quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Aquarius: o cabelo, o amor e o câncer


Este texto contém spoilers. Veja o filme e depois leia a crítica.

Ovacionado no último festival de Cannes, Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, ganhou as páginas dos jornais por causa de um protesto oportuno no tapete vermelho da Riviera Francesa. No dia da sessão, o governo Temer (interino e golpista) tomava a disparatada decisão de extinguir o Ministério da Cultura, um retrocesso sem precedentes desde o fim da ditadura militar brasileira. Porém, é bom que se esclareça: para além do viés político, o filme foi aplaudido pelos seus méritos audiovisuais. A história de Clara, interpretada magistralmente por Sonia Braga, é composta por três partes, aparentemente sem conexão entre si. (Mas não se enganem, no roteiro escrito pelo cineasta, nenhum elemento surge em vão). “O cabelo de Clara”, “O amor de Clara” e “O câncer de Clara” são os três momentos os quais, aos poucos, a narrativa vai se sustentando. Após um prólogo nos anos 80 no qual a protagonista, ainda jovem, aparece recuperada de um tratamento de câncer, o tempo salta para os dias atuais quando somos apresentados à sua versão mais madura. Dona de cinco apartamentos no edifício homônimo ao título, viúva, com três filhos e aposentada, ela precisa lidar com a insistência de uma empreiteira que deseja derrubar a antiga construção, na qual é a única moradora remanescente, para dar lugar a um empreendimento mais moderno e luxuoso. Sem nenhum interesse na proposta de compra e venda, os idealizadores do novo projeto arquitetônico incitam-a de diversas maneiras no intuito de fazê-la desistir da ideia de continuar morando no prédio. Essa é a coluna vertebral do roteiro, o entorno da trama é preenchido com a vida da jornalista, sua solidão, seu envelhecimento, sua relação com os filhos e com a empregada, sua rotina como aposentada, suas amizades, seus flertes e, principalmente, suas memórias.

No apartamento de Clara, tudo parece ter vida própria. Seja na vitrola que toca clássicos da MPB - resgatados inteligentemente para a composição da trilha sonora – nos livros na estante, no pôster de filme antigo que orna a parede, no piano no canto da sala, na rede na qual ela adormece, na panela que fumega no fogão ou na cômoda que faz a Tia Lúcia relembrar suas experiências sexuais nos minutos iniciais da história. Coisas simples, mas que transcendem o objeto em si. Trata-se de um longa-metragem sensorial alicerçado em emoções orgânicas e intensas que faz crítica aos tempos líquidos modernos nos quais as relações interpessoais são medidas pelo valor do dinheiro e à arte é conferida a característica do descarte. Dessa forma, a juventude século XXI é retratada em sua alienação, como no caso da entrevista em que a protagonista comenta sobre a descoberta de um vinil com um recorte de jornal sobre a morte de John Lennon para, logo em seguida, ouvir uma fala que deixa a entender que a jovem ouvinte nada compreendeu do que a ex-crítica de música acabara de dizer. A arrogância do engenheiro Diego (Humberto Carrão) também reflete esses tempos de relações dissimuladas e sorrisinhos falsos. Mas se, por um lado, o retrato dessa juventude é desgostoso, por outro, o filme abre uma brecha esperançosa ao colocar em cena um casal de namorados. O reconhecimento da sensibilidade através do olhar, entre Clara e Júlia, a namorada de seu sobrinho, durante a audição de uma música, escolhida a dedo da farta coleção de vinis da dona da casa, é uma das mais belas cenas deste trabalho.

Para criar a ideia de tensão vivida pela moradora do cobiçado prédio, o diretor recorre à linguagem do terror utilizando-se de clichês que, longe de empobrecer a trama, auxiliam na representação do clima de inseguranças e incertezas vividas pela proprietária do Aquarius. Assim, fantasmas surgem durante os sonhos, portas batem violentamente com a força do vento, a rede de proteção de uma obra avança misteriosa sobre os carros na calçada como um véu branco, a empregada se assusta com um trabalhador que surge na janela pelo lado de fora, sem contar o clímax construído por meio de ruídos e estalos de madeira. Os cinéfilos poderão se deleitar com sutis homenagens. Como não lembrar do clássico filme Tubarão, de Steven Spielberg, quando a câmera foca na placa que avisa que há tubarões na praia de Boa Viagem e, após um corte, a personagem se prepara para dar um mergulho observada atentamente pelo amigo salva-vidas Roberval (Irandhir Santos). Stanley Kubrick é homenageado com o pôster de Barry Lyndon preso à parede da sala e com os acordes iniciais da célebre trilha sonora do clássico 2001 – Uma odisséia no espaço que são ouvidos de forma brevíssima durante uma cena. Também não há como negar que o filme tenha um delicioso quê hitchcockiniano na forma como o suspense é construído. O cineasta filma como quem investiga sua personagem, ao mesmo tempo em que se espanta junto às descobertas que ela faz, por meio de um zoom abrupto quando, por exemplo, Clara se dá conta, diante de uma vitrine, que um cinema de rua foi transformado numa grande loja de eletrodomésticos. Conjuntamente à memória das coisas, a transformação das coisas no tempo torna-se a grande temática da narrativa. Observe a cena do coveiro que retira a ossada humana de uma cova ou a tensão provocada por automóveis que se locomovem na garagem numa estranha "dança" de quem entra e de quem sai. São cenas eficientes no intuito de refletir o permanente e o efêmero, o que fica e o que vai, uma movimentação intensa de troca e substituição cujas bases são difíceis de compreender na atualidade.

Mesmo que toda a trama esteja situada na capital pernambucana, a história em si poderia se passar em qualquer outra cidade brasileira. A modernização das cidades, a especulação imobiliária, o crescimento urbano que degrada a qualidade da vida humana são entrelinhas que não nos passam despercebidas. Recife se torna emblemática, nesse sentido, por ter ocupado às páginas dos jornais com o movimento Ocupa Estelita cujos manifestantes se colocaram contra o projeto de revitalização Novo Recife na região central da cidade. Não há como negar, Aquarius é um filme político em seu sentido mais amplo, não como querem rotular os detratores da obra. E é triste constatar que tais pessoas com pensamento criticamente distorcido, não reconheçam (ou finjam não reconhecer) as metáforas, as analogias e as reflexões presentes na história e que dão conta de um país cada vez mais empobrecido pela ignorância, pela banalidade da violência e pelo esvaziamento da humanidade. Não à toa, os diálogos dos personagens são permeados de cinismo e são falsamente corteses ou, por vezes, tão verdadeiros a ponto de reconhecerem que também são parte do sistema opressor - como quando a cunhada de Clara fala da ex-empregada negra que roubou as joias da família dizendo "a gente explora eles, eles nos roubam". A violência implícita - sorrateira como o traficante de drogas da orla da praia - torna-se muito mais perigosa do que aquela que presenciamos como espetáculo, todos os dias, nos telejornais, e é capaz de destruir estruturas, silenciosamente, como cupins que acabam por condenar uma construção. Aliás, é genial a metáfora isóptera, que podemos interpretar não só como uma analogia à corrupção brasileira, como também à proliferação religiosa indiscriminada dos tempos atuais.

Portanto, ao criticar o estado atual do nosso país, as três partes que dividem o filme acabam por dizer muito mais do que aquilo que se vê na tela. Se no primeiro ato remete-se ao cabelo como fase de recuperação, é bom lembrarmos que o tempo retratado, nos primeiros minutos de projeção, é o pós-ditadura. "1979 foi um ano difícil", diz um personagem. Retrata-se um período de lembranças, ainda recentes, de restrições dos direitos civis e humanos. Não é à toa que o marido compare a esposa à cantora Elis Regina, um nome artístico forte e contestador dos tempos de chumbo. Aqui, então, o cabelo, além de resistência, também é um forte símbolo da rebeldia e da contestação. O câncer, na terceira parte, surge literalmente no corpo mutilado da personagem. O corpo do indivíduo e o corpo do edifício mesclam-se como uma coisa só, e denotam o histórico pernicioso de saqueamento, roubos e destruição do nosso país. No entanto, o amor, do segundo trecho, vem, propositalmente, no meio. Como uma força de vida, uma forma de lidar com as coisas mesmo que tudo ao redor esteja errado. O cabelo, o amor e o câncer são de Clara, mas também são ótimas metáforas sobre o Brasil. 

A despeito da realidade circundante, a jornalista aposentada goza a vida como ninguém e distribui afetos. Não por acaso, diante das situações complicadas provocadas de forma proposital pelos donos da empreiteira, a personagem não recorra à polícia. Clara é uma personagem de natureza subversiva. Não se alinha ao sistema no qual as forças policiais são o instrumento máximo da opressão. Ela é da geração que vivenciou a ditadura. Diante das insatisfações, faz protesto à sua maneira, com música, com o corpo, com vinho e com o próprio desejo sexual. Não se deixa contagiar pela inocuidade da violência, assim como não se deixa dominar pelos “modismos” tecnológicos dos tempos modernos. A reação final da protagonista, apesar da agressividade contida, é muito mais um protesto contra àqueles que a perturbam, do que um puro e simples gesto violento. Desconfio que os black-blocs que atacaram, preferencialmente, as instituições bancárias nas manifestações de junho 2013, seguiram muito de perto essa linha de pensamento. 

Com seu segundo longa-metragem de ficção, Kleber Mendonça Filho se firma como um dos grandes cineastas brasileiros. Proporcionou à atriz Sônia Braga seu merecido reencontro com as telas e com o público, algo que não acontecia desde Tieta do Agreste, de Cacá Diegues, há 15 anos. Assim como propiciou ao espectador uma obra audiovisual única, de resistência a um cinema de fórmulas fáceis e de valorização da memória como um dos bens mais valiosos do ser humano. Politicamente, Aquarius é um trabalho indispensável. Artisticamente, é um dos melhores do ano. Um filme para cinéfilos e brasileiros com o juízo no lugar.

A foto do protesto em Cannes 2016