sábado, 9 de junho de 2012

Branca de Neve e o Caçador

(Esse texto contém spoilers)

"Espelho, espelho meu. Existe alguém neste reino mais bela do que eu?". A célebre pergunta feita pela rainha-má diante do espelho na perene história de "Branca de Neve e os sete anões", ainda hoje, em pleno século XXI, abarca questões prementes da humanidade. Nessa secular obra, a vaidade é o tema principal e nas mãos do diretor estreante Rupert Sanders ganhou uma bem-vinda releitura épica e sombria. Esses contos fantásticos, apesar de destinados ao público infanto-juvenil, nada têm de ingênuos. São histórias que abraçam uma série de assuntos relevantes a todos nós, desde que passamos a pensar e a refletir sobre a nossa condição nesse mundo. A busca da beleza eterna, a imortalidade e o medo da velhice são as entrelinhas que dão um viés atemporal ao texto dos irmãos Grimm. Se num momento, a trama pode ser abordada apenas como a luta entre o bem e o mal, mas aprofundadamente pode ser lida como uma narrativa sobre as inquietações humanas que perturbam o homem de forma universal.

Ao olhar-se no espelho, a madrasta de Branca de Neve, muito mais que questionar a própria beleza, está questionando a si mesma sobre a passagem do tempo. É óbvio que existirão outras mulheres mais jovens e belas do que ela, afinal, o tempo passa inexoravelmente para todos. Diante da resposta do espelho, que no filme se personifica à frente da rainha, vemos a raiva estampada no rosto da personagem, que diante da finitude da vida desespera-se. Assim, como no mito de Narciso, a vilã deseja possuir a beleza alheia e daí surge a sua ruína. A megera, ao ver o tempo passar implacavelmente, dotada de poderes mágicos, absorve vidas num ciclo ininterrupto. Destrói o mundo em busca de um objetivo. Aqui, circunscreve-se uma metáfora sobre o poder. Sua força provém da juventude roubada, contudo, sua fraqueza advém do desespero. A grande moral dessa história é que a a luta do homem contra a efemeridade da vida é vã e toda beleza é sempre finda.

A mais nova moda hollywoodiana são as adaptações de famosos contos de fadas para às telas do cinema. Assim, "Chapeuzinho Vermelho" teve duas adaptações. Uma na forma de animação em "Deu a louca na chapeuzinho" e outra recriada para jovens sob o título "A garota da capa vermelha". "Rapunzel", outro famoso conto, também ganhou vida nos pixels de um computador na animação "Enrolados". Agora, é a vez de "Branca de neve e os sete anões" ganhar novas versões. A primeira, "Espelho, espelho meu" mais voltada para à comédia, e estrelada por Julia Roberts, foi um verdadeiro fiasco. A segunda, no entanto, teve destino mais próspero. Se o filme não é brilhante a ponto de entrar para o hall de grandes obras cinematográficas, ao menos é uma produção que não faz feio diante da proposta de entreter o público.

"Branca de Neve e o Caçador" acerta em cheio ao dar um enfoque mais épico e aventuresco à história da menina atormentada pela madrasta. O enredo do filme conta a história de uma jovem (Kristen Stewart) destinada a ser rainha que tem o trono roubado ardilosamente pela nova esposa de seu pai. Após anos presa à uma torre, a princesa consegue fugir e acaba na perigosa Floresta Negra, onde muitos que se aventuraram jamais conseguiram sair vivos. Sabendo que a enteada é a sua única forma de se manter enternamente jovem, Ravenna (Charlize Theron) envia um caçador (Chris Hemsworth) para resgatá-la, lhe prometendo trazer a esposa falecida de volta à vida. É claro que ele acaba percebendo que Branca de Neve é mais vítima do que poderia supor e que fora enganado pela maléfica soberana, assim, acaba por ajudar a heroína. Não há grandes novidades no roteiro, como se pode perceber. Aliás, vários clichês tomam conta da película a todo o momento, mas isso não interfere na produção de forma mais significativa, afinal, sabemos muito bem como é a história original do conto e diante de uma adaptação não seria nada fácil fugir desses clichês.

A produção de "Branca de Neve e o Caçador" é esmerada. Direção de arte, cenários, figurinos, maquiagem, efeitos visuais e fotografia mereciam ao menos uma menção ao Oscar do ano que vem. Tudo é milimetricamente bem pensado, bem executado, o que faz o filme torna-se agradável aos olhos. Observe a sequência em que Branca de Neve e os sete anões chegam ao mundo das fadas onde criaturas fantásticas surgem diante de nossos olhos. São cenas de grande beleza (produzidas para serem apreciadas numa tela grande de cinema, que fique bem claro) e que não negam ao filme sua aura de conto de fadas. A dimensão épica que invade cada parte do filme o torna ainda mais palatável e menos ingênuo. A empreitada hollywoodiana está mais para "O Senhor do Anéis" do que para "Crepúsculo" e isso é mais que um alívio para quem está cansado de ver histórias melosas voltadas para adolescentes. A atuação de Charlize Theron como Ravenna é um deleite. A atriz consegue através de seus olhos uma interpretação intensa que vai além do medíocre, algo que aconteceria facilmente caso outra atriz sem carga dramática fosse escalada para o papel. Charlize consegue por um simples olhar demonstrar proporcionalmente sadismo e serenidade caracterizando perfeitamente a personalidade delirante de sua personagem que, ao sorver vidas para ficar jovem, destrói toda a esperança de um povo. Levanta-se a questão: Quantas vidas são necessárias para alimentar um devaneio?

O longa-metragem, na minha opinião, não é de forma alguma ruim, mas poderia ser bem melhor diante das possibilidades que caberiam dentro do roteiro. Poderia, por exemplo, ser mais sombrio, sem medo de sangue (atenua-se a carnificina em função do público-alvo), poderiam ter escalado outra atriz para o papel de Branca de Neve e não a atriz-sensação do momento como chamariz para as bilheterias, em virtude de sua fama nos filmes da série "Crepúsculo". Imaginei Anne Hathaway, perfeita para o papel. Mas para os padrões de Hollywood, ela já deve ser considerada velha demais. O roteiro poderia dar espaço para questões existenciais mais profundas, não precisaria ser um Fellini, afinal, estamos falando de entretenimento, mas dar ao filme tintas mais reflexivas, não seria nada mal. Aliás, é no roteiro que residem os maiores problemas. Há grandes e imperdoáveis furos que um bom observador notará facilmente: como explicar a demora do espelho, sendo ele onisciente, para identificar Branca de Neve como uma ameaça ao reinado e beleza de Ravenna? E como Branca de Neve aprendeu tão rapidamente a nadar, cavalgar e lutar se ela ficou quase a vida inteira presa numa torre? São pequenos detalhes não explicados na intenção maldita de transformar a protagonista em uma guerreira. Tim Burton incorreu no mesmo erro com seu enfadonho "Alice no país das maravilhas". Creio que isso se explica pelas mudanças do comportamento feminino nos tempos atuais nos quais as mulheres desejam ser representadas de maneira mais ativa e menos vitimizadas.

É o mesmo roteiro com furos, que também cria situações bem interessantes, como por exemplo a cena da mordida na maçã. O roteirista criou uma situação logo no início do filme que nos distraí habilmente para o derradeiro momento. Nos diálogos de alguns personagens há lapsos do que a narrativa poderia ser, como num momento no qual um dos anões fala ao caçador que ele tem olhos, mas não vê. Ou na cena em que um personagem diz: "A morte poupou a vida dela" e Branca de Neve retruca dizendo: "A morte não poupa ninguém". Passagens como essas revelam a base do conto que foi adaptado: a mortalidade é inerente ao ser humano e a beleza pode ser um tormento. Há uma cena que exemplifica muito bem essa última afirmação. Particularmente, achei muito criativa, a ideia da aldeia onde vivem pessoas que provocam cicatrizes em seus próprios rostos na esperança de se manterem imunes à falta de tino da monarca.

Beleza, poder, obsessão, velhice e morte. As temáticas presentes nesse enredo revelam a longevidade do texto. Numa sociedade narcisista como a nossa, não há temas mais atuais. Clínicas de estética lotadas, desespero diante das primeiras rugas, ilusão de que a velhice nunca vai chegar e quando chega: negação total. Qualquer semelhança, não será mera coincidência. É claro, estamos falando de um filme hollywoodiano e não de um tratado sobre a condição humana, mas se as questões aqui abordadas foram trabalhadas pelo longa-metragem, muito mais pelo potencial literário do conto, pode-se dizer que, apesar das falhas, temos um filme digno de ser assistido.

Dica: não fique só com o filme. Após assisti-lo, procure o conto original e leia-o. Vale o conhecimento.