sábado, 11 de maio de 2013

"Amores Imaginários": um exercício visual sobre o olhar do apaixonado.



Até que ponto o amor não seria uma ilusão,  algo inventado pelo homem para ocupar nossas mentes e que no decorrer do tempo foi se entranhando em nossas vidas de forma que mal compreendemos os porquês desse sentimento? Desde o Romantismo, o mundo ocidental foi lançado num emaranhado de situações idílicas e sublimes que nos fez alimentar o desejo de que, em algum momento de nossa existência, amaríamos e seríamos amados. Em tese, essa relação de completude pelo amor estaria relacionada à uma ideia de perfeição. Ao encontrarmos o outro, a tal cara-metade, nos tornaríamos perfeitos, plenamente felizes e realizados. O Romantismo como movimento que dominou as artes no século XIX ficou para trás. No entanto, suas marcas permaneceram indeléveis até hoje. É desse amor romântico desdobrado em uma felicidade pertencente apenas ao plano das idéias, sem relação alguma com a realidade, que  provém os sentimentos mais contraditórios e consternantes. Certa vez, li algo que dizia que a idealização é a irmã siamesa da frustração. Nada mais sábio poderia ser dito sobre o amor romântico.

Depois desse preâmbulo analítico, me atenho ao filme “Amores Imaginários” do jovem cineasta canadense Xavier Dolan. O rapaz de apenas 24 anos é dono de um estilo que vem marcando sua recente filmografia. Ele escreveu seu primeiro roteiro aos 16 anos e aos dezenove filmou seu primeiro trabalho intitulado “Eu matei minha mãe” (recomendadíssimo) laureado com três prêmios do Festival de Cannes. Recentemente, lançou seu terceiro filme chamado “Lawrence Anyways” (Filme que ainda não assisti). Todos os longas-metragens que realizou foram selecionados para festivais e chamou a atenção da critica mundial. Isso só aconteceu porque Dolan é um daqueles diretores que ao modo Tarantino, Almodóvar e Woody Allen faz da tessitura de seus filmes um trabalho bem particular. Dia desses, conversando com uma amiga, ela me perguntou qual dos dois primeiros filmes do Xavier Dolan eu gostava mais. Fiquei num impasse, pois acho os dois filmes muito bons, diferente da crítica especializada que elogiou muito o primeiro filme e dividiu opiniões com o segundo. Eis que vos escrevo sobre a experiência de assistir "Amores Imaginários".

A película tem um roteiro bastante trivial. Trata-se de um triângulo amoroso no qual dois grandes amigos, Marie (Monia Chokri) e Francis (Xavier Dolan) se apaixonam pela mesma pessoa, o jovem Nicolas (Niels Schneider), um rapaz enigmático que não se sabe ao certo sobre sua orientação sexual. Tanto os protagonistas como nós, expectadores, ficamos sem saber se ele corresponde aos interesses da dupla. Também não fica claro se o desejado sabe dos planos dos desejantes e dessa forma estaria jogando com o sentimento alheio a seu bel-prazer. Durante a projeção acompanhamos a jornada dos dois amigos na missão de conquistar a atenção e quem sabe o amor do moço de cabelos loiros encaracolados, que ora parece pender para um lado, ora para o outro, sem nunca deixar clara as suas reais intenções, se é que ele as têm.

A grande sacada desse jovem cineasta/ator/roteirista é justamente tragar o seu expectador para dentro do universo desses amigos enamorados. Por isso, o abuso de cores durante toda a projeção é uma marca constante. Desde as roupas que usam até os cenários tudo vem destacado em cores fortes que dão o tom ora apaixonado, ora dramático que as cenas exigem. A fotografia é belíssima e realça os exageros da busca amorosa. Lembrei-me, com as devidas diferenças, do filme “Moulin Rouge” de Baz Luhrmann que, junto aos seus diretores de fotografia e arte, criou um mundo de cores desmedidas para falar do amor romântico. O Moulin Rouge é todo demasiadamente excessivo. A estilização de “Amores Imaginários” é um trabalho semelhante. O roteiro é essencialmente visual, ou seja, a imagem tem mais poder que a palavra. A narrativa trata do mundo de fantasias no qual os apaixonados chafurdam a alma sem pensar em conseqüências. Todo mundo que já se apaixonou alguma vez na vida sabe do que estou falando aqui. Para um apaixonado, o mundo é outro. Tudo ganha um contorno diferente. Os cinco sentidos ficam apurados de um jeito bastante peculiar. O diretor aproveita-se dessas sensações confusas para nos entregar um filme no qual gestos, silêncios, respirações e intimidades dizem muito sobre nós mesmos e sobre o amor. É nesse estranho mundo, vivido por aqueles que se apaixonam perdidamente, que Xavier Dolan está dando enfoque. Daí, esse universo criado para o longa-metragem ser artificial, idílico, onírico, teatral e colorido. E o comportamento dos dois amigos que brigam pela atenção de Nicolas ser individualista, egoísta, histérico e até meio bobo. 

Boa parte da crítica especializada viu nessa representação dos personagens algo vazio. Para esses críticos, o diretor fez um retrato estúpido da juventude, um trabalho empobrecido de criatividade que se apoiou apenas em referências do cinema para criar um filme estiloso. Outros (incluo-me entre esses), viram justamente o contrário. As referências estão inevitavelmente lá e em boa parte é resultado da mente cinéfila de Xavier Dolan. Cenas que lembram “Jules e Jim” (clássico de Truffaut) e “Os sonhadores” de Bernardo Bertolucci, citações à “Bonequinha de luxo”, referência ao estilo poético de fazer cinema de Wong Kar-Wai, tudo isso permeia a obra. Mas não vejo nisso um sinal de empobrecimento e sim de conhecimento. A construção de um estilo por meio de referências é algo bastante recorrente em jovens cineastas no mundo contemporâneo.

A grande temática do filme é a idealização do amor e por isso a câmera do realizador tenta representar a todo o momento o olhar do apaixonado. Por isso, as disputas da dupla beiram às brigas infantis algo que fica evidente na banal cena em que se engalfinham no campo durante uma viagem que fazem juntos. A obsessão leva o entusiasta do amor a ver a pessoa desejada por um viés de encantamento e perfeição. Daí a comparação feita com a estátua de Davi durante uma sequência do filme na qual se contrapõe a imagem de Nicolas com o reflexo da famosa obra de Michelangelo. O amor tem dessas coisas, trata-se de um arrebatamento inexplicável. Decorrente desses excessos do sentimentalismo amoroso, o exagero torna-se  uma das marcas do longa-metragem assim como é do amor platônico. Assim temos, durante toda a projeção do filme, muita câmera lenta, músicas tocando a todo o momento, abuso de cores, caras e bocas em excesso, cenas repetitivas. Tudo isso pode ser interpretado como algo que colabore para o mau andamento do filme, mas para uma história que aborda a dimensão excessiva do mundo dos apaixonados, a meu ver, tudo se encaixou de forma bastante competente.

Além da história desse triângulo amoroso imaginário que norteia o filme, o enredo é entremeado de momentos em que Marie e Francis se encontram com estranhos. As cenas são apresentadas em cores fortes que tomam toda a tela (vermelho, amarelo, azul e verde) e ao fundo ouvimos a música clássica de Bach. O contraste entre a música pungente e a coloração intensa concede à cena um tom dramático e melancólico resultante da frustração dos protagonistas que procuram no sexo sem compromisso a válvula de escape para o sentimento doloroso da paixão não correspondida.

“Amores Imaginários” tem um viés de comédia romântica e pode ser visto como uma fábula sobre o amor que alimentamos por alguém e que muitas vezes está longe de ser recíproco. Muitas vezes nos apaixonamos por uma ideia de amor e não necessariamente pela pessoa objeto dessa adoração. É aí que reside o perigo das relações amorosas. O filme é uma experiência visual cinematográfica, que pode ser boa para alguns ou entediante para outras. Tudo vai depender da forma como cada um captará as mensagens que ali estão presentes. A produção ainda vem permeada por declarações de estranhos que em tom documental falam sobre suas decepções amorosas. Nessas cenas que interrompem a narrativa, frustração, dor, decepção, humilhação e vergonha são sentimentos que tomam conta dos ex-apaixonados, assim como será inevitavelmente para os nossos dois protagonistas que numa bela cena final dividem o mesmo guarda-chuvas.

Amores Imaginários
(Les Amours Imaginaires - Canadá / 2010)
Direção: Xavier Dolan
Roteiro: Xavier Dolan
Elenco: Xavier Dolan, Monia Chokri, Niels Schneider e Anne Dorval.
Duração: 95 minutos




sexta-feira, 3 de maio de 2013

"Depois de maio": cinema, música, artes plásticas, drogas, sexo e...política.


Um professor de literatura do ensino médio lê um trecho de um  livro de Pascal que diz: “Entre o céu e o inferno só existe vida, que é a coisa mais frágil do mundo”. A cena se encerra e somos levados a uma outra na qual presenciamos um grupo de jovens anarquistas que movidos por um intenso desejo de liberdade e revolução vão às ruas brigar por seus ideais. A violência toma conta da tela em impressionante sequência. A polícia opressora manifesta-se como bem conhecemos: tiros, bombas de gás lacrimogênio, chutes e espancamentos. A barbárie está instalada e o que é humano, racional e sensível vai por água abaixo em segundos. Ali, não há vida, não há humanidade, não há respeito. Assim, inicia-se o filme “Depois de maio” do diretor francês Olivier Assayas. Uma produção que lança um olhar sobre a juventude revolucionária depois de maio de 68, um dos momentos mais importantes do movimento estudantil francês.

O longa-metragem acompanha o jovem idealista e politicamente engajado, Gilles. Como todo jovem de sua idade (e que viveu na França entre os anos 70 e 60) ele se preocupa com questões relacionadas à coletividade ao mesmo tempo em que precisa definir os rumos de sua própria vida. Não diferente dos amigos passa por diversas descobertas concernentes à idade, o que inclui sexo, drogas e rock n´roll. O olhar do protagonista é um olhar perdido e ao mesmo tempo curioso em relação à vida. Ele tem o desejo ardente de mudar o mundo e por isso não titubeia na missão de enfrentar o repressor sistema mesmo que para isso arrisque várias vezes a própria vida. Mas no íntimo, é um jovem como outro qualquer com vontades próprias e sonhos que são somente dele. Seus desejos pessoais se refletem em seu talento para a pintura, o objetivo de ser cineasta e o gosto pela música. Tudo misturado ao viés político que dominava os tempos de outrora. 

O grande dilema do filme é exatamente esse: coletividade versus individualidade. Como equilibrar as duas coisas? Nos dias atuais, é fácil observar o quanto a questão da coletividade tem perdido espaço para os interesses particulares. Muito disso, certamente, é fruto de um capitalismo selvagem que cada vez mais deteriora as relações humanas. Mas, como mostra o filme, houve um tempo em que as pessoas, principalmente os jovens, eram engajadíssimos. Eles acreditavam e lutavam por um mundo melhor. No entanto, esse projeto revelou-se uma utopia e a frustração veio logo a reboque. Talvez isso explique a geração pós-moderna apática que temos hoje. Somos frutos de uma geração frustrada e isso acarreta conseqüências complexas e difíceis de entender numa simples análise.

Um dos pontos fortes da produção é que em momento algum ela é saudosista. Não se pretende imaginar aquele momento como um tempo melhor do que o atual. Aquele pensamento idealista de que no passado tudo era perfeito apesar dos problemas vividos. Numa passagem do filme, o jovem protagonista lê uma poesia para a namorada que diz: “Eu odeio os velhos poetas murmurando sua juventude passada”. Esse é exatamente o espírito desse filme. Não há espaço para lamentos. O intuito é lançar um olhar sobre esse passado, acompanhando, por meios de seus personagens, um período no qual se acreditava realmente em mudanças mesmo que no fundo esses mesmos jovens engajados não soubessem ao certo quem de fato era o inimigo. Lutava-se contra o sistema, mas não se tinha um foco específico, um alvo. Tudo que era contrário aos ideais revolucionários era o inimigo. Pregava-se a liberdade, mas a rebeldia se atestava em subversão, abuso de drogas pesadas, vandalismo. Onde se pretendia chegar? Qual o objetivo claro dessas atitudes? Quantas vidas custam o preço de ser livre? Por que esse espírito libertador enfraqueceu-se com o tempo? Até que ponto a opção pela violência é o caminho para o tal "mundo melhor"? E até que ponto esse fervor jovem não era produto de uma ingenuidade? São perguntas que ficam propositadamente no ar.

Os elementos fílmicos só colaboram para o bom andamento da história. Temos aqui, uma fotografia sóbria, de cores frias, meio foscas, trazendo um ar constante de melancolia. Um trabalho excelente de Eric Gautier, que fez semelhante exercício fotográfico no filme “Na natureza selvagem” no qual também imprimiu a mesma melancolia através da imagem. A trilha-sonora é composta de músicas como “Why are we sleeping?” do Soft Machine,  “Know” de Nick Drake, “Decadence” de Kevin Ayers entre outros títulos bem sugestivos para o momento histórico vivido. A construção histórica, os cenários e o figurino também são um deleite a parte. Tudo executado milimetricamente com charme, elegância e uma certa sensualidade.

No entanto, na minha opinião, a grande sacada do cineasta foi a relação feita entre o roteiro do filme e o próprio cinema como arte coletiva. Em diversos momentos, o filme se detém na arte cinematográfica como apoio da história que se deseja contar. Por exemplo, o protagonista da história tem como objetivo de vida fazer cinema, uma arte conhecidamente construtora de sonhos. Até que ponto o diretor do filme não estaria relacionando o mundo desejado pelos jovens daquela época a um sonho quase cinematográfico? O embate de um cinema feito para o entretenimento e um cinema feito para a revolução revela-se em uma cena na Itália na qual os revolucionários questionam a validade do cinema como arma utilizada a favor do movimento e não a favor da burguesia. A construção narrativa tem uma abordagem genial. No começo, o longa-metragem é mais movimentado com a seqüência do choque da polícia com os manifestantes e em seguida com o momento eletrizante dos jovens pichando e colando cartazes nas paredes de uma universidade durante uma madrugada, o que acaba gerando uma perseguição e um grave acidente. No decorrer da exibição, o ritmo torna-se mais lento. Acompanhamos os personagens em suas idas e vindas. Em suas buscas pela continuidade do movimento idealista e a dedicação às suas necessidades de âmbito pessoal, que muitas vezes não estavam ligadas aos ideais defendidos. Assim, pela própria estrutura do roteiro, o filme revela essa frustração dos sonhos que vai dominando pouco a pouco o ideal dessa juventude. O que era intenso, vibrante e elétrico no começo vai se tornando apático, lento e desacreditado no final.

As interpretações ao filme de Olivier Assayas podem ser muitas e uma boa obra é sempre assim, vasta de possibilidades. Num exercício interpretativo, é possível observar o papel entusiasmático da juventude como motor propulsor de mudanças. Não é à toa que as gerações mais velhas, a partir de determinada idade, passam a responsabilidade de melhorias do mundo para a geração vindoura. Até que ponto podemos lançar nas mãos da juventude a responsabilidade de transformação do mundo? O poder da juventude é contagiante, corajoso e urgente, mas bastante efêmero. Essa é talvez a faceta mais perigosa do ser jovem, sintetizada numa fala do protagonista que com certo ar de tristeza profere: “Tenho medo que minha juventude acabe”.

Assayas fez um filme em que misturou um pouco de tudo. Cinema, música, artes plásticas, política, drogas...Tudo poderia se tornar confuso, mas ao contrário, revela-se solo fértil para uma obra criativa e imperdível. O bom filme, para mim, deveria ser sempre assim: político sem ser partidário, religioso sem ser fundamentalista, gay sem ser panfletário, histórico sem ser didático. Convidaria toda a juventude contemporânea a assistir esse trabalho e assim quem sabe observar, de um modo geral, que a principal revolução que podemos fazer é primeiramente a revolução interna. No equilíbrio da transformação interna e posteriormente externa quiçá não encontraremos a paz tão almejada pela humanidade.

Depois de maio (Après Mai)
Direção: Olivier Assayas
Elenco: Clément Métayer, Lola Créton, Carole Combes, Felix Armand e India Menuez.
Roteiro: Olivier Assayas
França, 2013
Duração: 122 min




Gostou? Veja também: "Os Sonhadores" de Bernardo Bertolucci.