltas com um ataque de tubarão em uma de suas praias. Na iminência do feriado de 4 julho, o prefeito da cidade só está interessado em encher a cidade de turistas e, por isso, ignora a potencial gravidade do perigo. Compondo os personagens centrais, há um policial com fobia do mar por causa de um trauma do passado, um oceanógrafo que descobre estar diante de um monstro de proporções nunca antes vistas e um pescador rude disposto a caçar o animal em troca de dinheiro. Considerado o primeiro grande blockbuster da história do cinema americano, o longa-metragem ultrapassou, pela primeira vez, a cifra de mais de 100 milhões de dólares nas bilheterias americanas. No Brasil, deteve a primeira posição na lista dos filmes com o maior números de espectadores do país até o ano de 1998, quando Titanic chegou aos cinemas desbancando o seu posto. Também foi o responsável por inaugurar o formato do calendário de lançamentos de filmes de Hollywood, reservando às produções de grande porte (leia-se: marketing agressivo) a temporada do verão americano.

Uma revisitação ao filme nos revela questões peculiares da produção como a sua famosa trilha-sonora composta por John Williams, que entrou para a história das composições musicais de suspense/horror - os acordes anunciando a chegada do tubarão próximo às vitimas se mantém intacta no imaginário dos cinéfilos. Vencedora do Oscar em 1976, o filme também recebeu os prêmios de montagem e som, e perdeu o de melhor filme para Um estranho no ninhoNo entanto, ouvindo o restante da trilha instrumental, nossos ouvidos de hoje não ouvem mais um som eletrizante e sim algo que beira ao cômico. Não foi à toa que, ao escrever sobre o filme na comemoração de seu quadragésimo aniversário, alguns críticos tenham dito que, com o olhar de hoje, Tubarão mais pareça uma comédia do que um filme de terror. Não estão enganados quando dizem isso, mas não é tão exagerado assim. O suspense ainda se mantém em muitas sequências como na bela cena de abertura na qual uma mulher entra na praia e se banha, completamente nua, sob a luz crepuscular do sol, sofrendo, logo em seguida, o primeiro ataque que desencadeia toda a narrativa. Ou na cena em que crianças brincam felizes na praia e o alarido das brincadeiras já nos deixam inquietos com a possibilidade de um ataque surpresa. É inegável, tudo é muito bem conduzido. Mas, na minha opinião, a parte mais problemática do filme é o final quando os três personagens masculinos, o policial, o oceanógrafo e o pescador adentram o mar para liquidar a razão do pânico na ilha. As cenas surgem um pouco arrastadas e, muitas vezes, perdem sua tensão se transformando em mera pescaria de um peixe grande.

O grande deleite de assistir esta produção icônica do cinema norte-americano após quatro décadas, é perceber que, intencionalmente ou não, Spielberg fez um filme que refletiu (e ainda reflete) a estupidez humana. Não podemos deixar de perceber a burrice do prefeito que, imbuído de interesses comerciais, ignora os riscos à vida dos turistas. Também não podemos deixar de constatar a espetacularização da mídia que, ao invés de afastar o público da praia, só aumenta a curiosidade de todos, noticiando os acontecimentos como se fossem um grande programa televisivo. A própria postura dos frequentadores da ilha revela esse desejo de ver a tragédia alheia como um verdadeiro espetáculo. Observe como as pessoas reagem quando uma possível vítima é atacada, ao invés de se desesperarem, gritando para salvá-las, por exemplo, eles, acomodados na areia, simplesmente, pegam seus binóculos para assistir o ataque, como se estivessem diante de um grande show. 

Analisando a narrativa com atenção, podemos perceber que a tríade de protagonistas masculinos representa, cada um a seu modo, uma postura diante daquilo que ainda não compreendem. O policial Brody (Roy Scheider) representa o medo, o pesquisador dos oceanos, Hooper (Richard Dreyfuss), representa o conhecimento e o pescador Quint, a ignorância, guiada pela ganância no dinheiro. Sendo assim, o tubarão torna-se metáfora dos mistérios que envolvem a vida e que despertam no ser humano os mais variados comportamentos. De frente para o desconhecido, podemos ser ora medrosos, ora curiosos, mas também, bastante presunçosos. No livro escrito por Benchley, o oceanógrafo morre num ataque, no entanto, no filme, Spielberg preferiu mantê-lo vivo. Assim, apenas o pescador interesseiro e machista - diga-se de passagem - morre, fruto de sua própria petulância. A grande caçada final ao tubarão não pode deixar de ser percebida como um reflexo da extrema ignorância humana, e é engraçado notar que a trilha-sonora supracitada, ouvida hoje, com uma sonoridade mais aventureira, resvalando para o cômico, parece refletir essa insensatez do homem em sua relação com a natureza beirando, assim, ao risível. Diante do peixe cartilagionoso de mais de 6 metros e de mordida poderosa - por vezes fatal - o homem torna-se um ser medroso e ridículo. Ao final da projeção, não há como não indagar: quem estava errado nessa história? O homem que invade o território do tubarão ou o tubarão que apenas goza de seu habitat? A resposta não me parece tão complexa assim.

O tubarão mecânico

O filme foi reexibido na sessão Clássicos Cinemark nos dias 24, 25 e 28 de outubro de 2015.

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