quarta-feira, 30 de abril de 2014

Noé: arte e religião


Muito antes de estrear nas salas de cinema, quando ainda se encontrava em filmagem, “Noé”, novo trabalho do cineasta Darren Aronofsky, vinha marcado sob o rótulo de polêmico. Antes mesmo de sua premiere, países como Bahreim, Catar e Emirados Árabes já tinham vetado a exibição do filme em seus territórios. A argumentação contra a obra era uma só: “Noé” deturpava a milenar história bíblica. Não é difícil compreender toda a polêmica em torno do longa-metragem, afinal, estamos falando do livro mais célebre da história do mundo. A Bíblia, que vem acompanhada da alcunha de livro sagrado, manteve ao longo de séculos seu poder de influência no imaginário dos homens. E é óbvio que vaguear sobre suas páginas, com alguma liberdade de contestação, é visto, do ponto de vista religioso, como algo condenável. Assim sendo, não foi nenhuma surpresa que em uma pesquisa feita nos EUA, 98% do público que assistiu ao filme emitiu opinião negativa contra a produção, alegando ter sido um erro a modificação da narrativa original. Logo, conclui-se: o que imperou foi a opinião religiosa e não a apreciação artística.

            No entanto, Darren Aronofsky, que dirigiu e escreveu o filme, não tinha como objetivo que seu trabalho fosse visto como um filme religioso na concepção stricto sensu da palavra. O projeto faz parte de uma HQ, criada pelo próprio diretor, na qual ele recria o universo do personagem do Velho Testamento. O filme é só um desdobramento desse projeto. E por isso, há um olhar diferenciado e ampliado para a trama apocalíptica, como ocorre em toda recriação. Portanto, para apreciar uma obra como esta, é preciso, antes de mais nada, vê-la como arte. Foi dessa confusão entre o que é do âmbito da arte e o que é da esfera da religião que proliferaram a maior parte das críticas negativas direcionadas à produção. Não quero dizer com isso que “Noé” seja um excelente filme, pelo contrário, trata-se de um produto mediano, mas que, em partes, revela-se bastante interessante. Ao reimaginar a história do homem incumbido de salvar a humanidade de um dilúvio devastador, o cineasta utilizou-se de toda liberdade criativa e inventividade para entregar uma reimaginação do mundo de Noé, baseada no enredo original e não uma versão literal. Ou seja, aqui, estamos falando do Noé de Aronofsky. Estamos discursando sobre uma adaptação, que pode ou não ser fiel ao texto- base.

            A Bíblia como uma narrativa lacunar e cheia de dubiedades permitiu que o homem, ao longo dos tempos, interpretasse suas histórias. Mas, para os paladinos da verdade que insistem em deter a palavra única nas vozes com que berram em seus templos, a Bíblia parece um livro unívoco. Pensar dessa forma é tornar nulas as belas metáforas existentes nas escrituras e que, se não são verdades absolutas, ao menos encerram reflexões sobre a condição humana. Foi exatamente nessas lacunas deixadas pela Bíblia que Aronosfky enveredou artisticamente, criando e recriando de acordo com a sua imaginação. E nisso não há pecado algum. 

           Numa leitura da história original da arca de Noé, que aparece de forma episódica no Gênesis, e imbuídos de algum espírito de curiosidade, é provável que algumas dúvidas surjam e nos façam questionar, por exemplo, como ele construiu a arca de proporções gigantescas sem conhecimentos náuticos prévios? Ele teria recebido ajuda para isso? Quem teria ajudado? E se houve ajuda, por que essas pessoas não foram salvas do dilúvio? Outra questão: como os animais sobreviveram sem que atacassem uns aos outros? Essas são questões que o Bíblia não responde e serão perpetuadas pela eternidade. Por motivos de coerência da narrativa cinematográfica, Aronofsky tenta encontrar algumas soluções para as questões acima, mas com isso não quis, em momento algum, encontrar uma verdade inequívoca. Trata-se apenas de um exercício imaginativo e isso, temos de convir, é próprio da arte.

        O Noé da Bíblia é descrito como “um homem justo e íntegro entre seus contemporâneos e que andava com Deus”. O Noé de Aronofsky, interpretado pelo ator Russel Crowe, não deixa de ser como o descrito, mas é, acima de tudo, um homem cheio de contradições, assim como todos nós. É humano, e por isso, capaz de atos de solidariedade, como salvar e adotar uma menina ferida (personagem que problematiza ainda mais a história), e, por outro lado, é capaz de atitudes egoístas como deixar que uma outra moça seja pisoteada, somente para salvar o filho. O Noé de Aronofsky é um pai de família que diante da missão de salvar a espécie humana passa a carregar um imenso fardo. Quem não enlouqueceria diante do encargo de salvar o mundo? O criador, ao delegar a um homem comum uma responsabilidade sobre-humana, exige deste força descomunal, dedicação vigorosa e coragem descomedida, o que na prática não é nada fácil. 

            A abordagem fílmica do mito bíblico fala ao homem de nosso tempo ao contar a história de alguém que busca por respostas mais claras e diretas do “divino” e, por não obtê-las, acaba por resvalar num fundamentalismo perigoso e excludente. Quantos “Noés” não estão por aí, dentro de igrejas mundo afora, prevendo catástrofes, castigos celestiais e interpretando à suas maneiras as escrituras sagradas e com essa atitude bradam aos ventos suas verdades absolutas argumentando com um conclusivo: “Está escrito na Bíblia”. O longa-metragem é uma reflexão bastante inteligente sobre o poder de interpretação humano tão deteriorado por nossa espécie. É por isso que a narrativa cinematográfica não pretende ser uma cópia fiel da original na qual o criador fala diretamente com a criatura. “Noé”, o filme, problematiza o comportamento humano em seu sentimento coletivo, em sua humanidade, em seu instinto de sobrevivência e em sua fé cega. Perceba como o personagem, no intuito de cumprir o proposto pelo todo-poderoso, acaba por se tornar, paulatinamente, um homem cruel e imponderável. Diante da epopeia orquestrada por um criador punitivo e caprichoso, o Noé de Aronofsky torna-se obcecado e beira à loucura, o que o leva a gestos violentos. Qualquer semelhança com os tempos atuais não será mera coincidência.

            Entretanto, apesar dos momentos reflexivos que gera, a produção, vista pelo conjunto dos elementos que a compõe, descamba num filme irregular. O texto que cria possibilidades discursivas interessantes e relevantes é o mesmo que entrega cenas que impossibilitam resultados mais satisfatórios, principalmente no que concerne ao entretenimento. Os anjos caídos em forma de monstros de pedra, por exemplo, é uma das escolhas mais pueris do roteiro. O mesmo acontece com a cena do reflorestamento mágico que serve como uma fonte de madeiras para a construção da arca. Não quero dizer com isso que elementos fantásticos sejam um problema, a própria história bíblica tem em seu cerne um elemento fabular bastante acentuado. Mas escolhas como essas acabam por enfraquecer a trama em suas questões mais sérias, que acabam se perdendo em meio a um clima escapista de fantasia bobinha.

            A culpa, no entanto, não pode ser creditada apenas na conta do cineasta. Darren Aronofsky, depois da repercussão de “Cisne Negro”, teve a possibilidade de realizar um trabalho com mais grana e, de quebra, voltar a um dos temas pelo qual mais se interessa, a obsessão humana. Essa temática está presente, praticamente, em todos os seus trabalhos desde “Cisne Negro” e “O lutador”, passando por “A Fonte da vida” até chegar ao seu primeiro filme, o independente “Pi”. Porém, para realizar uma produção de valores estratosféricos teve que abrir mão de sua verve autoral para dar conta de algo mais comercial. É por se prender demais à cartilha do entretenimento hollywoodiano que “Noé” acaba se tornando um filme ruim.

            Embora fique aquela sensação de que poderia render mais, o longa-metragem é oportuno pelas questões que traz em suas entrelinhas narrativas e mesmo que isso esmaeça em meio a escolhas estapafúrdias, não podemos deixar de nos ater a uma importante reflexão acerca da recepção da obra pelo público, provocada pelos comentários relacionados ao filme que tomaram conta das redes sociais. Aqui, creio eu, há um problema gravíssimo de apreciação artística de filmes. O público que lotou as salas de cinema para ver a produção milionária, não conseguiu, em grande parte, distinguir que, o que estava sendo representado ali, diante de seus olhos, era arte e não religião. Isso se traduz numa evidência preocupante: o público perdeu o sentido do que seja uma adaptação e, o pior, confunde o que vê nas telas com a própria realidade. Não preciso nem dizer que falta cultura, falta leitura crítica, falta espírito curioso e investigativo, entre tantas outras faltas que deveriam ser supridas para que uma pessoa pudesse apreciar uma obra de arte satisfatoriamente. O que, no caso do enredo aqui comentado, significa levantar pontos positivos e negativos de um trabalho e não apenas falar mal por puro despeito blasfêmico.

           O cinema norte-americano, é claro, tem colaborado exponencialmente para que surja esse tipo de público desprovido de massa cinzenta, afeito às emoções mais imediatas. E quando os conceitos de arte e religião tornam-se indistintos, polêmicas fajutas surgem e Hollywood, conhecedora dessa falta de discernimento, tira proveito disso na forma de muitos milhões que enchem os cofres dos estúdios. Se “Noé” seguisse a história bíblica a contento (como muitos desejavam) estaríamos diante de um filme didático, o que faria dele apenas uma ilustração da história original e, por isso, viria ao mundo para nada dizer. Didático, limitado, acrítico e vazio é tudo o que o cinema jamais pode ser. Aliás, isso é tudo que nenhuma arte deve ser.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Festival Varilux de Cinema Francês 2014


Com 16 filmes de longa-metragem integrando a seleção, a nova edição do Festival Varilux de Cinema Francês traz às salas brasileiras de cinema a produção cinematográfica francesa mais recente. São grandes sucessos de bilheteria, filmes elogiados pela crítica e obras inéditas. O festival ainda trará ao país o cineasta Jean-Pierre Jeunet, do famoso “O fabuloso destino de Amélie Poulain”, que irá lançar seu novo trabalho intitulado “Uma viagem extraordinária”, e a atriz Isabelle Huppert, que atua em dois longas: “Um amor em Paris” e “Uma relação delicada”. Ainda haverá uma retrospectiva dos filmes de Jeunet e a exibição do clássico “Os Incompreendidos” de François Truffaut. O evento vai de 09 a 16 de abril. A programação completa está no site oficial do festival.


Deleitem-se!