sábado, 7 de junho de 2014

O lobo atrás da porta: filme atualiza a expressão lobo em pele de cordeiro para os dias atuais


Todos os dias, quando abrimos os jornais ou a Internet, lemos um punhado de tragédias familiares. Maridos traídos matando suas esposas, mulheres vingativas assassinando seus amantes, mães ou madrastas eliminando crianças com requintes de crueldade e por aí vai. São tantos casos, que a nós cabe uma única certeza: algo está errado no mundo. Vivemos em tempos de relações humanas degradadas e é com base nessa premissa que o diretor estreante Fernando Coimbra escreveu o roteiro de seu primeiro longa-metragem.

         O filme é uma interessante mistura de gêneros cinematográficos, suspense, drama e policial, que, a princípio, parece revelar mais do mesmo, mas, felizmente, não é o que acontece. Tudo começa quando uma mãe desesperada procura pela filha desaparecida. Numa delegacia, somos apresentados aos personagens. A mãe em questão, o marido dela, a amante dele e a responsável pela creche na qual a criança tinha sido vista pela última vez. Todos dão informações confusas e incertas e o policial que conduz a investigação, pouco a pouco, vai adentrado numa trama que esmiúça a mentira, a vingança, o ódio e a traição. Aparentemente, todos são inocentes, todos estão assustados, ninguém sabe de nada. Mas a partir do momento em que a verdade vem à tona, percebemos o quanto estamos diante de seres humanos travestidos de pessoas de bem, mas capazes das mais desumanas crueldades.

        Há um jogo de aparências muito bem construído pelo diretor. Sorrisos falsos, meias verdades, desejos lascivos, falsas amizades e gentilezas vazias permeiam cada minuto do filme. Os nomes curtos de mulheres parecem propositalmente gerar confusão. Rosa, Dália, Rita, Silvia, Clara, Beth, outra Silvia, são alguns dos nomes que aparecem em cena. Este detalhe é exposto durante a investigação quando, indagado pelo delegado, o marido tenta lembrar o nome de uma mulher que, dias antes, havia passado um trote e se identificado como Beth. Ele não tem certeza do nome, mas a informação que fica para o espectador é que, dentro dessa falta de clareza de nomes femininos, também há a indistinção do perigo que, muitas vezes, vem da forma mais simples e rotineira. Está ali, diante dos nossos olhos ou do nosso lado. Pode ser nosso vizinho, a pessoa que amamos ou um amigo. No longa-metragem, a violência surge do dia-a-dia, das relações mal resolvidas, do desejo incontrolável, do mundo adulto que não se dá conta de seus próprios atos e que tem na criança um de seus alvos mais fáceis no descarrego de suas maldades. É um retrato assustador de uma realidade comum no Brasil.

         Todo filmado na zona norte do Rio de Janeiro, há em O Lobo atrás da porta cenas muito bem construídas. O trem que passa pela Estação de Marechal Hermes deslizando sempre pesado e ruidoso sobre os trilhos, os trovões e a chuva forte que cai durante uma cena em que os protagonistas conversam e a lavagem da escadaria da Igreja da Penha com sons confusos de vozes, águas e pés caminhando parecem anunciar, lamentosamente, a tragédia que está por vir. O som das cigarras - confusas e barulhentas - numa sequência crucial, explicita o nosso incômodo como plateia diante de uma cena brutal. É como se a natureza reagisse diante daquilo que vê e também se chocasse e se lamentasse.

          A produção se segura nas boas atuações do elenco encabeçado por Leandra Leal e Milhem Cortaz que demonstram grande talento cênico, principalmente, nos momentos que exigiram grande intimidade. Fabiula Nascimento também não faz feio como a dona de casa traída e alheia ao perigo. Há ainda as participações de Talita Carauta, que imprime humor em todas cenas em que aparece e ajuda a aliviar o peso da temática densa. Só achei pouco aproveitado o delegado interpretado por Juliano Cazarré, que investe mais no perfil do policial durão engraçadinho. O estarrecimento com as atitudes humanas impensadas poderia conduzir o olhar deste personagem, atribuindo-lhe melhores camadas interpretativas. Infelizmente, não é o que acontece. Mas esse detalhe não prejudica a qualidade da produção. 

       A narrativa se aprofunda na psique humana que por impulsos incompreensíveis (ou até compreensíveis, dependendo do ponto de vista) emerge na forma de atos de extrema violência. Com a mesma facilidade que a protagonista diz ser fácil comprar um revólver na cidade, a maldade parece assim ser efetivada. É fácil, prática e rápida. E numa sociedade que põe à disposição do homem facilidades para seus intentos criminosos, tudo se torna ainda mais assustador. O lobo atrás da porta atualiza a expressão “lobo em pele de cordeiro”. Agora, a metáfora do lobo não requer mais disfarces. Em tempos modernos, surge sem máscara alguma. O lobo do título torna-se metáfora da maldade humana que, traiçoeira, se esconde de forma quase imperceptível nos lugares mais ordinários e, paradoxalmente, acabam por se tornar os lugares menos prováveis. Está ali, atrás da porta da cozinha na qual a mãe prepara um simples jantar sem se dar conta do que acontece ao seu redor, seja por ingenuidade ou pela própria infelicidade de sua vida. Está atrás da porta do quarto que, fechada, acalenta os sonhos dos filhos. Está atrás da porta principal que nos preserva, ilusoriamente, dos perigos da rua ou atrás da porta da escola que supostamente protege as crianças. O mal está em todo o lugar e espreita a todos nós, calmo e silencioso, mas pronto para nos atingir, a qualquer momento, sem aviso e sem distinção.

terça-feira, 3 de junho de 2014

Taxi Driver: uma narrativa sobre solidão e violência

A rede de cinemas Cinemark está com uma programação de clássicos imperdíveis. A partir do dia 31 de maio, começou a exibir filmes como Pulp Fiction, Laranja Mecânica, Bonequinha de luxo, entre outros. A iniciativa é muito interessante por reavivar a memória do público frequentador de cinema, muito mais acostumado às refilmagens de clássicos do que ao visionamento dos próprios. E ainda é uma excelente oportunidade para assistir a grandes filmes em tela grande com som e imagem de alta qualidade. Para a estreia, o Clássicos Cinemark escolheu "Taxi Driver", um filme de Martin Scorsese que é uma jornada de solidão e violência numa Nova York longe da imagem vendida em cartões-postais. Eis a minha crítica.


Um homem solitário e com problemas de insônia se candidata a uma vaga de emprego para ser taxista noturno na cidade de Nova York. Assim, resolve dois problemas pessoais de uma só vez. Sua solidão encontra a companhia de milhares de estranhos que tomam um táxi durante as noites e sua insônia crônica encontra uma ocupação que a torna menos ociosa. Perambulando pelas ruas novaiorquinas, Travis Bickle, um homem de hábitos soturnos, interpretado brilhantemente por um jovem Robert De Niro, assiste, diante do para-brisa de seu veículo, uma cidade suja, degradada, excludente e violenta. Aos poucos, vamos conhecendo mais sobre sua personalidade introvertida e nesse processo revelador, a contradição de seu caráter se revela marcante. Ao mesmo tempo em que faz um discurso preconceituoso de higienização da cidade de Nova York, o misantropo homem torna-se obcecado em salvar uma prostituta adolescente a qual ele acha que está sendo explorada por um aliciador de menores. Sua inconstância fica ainda mais evidente quando se apaixona por uma bela mulher que trabalha na campanha do senador Palantine. Ao ser rejeitado por ela, Travis passa a planejar o assassinato do político. Sem sucesso, devido ao forte esquema de segurança, canaliza toda a sua fúria e psicopatia para o banho de sangue que promove num prostíbulo ao final da história.

Taxi Driver é um filme de 1976, dirigido por Martin Scorsese, à época, um jovem cineasta americano. O filme acabou agradando a crítica especializada, fez boa bilheteria e com o tempo ganhou ares de cult. Catapultou os nomes de Scorsese, De Niro e de Jodie Foster ao mundo. Hoje em dia, é considerado uma obra-prima do cinema americano. É claro, que apesar de todos os elogios, o filme também sofreu duras críticas por seu conteúdo violento e Scorsese teve que atenuar a cena do tiroteio final, diminuindo a intensidade do vermelho do sangue das vítimas. Todo o alarde em torno do longa-metragem não é, e nem foi, em vão. Taxi Driver entrou para história por trazer um panorama do comportamento do norte-americano explicitado em suas obsessões, vícios e insensibilidade.

Travis Bickle é um homem sem expectativas e sem adaptação ao famigerado estilo de vida americano. Ao discursar diante de um político alegando que negros, prostitutas, drogados e gays deveriam ser eliminados da cidade, o personagem com seu posicionamento extremamente preconceituoso revela uma crítica de si mesmo. Ele se exclui do mundo em que vive, criticando-o fortemente, mas é tão "vítima" do sistema em que vive quanto aqueles que gostaria que desaparecessem da face da terra. As nuances desse icônico personagem são bastante relevantes, uma vez que dão conta da alienação de muitos americanos representada na obsessão por filmes pornográficos. De tanto assisti-los, Travis perde o tato para qualquer tipo de relacionamento, chegando ao absurdo de convidar sua pretensão amorosa para assistir a um filme pornô no primeiro encontro. O afeto existe, mas revela-se bastante distorcido. Outras críticas comportamentais do americano comum vão surgindo ao longo da projeção como o fascínio por armas de fogo. Ao comprar uma arma, o taxista fica fascinado pela maleta do vendedor cheia de diversos modelos de diversos calibres, ao final da cena, fecha negócio levando a maleta inteira.


O final do filme foi tão contraditório quanto a personalidade de seu protagonista. Após um grande bang-bang, Travis aparece novamente como taxista, agora, aclamado como herói pelos jornais. Betsy, a mulher que ele amava, aparece adentrando o táxi e expressando em seu semblante um ar de satisfação, como se a partir daquele momento passasse a ver Travis com outros olhos. Aqui, o heroísmo ganha duplo sentido confundindo o espectador que, sem maiores esclarecimentos, não sabe se está diante de um herói imaginário, fruto do próprio pensamento doentio do personagem, ou se está diante da ironia do cineasta, que ao colocar Travis como herói referendado pela mídia está fazendo uma critica ao comportamento do americano que leva figuras violentas e psicóticas como Travis ao patamar de herói. 

Taxi Driver recebeu a Palma de Ouro em Cannes e várias indicações aos maiores prêmios da sétima arte, incluindo o Oscar. Jodie Foster ganhou reconhecimento prematuro aos 14 anos por interpretar a jovem prostituta, papel considerado difícil para sua idade. E Cybill Shepherd, como alvo da obsessão de Travis, no auge de sua beleza, teve um dos seus papéis mais célebres. Em sua metragem, o longa-metragem ainda traz uma cena clássica quando Travis, alucinado, com uma arma em punho, se indaga várias vezes diante do espelho, como se falasse diretamente para nós, espectadores: “Are you talkin´to me?” (Você está falando comigo?). O que fica óbvio, após a exibição desta obra, é que estamos diante de uma narrativa que investiga a solidão humana e suas consequências. O que nos faz concluir que, de forma opressiva, a solidão pode ser capaz de levar qualquer homem à loucura. Muitas vezes, manifestada na forma de atos violentos.

Abaixo, foto dos bastidores de "Taxi Driver". Martin Scorsese conversa com Robert De Niro dentro de um supermercado, cenário de uma cena importante do filme.


quarta-feira, 21 de maio de 2014

Godzilla, o vândalo: o MMA de monstros e o espírito anárquico humano em tempos de Black Blocs


         Esqueça a destruição pela destruição, o novo filme do famigerado monstro japonês quer ser levado a sério e o estrago, dessa vez, vem contextualizado. Nada de destruir apenas para o deleite do público. Apesar disso também acontecer, a proposta deste longa-metragem, aparentemente, é outra. Depois das recentes tragédias vivenciadas pelo mundo contemporâneo (Torres Gêmeas, Tsunami, Fukushima) qualquer filme-catástrofe que se preze, precisa trazer algo a mais, que vá além do prazer de destruir. Portanto, agora os dramas são mais sérios, a trama mais realista dentro do possível e os desastres mais aliados ao lado humano.

            Para disfarçar o apelo fugaz às tragédias que retumbaram pelo mundo moderno e que serviram de referência para as cenas de ação, o roteiro foi construído de forma a levantar questões relevantes que fugissem do mero escapismo. Assim, as entrelinhas do texto abordam o medo mundial de um ataque nuclear, o medo dos E.U.A de sofrer um novo ataque externo e o medo da força da natureza, que alterada pelo homem, vem revelando sua faceta mais devastadora. Essa escrita baseada em medos humanos resgata, em parte, a simbologia oficial do Godzilla japonês. Para quem não sabe, o monstro foi criado em 1954 para burlar a censura dos norte-americanos que impediram os japoneses de falar sobre as bombas atômicas de Hiroshima e Nagazaki. O monstro, surgido de um vazamento de uma usina nuclear, era uma criativa metáfora da morte, da destruição e do luto sofridos pelos habitantes da terra do sol nascente.

            É perceptível, então, o esforço de toda a produção em criar um bom produto que vá além da diversão e que satisfaça não só os fãs do monstro, mas também os fãs de filmes-catástrofe, os cinéfilos e o espectador comum que vai ao cinema em busca de um entretenimento de qualidade. O elenco de nomes de peso como Bryan Cranston, Juliette Binoche, Sally Hawkins, David Strathain, Ken Watanabe e os jovens Aaron Taylor Johnson e Elizabeth Olsen demonstra o interesse de bons atores pelo filme que, certamente, viram no roteiro um vislumbre de boa ideia. A fotografia escura, sombria e, por vezes, esfumaçada, em tons de cores que confundem o monstro com os prédios e as pinceladas de vermelho que reforçam a evocação de um mundo apocalíptico crível é bastante interessante. O esforço também pode ser notado na construção de cenas que, se não entram para a história do cinema, ao menos são empolgantes, divertidas e bem construídas. A descida dos paraquedistas numa cidade desolada, o ataque ao trem que conduz uma ogiva, a destruição no Havaí numa referência clara aos icônicos filmes B e a chegada de Godzilla a São Francisco são exemplos de boas cenas que aliam efeitos especiais, emoção e diversão.

            Há ousadias atípicas ao cinema hollywoodiano como a falta de um protagonista evidente. Especificamente, ninguém carrega o filme nas costas. Nem o próprio monstro que intitula o filme, fato que tem gerado numerosas críticas ao trabalho do diretor novato Gareth Edwards do qual reclamam que o monstro é coadjuvante do próprio enredo. A falta de um protagonista, apesar de ser uma aposta arriscada, é curiosa e não atrapalha tanto quanto a montagem irregular do longa-metragem. Este sim, um problema que interfere diretamente no ritmo. Algumas cenas surgem isoladas dentro da narrativa e não são bem alinhavadas ao roteiro como um todo. Há ainda furos narrativos problemáticos que incomodam o espectador mais atento como, por exemplo, a iluminação das cidades atacadas que vai e volta o tempo todo ou as soluções fáceis quando crianças e animais estão em perigo. Mas, ok. Sejamos mais leves nas críticas, estamos falando de um filme hollywoodiano e não de uma obra felliniana.

            Transplantado pela segunda vez para a cultura norte-americana e apesar dos esforços empreendidos na realização da obra, Godzilla não esconde sua maior verdade: é um grande filme B de luxo. Tudo é muito bem pensado, mas não escapa aos rudimentos do passatempo mais fugaz. Isso fica evidente quando o drama familiar da primeira parte se dissipa totalmente para dar espaço ao descarado MMA de monstros que toma conta da parte final. Uma garota ao meu lado, durante a exibição do filme, se queixava ao namorado em tom de enfado: “Que droga! Cadê o monstro que não aparece?” Pois é, Godzilla é um longa-metragem de mais de 2 horas e o bicho só aparece depois de 1h de projeção. E o público de hoje, em sua maioria, não está a fim de ver entrelinhas narrativas criativas, originais ou históricas. O público de hoje, e principalmente o público-alvo de filmes como este, quer ver tiro, porrada e bomba. Pancadaria é o que importa.

É o nosso sentimento anárquico, numa concepção mais ampla da palavra, que é incitado (e excitado) o tempo todo na projeção do filme. Sabe aquela história de lançar um homem contra um leão no Coliseu diante de uma plateia vibrante e sedenta por sangue? Pois é, esse é o sentimento que domina o longa-metragem e que está presente na humanidade até hoje. Observemos as lutas de MMA que fazem tanto sucesso na televisão, as rinhas de galos e cães que acontecem às escondidas no interior de várias cidades, as touradas na Espanha ou mesmo a moda dos linchamentos em praça pública que tem tomado conta dos noticiários. Apesar de cada uma dessas situações terem propósitos e origens distintas, o que se desnuda em todas é a sedução lasciva pela violência sangrenta. Você pode até discordar, caro leitor, mas lembre-se de sua infância. Das brincadeiras um tanto cruéis com as quais se divertia. Aquela criança ainda vive em você, só foi lapidada com o tempo, ou não. A violência habita em nós de diversas maneiras e o cinema sabe disso e joga muito bem com isso. Não é à toa, que o público pareça somente despertar para a história quando o ringue de monstros começa. Quando isso acontece são urros, aplausos e gritos eufóricos. Drama humano? Para que isso? É chato. Certamente diriam alguns dos meus companheiros de sala de cinema.

            Assistindo Godzilla, e pensando sobre esse fascínio exercido pela violência no público, não pude deixar, como brasileiro, de fazer uma breve analogia com os Black Blocs que representam, de uma forma geral, esse nosso lado mais destrutivo. (Daí, o título engraçadinho desta postagem). Aí, você me pergunta: mas o que tem a ver uma coisa com a outra? Talvez, querido leitor, haja mais do que possamos imaginar. Sei que os Black Blocs têm uma ideologia que justifica os seus ataques, mas no fundo, creio eu (e você pode discordar), o que impera nesses comportamentos, de fato, é o nosso mais arraigado instinto de violência. Empreendemos violência por motivos políticos acreditando em mudanças, mas o que, inevitavelmente, se sobressai é a nossa raiva furiosa que está sempre pronta para emergir na forma de caos e destruição. É exatamente esse o raciocínio que Godzilla segue. Uma força bruta que hiberna e só desperta porque tem um motivo. (Não pude deixar de lembrar da hashtag mais célebre dos últimos tempos: “O gigante despertou”). A destruição que o monstro causa vem justificada tanto quanto possa ser justificada a ação violenta dos Black Blocs. Agora, na nova versão, o monstrengo é um predador, ou seja, ele precisa matar outros monstros para restaurar o equilíbrio da natureza. Ele destrói e mata na intenção de estabelecer a paz, não sem antes provocar uma “pequena” bagunça. Godzilla, em resumo, é um vândalo, palavra que caiu na boca do povo e que vem sendo utilizada com recorrência pela mídia em geral, principalmente, quando há investida dos Black Blocs pelos centro das cidades.

            A motivação de Godzilla, no entanto, atenta para um erro narrativo biológico, mas que gera uma reflexão bastante curiosa. A maioria dos predadores mata outro animal com o intuito de se alimentar, não matam por matar. O homem, sim, faz isso. Dessa vez, o descomunal bichano carrega uma alma humana que engloba tudo de bom e de ruim que isso possa significar. Na minha opinião, a representação mais marcante que o Godzilla de 2014 faz é a que está nos anseios da plateia de cinema que, tacitamente, sedenta por doses de violência, vai à uma sala escura para assistir pancadaria, destruição e caos e, por fim, se o filme dialoga com o público contemporâneo mundial, como dialogava com o Japão do pós-guerra, esse diálogo está na quase confidência de que a linha imaginária que separa monstros de humanos é cada vez mais tênue. (E desconfio que nunca tenha existido). Isso fica claro numa cena em que Godzilla, exausto da luta, desaba lentamente sobre prédios e, chegando ao chão, seus olhos fitam os olhos de um dos personagens humanos da história. Homem e monstro se reconhecem e, ali, por segundos, se tornam um só.

sexta-feira, 9 de maio de 2014

4° Festival Adaptação



Com foco na relação entre cinema, roteiro e literatura, o Festival Adaptação retorna em sua quarta edição trazendo mesas-redondas, exibição de filmes, cursos de roteiro, entrevistas, bate-papos e muito mais. Neste ano, o tema principal do festival é o processo criativo. Haverá, portanto, uma mesa debatendo a criação cinematográfica na América Latina e uma discussão sobre as séries americanas, que vivem seu auge de criatividade. Entre os filmes exibidos, a pré-estreia do brasileiro "O lobo atrás da porta" e e o documentário "Os roteiristas". O festival acontece de 12 a 18 de maio no CCBB-RJ.

Programação no site do festival.

http://festivaladaptacao.com.br/2014/

quarta-feira, 30 de abril de 2014

Noé: arte e religião


Muito antes de estrear nas salas de cinema, quando ainda se encontrava em filmagem, “Noé”, novo trabalho do cineasta Darren Aronofsky, vinha marcado sob o rótulo de polêmico. Antes mesmo de sua premiere, países como Bahreim, Catar e Emirados Árabes já tinham vetado a exibição do filme em seus territórios. A argumentação contra a obra era uma só: “Noé” deturpava a milenar história bíblica. Não é difícil compreender toda a polêmica em torno do longa-metragem, afinal, estamos falando do livro mais célebre da história do mundo. A Bíblia, que vem acompanhada da alcunha de livro sagrado, manteve ao longo de séculos seu poder de influência no imaginário dos homens. E é óbvio que vaguear sobre suas páginas, com alguma liberdade de contestação, é visto, do ponto de vista religioso, como algo condenável. Assim sendo, não foi nenhuma surpresa que em uma pesquisa feita nos EUA, 98% do público que assistiu ao filme emitiu opinião negativa contra a produção, alegando ter sido um erro a modificação da narrativa original. Logo, conclui-se: o que imperou foi a opinião religiosa e não a apreciação artística.

            No entanto, Darren Aronofsky, que dirigiu e escreveu o filme, não tinha como objetivo que seu trabalho fosse visto como um filme religioso na concepção stricto sensu da palavra. O projeto faz parte de uma HQ, criada pelo próprio diretor, na qual ele recria o universo do personagem do Velho Testamento. O filme é só um desdobramento desse projeto. E por isso, há um olhar diferenciado e ampliado para a trama apocalíptica, como ocorre em toda recriação. Portanto, para apreciar uma obra como esta, é preciso, antes de mais nada, vê-la como arte. Foi dessa confusão entre o que é do âmbito da arte e o que é da esfera da religião que proliferaram a maior parte das críticas negativas direcionadas à produção. Não quero dizer com isso que “Noé” seja um excelente filme, pelo contrário, trata-se de um produto mediano, mas que, em partes, revela-se bastante interessante. Ao reimaginar a história do homem incumbido de salvar a humanidade de um dilúvio devastador, o cineasta utilizou-se de toda liberdade criativa e inventividade para entregar uma reimaginação do mundo de Noé, baseada no enredo original e não uma versão literal. Ou seja, aqui, estamos falando do Noé de Aronofsky. Estamos discursando sobre uma adaptação, que pode ou não ser fiel ao texto- base.

            A Bíblia como uma narrativa lacunar e cheia de dubiedades permitiu que o homem, ao longo dos tempos, interpretasse suas histórias. Mas, para os paladinos da verdade que insistem em deter a palavra única nas vozes com que berram em seus templos, a Bíblia parece um livro unívoco. Pensar dessa forma é tornar nulas as belas metáforas existentes nas escrituras e que, se não são verdades absolutas, ao menos encerram reflexões sobre a condição humana. Foi exatamente nessas lacunas deixadas pela Bíblia que Aronosfky enveredou artisticamente, criando e recriando de acordo com a sua imaginação. E nisso não há pecado algum. 

           Numa leitura da história original da arca de Noé, que aparece de forma episódica no Gênesis, e imbuídos de algum espírito de curiosidade, é provável que algumas dúvidas surjam e nos façam questionar, por exemplo, como ele construiu a arca de proporções gigantescas sem conhecimentos náuticos prévios? Ele teria recebido ajuda para isso? Quem teria ajudado? E se houve ajuda, por que essas pessoas não foram salvas do dilúvio? Outra questão: como os animais sobreviveram sem que atacassem uns aos outros? Essas são questões que o Bíblia não responde e serão perpetuadas pela eternidade. Por motivos de coerência da narrativa cinematográfica, Aronofsky tenta encontrar algumas soluções para as questões acima, mas com isso não quis, em momento algum, encontrar uma verdade inequívoca. Trata-se apenas de um exercício imaginativo e isso, temos de convir, é próprio da arte.

        O Noé da Bíblia é descrito como “um homem justo e íntegro entre seus contemporâneos e que andava com Deus”. O Noé de Aronofsky, interpretado pelo ator Russel Crowe, não deixa de ser como o descrito, mas é, acima de tudo, um homem cheio de contradições, assim como todos nós. É humano, e por isso, capaz de atos de solidariedade, como salvar e adotar uma menina ferida (personagem que problematiza ainda mais a história), e, por outro lado, é capaz de atitudes egoístas como deixar que uma outra moça seja pisoteada, somente para salvar o filho. O Noé de Aronofsky é um pai de família que diante da missão de salvar a espécie humana passa a carregar um imenso fardo. Quem não enlouqueceria diante do encargo de salvar o mundo? O criador, ao delegar a um homem comum uma responsabilidade sobre-humana, exige deste força descomunal, dedicação vigorosa e coragem descomedida, o que na prática não é nada fácil. 

            A abordagem fílmica do mito bíblico fala ao homem de nosso tempo ao contar a história de alguém que busca por respostas mais claras e diretas do “divino” e, por não obtê-las, acaba por resvalar num fundamentalismo perigoso e excludente. Quantos “Noés” não estão por aí, dentro de igrejas mundo afora, prevendo catástrofes, castigos celestiais e interpretando à suas maneiras as escrituras sagradas e com essa atitude bradam aos ventos suas verdades absolutas argumentando com um conclusivo: “Está escrito na Bíblia”. O longa-metragem é uma reflexão bastante inteligente sobre o poder de interpretação humano tão deteriorado por nossa espécie. É por isso que a narrativa cinematográfica não pretende ser uma cópia fiel da original na qual o criador fala diretamente com a criatura. “Noé”, o filme, problematiza o comportamento humano em seu sentimento coletivo, em sua humanidade, em seu instinto de sobrevivência e em sua fé cega. Perceba como o personagem, no intuito de cumprir o proposto pelo todo-poderoso, acaba por se tornar, paulatinamente, um homem cruel e imponderável. Diante da epopeia orquestrada por um criador punitivo e caprichoso, o Noé de Aronofsky torna-se obcecado e beira à loucura, o que o leva a gestos violentos. Qualquer semelhança com os tempos atuais não será mera coincidência.

            Entretanto, apesar dos momentos reflexivos que gera, a produção, vista pelo conjunto dos elementos que a compõe, descamba num filme irregular. O texto que cria possibilidades discursivas interessantes e relevantes é o mesmo que entrega cenas que impossibilitam resultados mais satisfatórios, principalmente no que concerne ao entretenimento. Os anjos caídos em forma de monstros de pedra, por exemplo, é uma das escolhas mais pueris do roteiro. O mesmo acontece com a cena do reflorestamento mágico que serve como uma fonte de madeiras para a construção da arca. Não quero dizer com isso que elementos fantásticos sejam um problema, a própria história bíblica tem em seu cerne um elemento fabular bastante acentuado. Mas escolhas como essas acabam por enfraquecer a trama em suas questões mais sérias, que acabam se perdendo em meio a um clima escapista de fantasia bobinha.

            A culpa, no entanto, não pode ser creditada apenas na conta do cineasta. Darren Aronofsky, depois da repercussão de “Cisne Negro”, teve a possibilidade de realizar um trabalho com mais grana e, de quebra, voltar a um dos temas pelo qual mais se interessa, a obsessão humana. Essa temática está presente, praticamente, em todos os seus trabalhos desde “Cisne Negro” e “O lutador”, passando por “A Fonte da vida” até chegar ao seu primeiro filme, o independente “Pi”. Porém, para realizar uma produção de valores estratosféricos teve que abrir mão de sua verve autoral para dar conta de algo mais comercial. É por se prender demais à cartilha do entretenimento hollywoodiano que “Noé” acaba se tornando um filme ruim.

            Embora fique aquela sensação de que poderia render mais, o longa-metragem é oportuno pelas questões que traz em suas entrelinhas narrativas e mesmo que isso esmaeça em meio a escolhas estapafúrdias, não podemos deixar de nos ater a uma importante reflexão acerca da recepção da obra pelo público, provocada pelos comentários relacionados ao filme que tomaram conta das redes sociais. Aqui, creio eu, há um problema gravíssimo de apreciação artística de filmes. O público que lotou as salas de cinema para ver a produção milionária, não conseguiu, em grande parte, distinguir que, o que estava sendo representado ali, diante de seus olhos, era arte e não religião. Isso se traduz numa evidência preocupante: o público perdeu o sentido do que seja uma adaptação e, o pior, confunde o que vê nas telas com a própria realidade. Não preciso nem dizer que falta cultura, falta leitura crítica, falta espírito curioso e investigativo, entre tantas outras faltas que deveriam ser supridas para que uma pessoa pudesse apreciar uma obra de arte satisfatoriamente. O que, no caso do enredo aqui comentado, significa levantar pontos positivos e negativos de um trabalho e não apenas falar mal por puro despeito blasfêmico.

           O cinema norte-americano, é claro, tem colaborado exponencialmente para que surja esse tipo de público desprovido de massa cinzenta, afeito às emoções mais imediatas. E quando os conceitos de arte e religião tornam-se indistintos, polêmicas fajutas surgem e Hollywood, conhecedora dessa falta de discernimento, tira proveito disso na forma de muitos milhões que enchem os cofres dos estúdios. Se “Noé” seguisse a história bíblica a contento (como muitos desejavam) estaríamos diante de um filme didático, o que faria dele apenas uma ilustração da história original e, por isso, viria ao mundo para nada dizer. Didático, limitado, acrítico e vazio é tudo o que o cinema jamais pode ser. Aliás, isso é tudo que nenhuma arte deve ser.

quinta-feira, 10 de abril de 2014

Festival Varilux de Cinema Francês 2014


Com 16 filmes de longa-metragem integrando a seleção, a nova edição do Festival Varilux de Cinema Francês traz às salas brasileiras de cinema a produção cinematográfica francesa mais recente. São grandes sucessos de bilheteria, filmes elogiados pela crítica e obras inéditas. O festival ainda trará ao país o cineasta Jean-Pierre Jeunet, do famoso “O fabuloso destino de Amélie Poulain”, que irá lançar seu novo trabalho intitulado “Uma viagem extraordinária”, e a atriz Isabelle Huppert, que atua em dois longas: “Um amor em Paris” e “Uma relação delicada”. Ainda haverá uma retrospectiva dos filmes de Jeunet e a exibição do clássico “Os Incompreendidos” de François Truffaut. O evento vai de 09 a 16 de abril. A programação completa está no site oficial do festival.


Deleitem-se!

domingo, 23 de março de 2014

Ninfomaníaca: a pornografia a serviço da reflexão

       

         Fetichismo, masoquismo, sadismo, voyeurismo, ménage à trois, bondage...Se algumas destas palavras soarem estranhas aos seus ouvidos ou lhe causar algum tipo de incômodo pelo que possam remeter, talvez você deva passar longe de uma sessão do filme “Ninfomaníaca”. (Apesar de achar que você deveria enfrentar seus preconceitos e se arriscar numa sessão). Em seu novo filme, o genial dinamarquês Lars Von Trier descarta todo o manual da correção política que domina o cinema atual (e o mundo como um todo) e investe pesado em cenas de sexo explícito que, se não lhe causar nenhuma ofensa aterradora, lhe fará embarcar numa narrativa de obscuridade, crueza e tristeza que acabará por desenhar um perfil da condição humana. O longa-metragem narra a saga erótica de Joe, uma mulher viciada em sexo que não mede esforços para satisfazer os seus desejos. Das descobertas sexuais ainda na infância até a fase adulta, acompanhamos uma jornada de vida permeada pelo caos, pelo desespero, pela degradação e pela melancolia. O filme, em sua versão original, possui cinco horas e meia de duração, mas, por motivos mercadológicos, teve que ser dividido em dois volumes. A primeira parte, lançada em janeiro, vai da descoberta à perda do prazer da protagonista. Já a segunda, lançada em março, vai da tentativa de resgatar o prazer perdido à aceitação de si mesma.

            No primeiro volume, ferida e abandonada, Joe (Charlotte Gainsbourg) é encontrada por um homem de meia idade chamado Seligman (Stellan Skarsgard). O estranho oferece ajuda e a leva à casa dele. Entre um pouco de conforto e algumas xícaras de chá, a mulher passa a contar seu passado de promiscuidades. É nessa relação entre a mulher e o velho que o filme vai sustentando sua narrativa. Enquanto ela discorre sobre a vida, o homem tece suas analogias e reflexões na tentativa de entender o comportamento dela, sem nunca de fato chegar à uma conclusão satisfatória. Essa relação pode ser pensada de várias formas. A primeira, e mais evidente, é a relação paciente e médico. Como um psicanalista, Seligman se coloca diante de Joe apenas tentando entender os caminhos que a levaram a tal ponto de destruição. Mas, num segundo olhar, podemos estabelecer outras relações muito mais interessantes como a relação pecadora e padre. Joe, como quem peca, confessa todo o seu passado de infortúnios aos quais se submeteu na busca de um prazer insaciável. Quando encontra o velho lhe diz que é uma pessoa má e que merece tudo o que lhe aconteceu, assumindo assim uma postura de quem busca por castigo divino ou por perdão. Seligman, no entanto, ouve todas as confissões com complacência, como um bom padre. A condição sexual de Seligman, revelada no segundo volume, atesta seu papel de bom ouvinte. O prazer que encontra nas histórias que lhe são narradas concentra-se na curiosidade intelectual e não na excitação que elas possam causar. Mas há que se fazer um parêntese: em filmes de Lars Von Trier nada é o que realmente parece ser. Essa relação análoga a um confessionário religioso, talvez seja a melhor que podemos estabelecer entre os personagens, pois a sexualidade e a religiosidade se misturam o tempo todo no filme, de forma mais clara no segundo volume que no primeiro. E esse é um ponto-chave de todo o enredo. Antes de falar sobre sexo, “Ninfomaníaca” é um filme que fala sobre a religiosidade como um caminho não de salvação, mas de perturbação, tabus, preconceitos e, principalmente, hipocrisias.

            Desde que estabelecida a moral da civilização judaico-cristã, um cipoal de neuroses passou a afetar o comportamento humano, principalmente de mulheres. Basta a leitura dos principais livros do Romantismo/Realismo para atestar que a mulher que traía o marido era punida, sem mudança de regra, ora com a loucura, ora com a morte. Não é em vão que o cineasta escolha a figura da mulher como protagonista da maioria de seus filmes. É nela que recai toda a culpa, toda a responsabilidade, todos os medos, todas as cobranças de uma sociedade machista e patriarcal. A sexualidade da mulher, uma vez submetida ao homem, precisa estar sempre na ordem do dia, bem composta nas engrenagens social, familiar e amorosa. Transgredir essas regras, invariavelmente, vem acompanhada de uma torrente de palavras pejorativas tais como puta, vadia, piranha e por aí vai. Um homem de peito nu, de bermuda caída cintura abaixo com a cueca à mostra é algo aceito pela sociedade. Agora, uma mulher de pouca roupa é acusada, apontada, ofendida e difamada. É na mulher que se deposita a cobrança de um casamento feliz e saudável, o sucesso ou fracasso da criação de um filho. E quantas dessas mulheres, cobradas o tempo todo, tentam se adequar aos padrões impostos e acabam, por fim, infelizes? Joe é uma dessas mulheres. Ela banaliza o ato sexual por causa das regras que lhe foram impostas desde criança. Cobrada, direta ou indiretamente, para formar uma família, encontrar um homem a quem deva ser fiel, parir uma criança e amá-la por toda a vida, Joe nem de longe se enquadra nesse modelo. Mas, uma vez inserida neste mundo de tabus religiosos e conservadorismo hipócrita, acaba por tomar atitudes consideradas abomináveis. Abandona o filho porque não consegue se ver como mãe zelosa, mas o faz não sem antes sofrer. Abandona o marido porque não consegue, apenas com um homem só, sentir prazer e o próprio reconhece não pode dar a ela o tanto que deseja. 

           Joe banaliza o sexo porque vive à margem da sociedade, negando o que sente, o que quer, o que deseja. A degradação de Joe é nada mais, nada menos do que um desdobramento de uma sociedade que impõe normas comportamentais de todos os tipos, que fomenta interdições religiosas e descarrega na mulher toda a culpa do mundo. O vício em sexo é um reflexo dessas circunstâncias sociais contaminadas de opressões sistemáticas. Seligman, ao final do segundo volume, levanta a questão: se um homem agisse como Joe seria ele alvo de julgamento? Em minha opinião, de quem tenta entender o mundo com todas as suas contradições, creio que para esta pergunta há uma resposta. Se fosse um homem heterossexual, certamente não recairia sobre ele toda essa punição que se aplica à mulher. Mas em um homem homossexual, sim. Pois compartilho da teoria de que quando há um ataque homofóbico não é o homem em si que está sendo punido, mas a feminilidade que nele transparece. Não quero discorrer sobre teorias. Mas fica evidente que aquilo que é da ordem do feminino sempre foi alvo dos mais violentos ataques e assim permanece no mundo atual.
           
            O que o cineasta quer com essa história é provocar o público e isso Lars Von Trier faz muito bem desde que se tornou célebre com o filme “Ondas do destino” de 1996. Seu desejo é mexer com as próprias limitações do público, brincando o tempo todo com a plateia, mexendo com assuntos considerados tabus, incluindo neste pacote a sexualidade infantil e a pedofilia. Ao colocar dois personagens dentro de um pequeno quarto discursando sobre assuntos considerados polêmicos, é como se o diretor nos convidasse a observar aquela conversa como quem olha por um grande buraco da fechadura que é a tela do cinema. É, portanto, proposital a repetição da frase “Preencha todos os meus buracos” que a personagem principal profere algumas vezes durante a exibição do segundo volume. Uma frase que pode ser entendida não apenas da forma sexual óbvia, mas também pode ser entendida como a busca incessante do preenchimento do próprio vazio existencial, algo inerente a todo ser humano. Sabendo que seu filme causará controvérsias, Lars Von Trier traz o espectador para o jogo cinematográfico como se o convidasse a também preencher os buracos, não os sexuais, mas os de sua narrativa cheia de incoerências, contrastes e contradições entremeada de cenas de sexo.

            Cheio de participações especiais, o que torna alguns capítulos do filme um deleite a parte, “Ninfomaníaca” traz a atriz Uma Thurman, que aparece no primeiro volume, como uma mulher traída e sem noção, que leva os filhos para conhecer a cama onde o pai trai a mãe. É um dos momentos mais hilários do filme e a representação máxima do recalque feminino. E o ator Jamie Bell, que surge no segundo volume num dos momentos mais sádicos, como um homem que atrai mulheres com o único intuito de lhes dar porrada e os dois tiram prazer disso. É uma espécie de garoto de programa misógino. Essa parte do filme tem uma cena de caráter religioso fortíssimo ao colocar a mulher em posição de castigo (com as nádegas voltadas para cima) sendo açoitada como se estivesse sendo crucificada às avessas. É uma cena extremamente sádica, forte e inquietante. Há ainda no elenco as presenças de Shia Labeouf (nos dois volumes), como o marido de Joe. Willem Dafoe (somente no volume 2), como um cobrador de dívidas para o qual Joe trabalha. Christian Slater (somente no volume 1), como o pai da protagonista e a atriz revelação Stacy Martin (nos dois volumes), como a Joe jovem.

         O longa-metragem é corajoso e oportuno por provocar o público de cinema, atualmente, tão anestesiado diante de narrativas insípidas. Algumas pessoas poderão dizer que a obra é de mau gosto, por exibir genitálias com tanta naturalidade e cenas de sexo que deixarão qualquer conservador ruborizado, mas o filme é esperto por incorporar em seu enredo justamente essas prováveis reações da plateia. É contundente a cena em que a protagonista pronuncia a palavra nigger para se referir a dois negros com quem ela tentou fazer um ménage a trois. Seligman recua, dizendo para que ela não utilize o termo, pois é considerado politicamente incorreto. E ela discorda, dizendo que ao deixarmos de pronunciar alguma palavra já estaríamos revelando o nosso preconceito. Não é exatamente isso que a sociedade faz? Quando nos incomodamos com algo, procuramos logo eliminar ou mudar, em vez de enfrentar e tentar entender. Eis uma excelente crítica do comportamento humano contemporâneo. Com os dois volumes de Ninfomaníaca, o diretor, que também escreveu o roteiro, quis propor uma reflexão acerca da hipocrisia relacionada ao âmbito da sexualidade. É patente que a compreensão do ser humano em relação às questões que envolvem o sexo é bastante enviesada e limitada o que incorre, na maioria das vezes, em conclusões e ideias estapafúrdias. Porém, Lars Von Trier não tem a mínima pretensão de trazer respostas para sua proposta cinematográfica, ele deixa que o público julgue com os elementos de que dispõe, sejam eles preconceituosos ou não. É um trabalho que mexe com as entranhas do comportamento e do corpo humanos. Um filme que utiliza a pornografia a serviço da reflexão. E isso o torna de grande relevância no cinema mundial. 

       E quem diria que em um filme rotulado como “pornográfico” haveria espaço para a poesia. Pois há. Em um momento da projeção, Joe descobre a árvore com a qual se identifica depois de procurá-la por anos. Em sua infância, era um hobby que seu pai tinha de procurar uma espécie de árvore favorita, que seria aquela que mais o representaria. A protagonista a encontra ao se reconhecer num grande tronco retorcido, solitário, encravado em cima de uma montanha. Um bela metáfora do que ela é no mundo. Seu pai lhe dizia que as árvores desfolhadas durante o inverno revelavam suas almas projetadas na forma de variados galhos secos e Joe se reconhece exatamente num grande tronco torto e seco. No meu entendimento, a cena vai além ao nos dar a dimensão do que somos quando nos vestimos. Será que sem roupas (o que considero uma de nossas primeiras máscaras sociais) seríamos tão hipócritas? Será que daríamos tanta importância ao sexo como é recorrente no mundo atual? Pecado e culpa tomariam nossas consciências e acabariam por criar, em consequência, uma gama de perversões?

        Como disse antes, não há respostas prontas em “Ninfomaníaca”, mas o final deixa evidente que por trás de uma aparência de normalidade, todos nós, por mais bem-intencionados que sejamos, escondemos, sob toneladas de dissimulações, alguma perversão. E assim seguimos, disfarçados de belas árvores cheias de folhas quando na verdade somos estranhos galhos tortos.



quinta-feira, 6 de março de 2014

A Grande Beleza - O 14º longa-metragem italiano vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro



              Depois que saí de uma sessão do filme “A Grande Beleza” foi difícil definir em poucas palavras o que o filme representou para mim. Levei alguns dias relembrando as cenas assistidas, os personagens que transitaram pela tela e as frases proferidas. Pareceu-me uma daquelas viagens que fazemos e, depois de retornarmos, tentamos lembrar dos detalhes para saber se, de fato, ela foi boa. À primeira vista, não considerei o filme de fácil compreensão. É o tipo de trabalho que exige do público olhos atentos e perscrutadores. E isso, não é ruim. Certo de que cada pessoa poderá tirar suas próprias impressões da obra, eis as minhas.

      O filme do cineasta Paolo Sorrentino, um dos expoentes do cinema italiano contemporâneo, nos faz embarcar numa narrativa de imagens belíssimas de uma Roma que insiste em não deixar de lado seu passado de grandeza e beleza. É neste cenário que conhecemos Jep Gambardella, um homem de 65 anos que transita pela alta sociedade romana freqüentando festas, eventos e quaisquer outras interações sociais. Autor de apenas um livro, o protagonista vive de sua fama pregressa e mantém sua agitada vida social entrevistando novos artistas que vêm se destacando no cenário das artes e chamando a atenção da crítica especializada.

            O cineasta, ao lançar seu personagem em meio a um enredo cheio de contrastes e contradições, faz com que o público também reflita sobre aquilo que está vendo. E ao refletirmos, sentimos o mesmo que Gambardella está sentindo: um certo desconforto. Diante dos cenários exuberantes de Roma, que habitam o imaginário de todo viajante, encontramos um homem desacreditado do mundo e das pessoas. Isso pode ser observado em suas conversas com amigos as quais não poupa ninguém com suas opiniões diretas e mordazes. Jep é um sujeito paradoxal, ao mesmo tempo em que critica o mundo em que vive e os rumos que Roma tomou (uma crítica direta a era de Silvio Berlusconi), ele usufrui de tudo aquilo que menospreza. Em certo momento, ele tece comentário ácido sobre a sociedade mundana para, logo em seguida, afirmar que queria ser o "rei dos mundanos". As cenas construídas demonstram todo o tédio que envolve o comportamento e o pensamento do homem misantropo. Somos apresentados a uma elite envelhecida, fútil, banal, que se entrega à festas regadas a álcool e a conversas sobre a vida alheia. É uma visão desencantada do ser humano e uma crítica contundente dos caminhos medíocres que o mundo vem percorrendo. A cena em que Jep observa um navio afundado (foto acima) é inserida no filme para lembrarmos da tragédia do Costa Concordia, navio que naufragou na Itália em 2012 matando mais de trinta pessoas. Após o naufrágio, o comandante, que deveria zelar pela tripulação e pelos passageiros, fugiu. Foi um inteligente enxerto feito pelo cineasta para falar do comportamento humano vigente e totalmente coerente com a realidade vivida e observada pelo protagonista.

            Jep Gambardella é um acerto do roteiro de Sorrentino, escrito em parceria com Umberto Contanello, e que na interpretação do ator Toni Sevillo encontra a sua performance perfeita. Jep tem um ar perdido desenhado no rosto, parece inconformado, mas ao mesmo tempo resignado com o mundo vulgar ao qual pertence. Pelos amigos, é cobrado o tempo todo para que escreva um novo livro, mas argumenta, dizendo que não encontra mais beleza na vida e, por isso, não consegue escrever. No filme, as palavras ditas, ganham força nas imagens mostradas. Quando caminha por Roma, o escritor não deixa de observar o contraste entre a magnitude dos monumentos históricos e a decadência humana que se formou em torno deles. E é nesse jogo entre grandeza e medianidade, expressividade e inexpressividade, singularidade e decadência que o filme nos leva até o fim. Vivendo de entrevistar novos artistas, o escritor se vê diante de uma arte inusitada, como a garota masoquista que, nua, se atira contra uma parede até sangrar ou a menina furiosa que lança tintas sobre uma tela com a birra de uma criança própria de sua idade. Ao final, todos aplaudem efusivamente. Aqui temos um dos principais pontos de reflexão do filme: num mundo no qual qualquer pessoa pode ser artista, o que é arte hoje em dia?

            “A Grande Beleza” é uma produção de muitas camadas, de muitos simbolismos, muitas cenas interessantes e muitos questionamentos, o que dá ao espectador numerosas possibilidades de reflexão. Dentre tantos olhares que o filme lança para a vida contemporânea (incluindo um estranho olhar sobre a religião), na minha opinião, a grande crítica  feita é a já conhecida ideia de que a beleza é apenas um momento, algo passageiro como a vida, mas que nós, seres mortais, parecemos nos esquecer constantemente. É da essência do belo ser efêmero e é nisso que reside toda a tragédia. Não é à toa que Gambardella fique preso a uma memória de seu passado, quando ainda jovem descobre o amor e o desejo por uma garota ou quando é convidado a assistir uma exposição de um fotógrafo, que registrou num mosaico fotos de seu rosto desde o nascimento até os dias atuais, e com essa experiência tem a prova cabal de que o tempo corrói tudo e que toda beleza humana, um dia, se dissipará

            No último domingo, “A Grande Beleza” recebeu o Oscar de melhor filme estrangeiro, o 14º destinado a um filme italiano. Abaixo, uma listinha com os quatorze vencedores. Um bom começo para conhecer um pouco mais do cinema italiano. Fica a dica.


1-     Vítimas da Tormenta – Vittorio de Sica
2-     Ladrões de Bicicleta – Vittorio de Sica
3-     Três Dias de Amor – René Clément
4-     Brinquedo Proibido – René Clément
5-     A Estrada da Vida – Federico Fellini
6-     Noites de Cabíria – Federico Fellini
7-     8 ½  - Federico Fellini
8-     Inquérito a um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita – Elio Petri
9-     O Jardim dos Finzi-Contini – Vittorio de Sica
10-  Amarcord – Federico Fellini
11-  Cinema Paradiso – Giuseppe Tornatore
12-  Mediterrâneo – Gabriele Salvatores
13-  A vida é Bela – Roberto Benigni
14-  A Grande Beleza – Paolo Sorrentino



quarta-feira, 5 de março de 2014

A fotografia mais famosa dos últimos anos: programada ou espontânea?


          Tive um professor de literatura na faculdade que entrava na sala de aula bradando: “Tudo é ficção”. Ele não dava bom dia e nem cumprimentava ninguém, já entrava dizendo, em alto e bom som, “Meus queridos alunos, tudo é ficção”. Era quase um bordão. E logo em seguida, após proferir a sentença, iniciava suas aulas, que geralmente levavam a turma a pensar na frase que ficava ecoando nas mentes. O motivo desta introdução, já, já, explicarei. Antes, quero falar da selfie do Oscar 2014.

 Selfie é uma expressão americana utilizada quando uma pessoa tira fotos de si mesma, como num autorretrato. A prática tornou-se frequente com o uso de celulares com câmeras. Não é nada difícil encontrar alguma selfie pelo Facebook com gente afastando a câmera e tirando uma fotografia com o namorado(a) ao lado, com os amigos numa festa, com o cachorro no colo ou mesmo sozinha. Enfim, uma infinidade de possibilidades. A expressão tornou-se famosa e rompeu os limites do mundo norte-americano, chegando ao vocabulário das línguas de outros países. Basta dar uma olhada em textos de revistas e jornais de nosso país para rapidamente encontrá-la. A nova palavrinha do século XXI, ainda não está em nossos dicionários, o que gerou em mim uma dúvida de concordância: seria a selfie ou o selfie? Quando escrevi o texto sobre o Oscar e intitulei “O Oscar além da festa, dos luxos, dos egos inflados e do selfie”, usei a expressão no masculino porque achava que se referia ao movimento, ao gesto de virar a câmera do celular na própria direção. Mas, dando uma circulada pelos textos on line de nossos principais veículos de comunicação, observei que a maioria está utilizando no feminino. Certamente em analogia à palavra feminina “fotografia”. Então, fui lá e corrigi o meu título.

            Dúvidas de gêneros à parte, a selfie tirada no Oscar (foto acima) do último domingo vem dando o que falar. A foto, logo após ser tweetada, rapidamente gerou 1 milhão de retweets, prova de que a audiência estava ligada na apresentação, que de fato teve índices recordes e bateu até mesmo a audiência fenomenal - histórica que cabia ao último episódio do seriado “Friends”. Em menos de dois dias, somando mais de 3 milhões de replicagens, a selfie do Oscar tornou-se a mais retweetada da história do Twitter. Com tanta gente curiosa e interessada na fotinho de celular, rapidamente ela ganhou status de fotografia mais emblemática da história do cinema e da premiação.

            Vejo dois motivos para esse prestígio todo sobre a selfie oscarizada. Primeiro, a fotografia representou uma quebra de protocolo. A cerimônia do Oscar sempre foi permeada por uma fama de seriedade. Afinal, os americanos estão premiando aquilo que fizeram de melhor ao longo do ano. (O que se formos pensar bem, não tem sido muita coisa). Toda a pompa das roupas dos astros e estrelas de Hollywood demonstra que aquela não é uma festinha qualquer. É mais que isso. É cerimônia de gala, de reverenciamento de grandes talentos, homenagens a quem faleceu e a grandes lendas do cinema que ainda estão vivas, portanto, todos devem se comportar com deferência. Todos devem se levar a sério, todos devem se fazer sérios. Tanto é que muitas macacadas (Vide Roberto Benigni quando ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro por “A vida é Bela” em 1999. Se não se lembra do momento, procure no YouTube), sempre são vistas com maus olhos. Mas o Oscar, nas décadas recentes, tem se levado a sério demais, o que tem tornado a festa bastante chata. Ao realizar um gesto comum e recorrente das massas, o Oscar aproximou-se muito mais do público e tirou até mesmo de suas estrelas aquela aura de intocáveis. A condução do programa pela apresentadora Ellen DeGeneres, popular na televisão americana, e a presença de entregadores de pizza no palco reforçaram ainda mais esse lado menos formal da festa.

            O segundo motivo é que a selfie reuniu atores e atrizes de diferentes gerações. Estavam lá, a nova geração encabeçada por Jennifer Lawrence (Jogos Vorazes) e Bradley Cooper (Se Beber, não case) ao lado de figuras símbolo do cinemão americano: Julia Roberts, Meryl Streep, Kevin Spacey e o casal mais famoso Brad Pitt e Angelina Jolie. Ainda figurava na fotografia, a artista referência da noite em que o filme “12 anos de escravidão” venceu o Oscar de melhor filme, o primeiro da história da premiação escrito, dirigido e interpretado por negros: a atriz queniana/mexicana Lupita Nyong`o, vencedora do Oscar de melhor atriz coadjuvante. A fórmula era perfeita: quebra de protocolo, reunião de artistas de diferentes gerações e um comportamento bastante atual e popular. Resultado: repercussão no mundo todo. A foto circulou por todos os jornais on line e é uma das mais comentadas nas redes sociais. Uma fama que não deixará a selfie ser esquecida tão cedo, se é que será esquecida, e que lhe deu ares cult.

            No entanto, lendo as notícias recentes, vi a denúncia de que a selfie foi um golpe de marketing. A Samsung, empresa que patrocinou a transmissão do Oscar, tinha feito um contrato com a apresentadora do programa, o que incluiu um treinamento para que a foto fosse feita. A anfitriã da festa negou que tudo tenha sido forjado. Mas não é muito difícil suspeitar que isso realmente tenha acontecido. Com uma audiência altíssima, as empresas, principalmente as de comunicação, saem no tapa para terem um espaço durante a exibição do programa e assim exibirem seus produtos. O celular usado para a famosa selfie era o lançamento mais recente da Samsung. São os tempos modernos, uma fábrica de momentos fabricados. Se até os nossos sentimentos estão cada vez menos orgânicos, não dá para duvidar que uma simples selfie tenha sido pensada antes de ser executada.

            Mesmo assim, toda essa polêmica em torno da selfie não diminui seu caráter de fotografia emblemática dos últimos tempos no mundo do cinema. Pelo contrário, só aumentou ainda mais a sua fama. E é isso mesmo que a Samsung quer, que O Oscar quer, que o mundo das celebridades quer, que o público em geral quer: polêmica. Fico pensando: quem sabe a selfie realmente não tenha sido espontânea e a informação que denuncia a armação do momento, essa sim, seja falsa. Num mundo no qual o jogo de aparências é cada vez mais intenso, no que podemos acreditar? Pois é, talvez nunca saberemos se a selfie foi ou não espontânea. O que a torna ainda mais célebre.

            Toda essa história em torno da selfie me fez lembrar de uma renomada fotografia, também envolta por polêmicas. Se voltarmos no tempo, lá em 23 de fevereiro de 1945, lembraremos que uma grande fotografia foi tirada em meio a Segunda Guerra Mundial. Era a conquista dos americanos na batalha de Iwo Jima. A foto de Joe Rosenthal (foto abaixo) registrou cinco fuzileiros e um médico no momento em que içavam a bandeira americana. A fotografia ganhou o prêmio Pulitzer, percorreu o mundo inteiro e entrou para a história. Porém, a fama de que aquele momento não tinha sido natural, mas fruto de uma armação, sempre assombrou a fotografia. Pessoas que estavam presentes no momento do içamento da bandeira, disseram que Rosenthal chegou atrasado no monte Suribachi e pediu para que repetissem o gesto, conduzindo os soldados novamente a levantar a bandeira, por várias vezes, até que conseguisse o clique perfeito, aquele que entraria para a história. A pergunta que não quer calar: o que de fato nessa vida é espontâneo, natural ou sincero?

            Só para lembrar do meu professor de literatura com o qual comecei esse texto, ele foi apenas um gesto de escrita. Algo elaborado por mim apenas para iniciar o meu texto. Ele nunca existiu. A vida é assim, meus caros... tudo é ficção.



segunda-feira, 3 de março de 2014

O Oscar além da festa, dos luxos, dos egos inflados e da selfie

       
           O Oscar 2014 foi uma grande festa para os realizadores do filme “Gravidade”, longa-metragem blockbuster, que arrebatou nada mais, nada menos do que sete estatuetas. A maioria foi destinada às categorias técnicas, mas dentre elas, o cobiçado prêmio de melhor diretor para o mexicano Alfonso Cuarón. Pois é, um mexicano roubou a cena dos americanos. Não que os concorrentes de Cuarón fossem ruins, pelo contrário. Entre eles, havia um mestre do cinema, Martin Scorsese. Mas o seu excelente e divertido filme “O lobo de Wall Street” era bastante ácido para o comportamento conservador dos votantes da Academia de Cinema de Hollywood. A indicação, no entanto, por si só representou o reconhecimento de seu talento e, principalmente, de sua relevância para o cinema atual.

            Mas o que interessa aqui neste post, não é falar sobre quem venceu ou perdeu, mas sim tentar descobrir se há algo por detrás dos prêmios concedidos na noite do último domingo. Como cinéfilo, bem sei que o Oscar é pura politicagem. Premia seus atores mais icônicos com o propósito de eternizá-los no hall da fama, recompensa aqueles que demonstram talento mas sem que esqueçam de que é o dinheiro quem manda por aquelas paragens e reconhece produções e artistas estrangeiros com o único intuito de cooptá-los para sua prolífica indústria. Mesmo assim, quero acreditar que há algo que transcenda todo o luxo,  o desfile de moda, os egos inflados, as piadinhas de gosto duvidoso, os tombos de estrelas e o selfie retweetado milhões de vezes.

Ao premiar Alfonso Cuarón, os votantes conferiram a um latinoamericano o seu primeiro Oscar de melhor direção. O escritor mexicano Guillermo Arriaga responsável pelos roteiros dos filmes “Amores Brutos”, “21 Gramas” e “Babel” reconheceu em sua conta no Twitter a importância do prêmio: “Seja ou não seja Gravidade um filme mexicano, fez muito bem ao cinema mexicano esses Oscars”, disse o entusiasmado roteirista. O fato é que, quando os norte-americanos premiam um habitante de terras vizinhas com um prêmio tão importante quanto o Oscar, preconceitos e fronteiras passam a ser atenuados, mesmo que inconscientemente. Não se trata de bondade ou favor, mas de reconhecimento. Os mexicanos, vistos como sustentáculos da combalida economia americana, tem no Oscar de Cuarón uma valorização de sua importância na cultura americana não somente como esteios das engrenagens econômicas, mas também por seu talento artístico. É como se o cineasta vencedor dissesse: “Nós somos capazes de muito mais”. Eu quero acreditar nisso.

            Seguindo nessa linha de raciocínio, podemos pensar no prêmio destinado a Lupita Nyong`o (foto acima), que fez bonito com sua atuação em “Doze anos de escravidão”, não deixando espaço para as concorrentes. Nascida no México (sim, mais uma mexicana no Oscar), a atriz foi criada no Quênia (os pais são quenianos) e, posteriormente, foi para os Estados Unidos onde passou a viver. Ao vencer na categoria de atriz coadjuvante e erguer os braços para o público com a estatueta dourada em mãos, Lupita não só venceu as barreiras geográficas impostas por anos de história, como também venceu as barreiras raciais. Exagero meu? Pode ser. Mas quero continuar acreditando nisso.

            “Doze anos de escravidão”, que levou o prêmio de melhor filme, atestou esse interesse da Acadêmica de Cinema em laurear produções que abordem questões de temática difícil de ser digerida. Nas últimas décadas, o reconhecimento dos negros na cultura norte-americana vem sendo feito por via da reflexão artística. “O mordomo da Casa Branca”, outro filme recente sobre o mesmo assunto, apesar de sentimentalista, passou a limpo a história de lutas e sofrimentos do negro na América até a chegada de Barack Obama à presidência. É como se o país inteiro pedisse desculpas pelas atrocidades cometidas no passado e com esse movimento tentasse diminuir o racismo ainda existente nas terras do Tim Sam. Pode parecer ingenuidade minha, mas toda vez que um filme com a temática de “12 anos de escravidão” é festejado numa premiação como o Oscar ou toda vez que atores e atrizes negros são agraciados com o prêmio, sinto como se o preconceito racial abrandasse um pouco mais. Eu quero realmente acreditar nisso.

            Não podemos esquecer dos prêmios de melhor ator para um revigorado Matthew McCounaghey e de ator coadjuvante para um transformado Jared Leto. Ambos estrelando o mesmo filme “Clube de Compras Dallas” e retratando questões polêmicas que muitas vezes são jogadas para debaixo do tapete pelo mundo conservador: a Aids e o mundo dos travestis. E o que dizer do prêmio para Cate Blanchett? Bom, ela era carta marcada. Mas seu papel em “Blue Jasmine”, filme de Woody Allen, é um retrato desses tempos modernos. A Jasmine de Blanchett é a imagem do desespero do ser humano contemporâneo que em busca de status acaba enlouquecendo. Nesses prêmios há um jogo duplo: ganham os artistas pela coragem com que se lançam em seus papéis, deixando de lado toda a vaidade. Mas também ganham as temáticas abordadas, o tapa na cara, o soco no estômago, que incomoda as plateias do mundo inteiro e derruba toda a hipocrisia. Faço menção também ao prêmio de melhor roteiro original para "Ela" de Spike Jonze, uma história consonante com os melancólicos tempos atuais e os rumos que os sentimentos estão tomando em meio a tanta tecnologia disponível.

            E os sete Oscars para "Gravidade"? Seria apenas pura massagem no soberbo ego dos americanos que se autocongratulam por sua capacidade de fazer bons filmes de entretenimento (muitas vezes sem estofo intelectual), o que no caso do filme de Cuarón tornou-se uma exceção? Não, quero acreditar que há algo mais. Quero acreditar que premiando "Gravidade", antes de tudo, premia-se a ficção científica, um gênero que por excelência discorre sobre a vida, sobre a existência, sobre a nossa condição humana, atualmente tão devastada por todo tipo de violência. Se a arte tem o poder de nos fazer refletir, pensar e, quiçá, mudar, os filmes premiados pelo Oscar, talvez repercutam pelo mundo levando mensagens que desnudem aquilo que muitos de nós, muitas vezes (ou na maioria das vezes), não quer ver ou finge não ver: a complexidade e a diversidade do ser humano.

O Oscar, considerado o maior prêmio do cinema, é exibido em mais de 80 países no mundo todo, não seria difícil pensar no impacto que uma estatueta dourada poderia causar mundo afora. Muitos dos filmes indicados, com a exceção do filme de Alfonso Cuarón que teve uma alta campanha de marketing, passariam despercebidos pelas salas de cinema. Porém, ao serem mencionados pelo Oscar, ganharam projeção mundial e suas narrativas atravessaram oceanos entrando na vida e nas mentes dos mais distintos grupos de pessoas. Pode parecer devaneio meu, mas eu quero acreditar que sim, que apesar do jogo nem sempre muito nobre engendrado pelos organizadores da premiação, há algo muito maior e significativo quando se ganha um Oscar.

And the Oscar goes to...

Filme: 12 anos de escravidão
Direção: Alfonso Cuarón (Gravidade)
Ator: Matthew McCounaghey (Clube de Compras Dallas)
Atriz: Cate Blanchett (Blue Jasmine)
Ator Coadjuvante: Jared Leto (Clube de Compras Dallas)
Atriz Coadjuvante: Lupita Nyong`o (12 anos de escravidão)
Roteiro original: Ela
Roteiro adaptado: 12 anos de escravidão
Trilha-sonora: Gravidade
Montagem: Gravidade
Fotografia: Gravidade
Efeitos especiais: Gravidade
Edição de som: Gravidade
Efeitos sonoros: Gravidade
Canção: Let it go (Frozen)
Curta-animação: Mr. Hublot
Longa de animação: Frozen (Disney)
Design de produção: O Grande Gatsby
Figurino: O Grande Gatsby
Filme estrangeiro: A Grande Beleza (Itália)
Documentário: A um passo do estrelato
Documentário (curta): The lady in number 6

Curta-megragem: Helium

P.S: Não posso esquecer a lembrança a Eduardo Coutinho nas homenagens aos mortos. Morto recentemente, o cineasta brasileiro foi de grande importância para a nossa cinematografia. Ao lembrar dele, os organizadores do Oscar demonstraram o quanto estão de olho em nosso cinema.