domingo, 23 de março de 2014

Ninfomaníaca: a pornografia a serviço da reflexão

       

         Fetichismo, masoquismo, sadismo, voyeurismo, ménage à trois, bondage...Se algumas destas palavras soarem estranhas aos seus ouvidos ou lhe causar algum tipo de incômodo pelo que possam remeter, talvez você deva passar longe de uma sessão do filme “Ninfomaníaca”. (Apesar de achar que você deveria enfrentar seus preconceitos e se arriscar numa sessão). Em seu novo filme, o genial dinamarquês Lars Von Trier descarta todo o manual da correção política que domina o cinema atual (e o mundo como um todo) e investe pesado em cenas de sexo explícito que, se não lhe causar nenhuma ofensa aterradora, lhe fará embarcar numa narrativa de obscuridade, crueza e tristeza que acabará por desenhar um perfil da condição humana. O longa-metragem narra a saga erótica de Joe, uma mulher viciada em sexo que não mede esforços para satisfazer os seus desejos. Das descobertas sexuais ainda na infância até a fase adulta, acompanhamos uma jornada de vida permeada pelo caos, pelo desespero, pela degradação e pela melancolia. O filme, em sua versão original, possui cinco horas e meia de duração, mas, por motivos mercadológicos, teve que ser dividido em dois volumes. A primeira parte, lançada em janeiro, vai da descoberta à perda do prazer da protagonista. Já a segunda, lançada em março, vai da tentativa de resgatar o prazer perdido à aceitação de si mesma.

            No primeiro volume, ferida e abandonada, Joe (Charlotte Gainsbourg) é encontrada por um homem de meia idade chamado Seligman (Stellan Skarsgard). O estranho oferece ajuda e a leva à casa dele. Entre um pouco de conforto e algumas xícaras de chá, a mulher passa a contar seu passado de promiscuidades. É nessa relação entre a mulher e o velho que o filme vai sustentando sua narrativa. Enquanto ela discorre sobre a vida, o homem tece suas analogias e reflexões na tentativa de entender o comportamento dela, sem nunca de fato chegar à uma conclusão satisfatória. Essa relação pode ser pensada de várias formas. A primeira, e mais evidente, é a relação paciente e médico. Como um psicanalista, Seligman se coloca diante de Joe apenas tentando entender os caminhos que a levaram a tal ponto de destruição. Mas, num segundo olhar, podemos estabelecer outras relações muito mais interessantes como a relação pecadora e padre. Joe, como quem peca, confessa todo o seu passado de infortúnios aos quais se submeteu na busca de um prazer insaciável. Quando encontra o velho lhe diz que é uma pessoa má e que merece tudo o que lhe aconteceu, assumindo assim uma postura de quem busca por castigo divino ou por perdão. Seligman, no entanto, ouve todas as confissões com complacência, como um bom padre. A condição sexual de Seligman, revelada no segundo volume, atesta seu papel de bom ouvinte. O prazer que encontra nas histórias que lhe são narradas concentra-se na curiosidade intelectual e não na excitação que elas possam causar. Mas há que se fazer um parêntese: em filmes de Lars Von Trier nada é o que realmente parece ser. Essa relação análoga a um confessionário religioso, talvez seja a melhor que podemos estabelecer entre os personagens, pois a sexualidade e a religiosidade se misturam o tempo todo no filme, de forma mais clara no segundo volume que no primeiro. E esse é um ponto-chave de todo o enredo. Antes de falar sobre sexo, “Ninfomaníaca” é um filme que fala sobre a religiosidade como um caminho não de salvação, mas de perturbação, tabus, preconceitos e, principalmente, hipocrisias.

            Desde que estabelecida a moral da civilização judaico-cristã, um cipoal de neuroses passou a afetar o comportamento humano, principalmente de mulheres. Basta a leitura dos principais livros do Romantismo/Realismo para atestar que a mulher que traía o marido era punida, sem mudança de regra, ora com a loucura, ora com a morte. Não é em vão que o cineasta escolha a figura da mulher como protagonista da maioria de seus filmes. É nela que recai toda a culpa, toda a responsabilidade, todos os medos, todas as cobranças de uma sociedade machista e patriarcal. A sexualidade da mulher, uma vez submetida ao homem, precisa estar sempre na ordem do dia, bem composta nas engrenagens social, familiar e amorosa. Transgredir essas regras, invariavelmente, vem acompanhada de uma torrente de palavras pejorativas tais como puta, vadia, piranha e por aí vai. Um homem de peito nu, de bermuda caída cintura abaixo com a cueca à mostra é algo aceito pela sociedade. Agora, uma mulher de pouca roupa é acusada, apontada, ofendida e difamada. É na mulher que se deposita a cobrança de um casamento feliz e saudável, o sucesso ou fracasso da criação de um filho. E quantas dessas mulheres, cobradas o tempo todo, tentam se adequar aos padrões impostos e acabam, por fim, infelizes? Joe é uma dessas mulheres. Ela banaliza o ato sexual por causa das regras que lhe foram impostas desde criança. Cobrada, direta ou indiretamente, para formar uma família, encontrar um homem a quem deva ser fiel, parir uma criança e amá-la por toda a vida, Joe nem de longe se enquadra nesse modelo. Mas, uma vez inserida neste mundo de tabus religiosos e conservadorismo hipócrita, acaba por tomar atitudes consideradas abomináveis. Abandona o filho porque não consegue se ver como mãe zelosa, mas o faz não sem antes sofrer. Abandona o marido porque não consegue, apenas com um homem só, sentir prazer e o próprio reconhece não pode dar a ela o tanto que deseja. 

           Joe banaliza o sexo porque vive à margem da sociedade, negando o que sente, o que quer, o que deseja. A degradação de Joe é nada mais, nada menos do que um desdobramento de uma sociedade que impõe normas comportamentais de todos os tipos, que fomenta interdições religiosas e descarrega na mulher toda a culpa do mundo. O vício em sexo é um reflexo dessas circunstâncias sociais contaminadas de opressões sistemáticas. Seligman, ao final do segundo volume, levanta a questão: se um homem agisse como Joe seria ele alvo de julgamento? Em minha opinião, de quem tenta entender o mundo com todas as suas contradições, creio que para esta pergunta há uma resposta. Se fosse um homem heterossexual, certamente não recairia sobre ele toda essa punição que se aplica à mulher. Mas em um homem homossexual, sim. Pois compartilho da teoria de que quando há um ataque homofóbico não é o homem em si que está sendo punido, mas a feminilidade que nele transparece. Não quero discorrer sobre teorias. Mas fica evidente que aquilo que é da ordem do feminino sempre foi alvo dos mais violentos ataques e assim permanece no mundo atual.
           
            O que o cineasta quer com essa história é provocar o público e isso Lars Von Trier faz muito bem desde que se tornou célebre com o filme “Ondas do destino” de 1996. Seu desejo é mexer com as próprias limitações do público, brincando o tempo todo com a plateia, mexendo com assuntos considerados tabus, incluindo neste pacote a sexualidade infantil e a pedofilia. Ao colocar dois personagens dentro de um pequeno quarto discursando sobre assuntos considerados polêmicos, é como se o diretor nos convidasse a observar aquela conversa como quem olha por um grande buraco da fechadura que é a tela do cinema. É, portanto, proposital a repetição da frase “Preencha todos os meus buracos” que a personagem principal profere algumas vezes durante a exibição do segundo volume. Uma frase que pode ser entendida não apenas da forma sexual óbvia, mas também pode ser entendida como a busca incessante do preenchimento do próprio vazio existencial, algo inerente a todo ser humano. Sabendo que seu filme causará controvérsias, Lars Von Trier traz o espectador para o jogo cinematográfico como se o convidasse a também preencher os buracos, não os sexuais, mas os de sua narrativa cheia de incoerências, contrastes e contradições entremeada de cenas de sexo.

            Cheio de participações especiais, o que torna alguns capítulos do filme um deleite a parte, “Ninfomaníaca” traz a atriz Uma Thurman, que aparece no primeiro volume, como uma mulher traída e sem noção, que leva os filhos para conhecer a cama onde o pai trai a mãe. É um dos momentos mais hilários do filme e a representação máxima do recalque feminino. E o ator Jamie Bell, que surge no segundo volume num dos momentos mais sádicos, como um homem que atrai mulheres com o único intuito de lhes dar porrada e os dois tiram prazer disso. É uma espécie de garoto de programa misógino. Essa parte do filme tem uma cena de caráter religioso fortíssimo ao colocar a mulher em posição de castigo (com as nádegas voltadas para cima) sendo açoitada como se estivesse sendo crucificada às avessas. É uma cena extremamente sádica, forte e inquietante. Há ainda no elenco as presenças de Shia Labeouf (nos dois volumes), como o marido de Joe. Willem Dafoe (somente no volume 2), como um cobrador de dívidas para o qual Joe trabalha. Christian Slater (somente no volume 1), como o pai da protagonista e a atriz revelação Stacy Martin (nos dois volumes), como a Joe jovem.

         O longa-metragem é corajoso e oportuno por provocar o público de cinema, atualmente, tão anestesiado diante de narrativas insípidas. Algumas pessoas poderão dizer que a obra é de mau gosto, por exibir genitálias com tanta naturalidade e cenas de sexo que deixarão qualquer conservador ruborizado, mas o filme é esperto por incorporar em seu enredo justamente essas prováveis reações da plateia. É contundente a cena em que a protagonista pronuncia a palavra nigger para se referir a dois negros com quem ela tentou fazer um ménage a trois. Seligman recua, dizendo para que ela não utilize o termo, pois é considerado politicamente incorreto. E ela discorda, dizendo que ao deixarmos de pronunciar alguma palavra já estaríamos revelando o nosso preconceito. Não é exatamente isso que a sociedade faz? Quando nos incomodamos com algo, procuramos logo eliminar ou mudar, em vez de enfrentar e tentar entender. Eis uma excelente crítica do comportamento humano contemporâneo. Com os dois volumes de Ninfomaníaca, o diretor, que também escreveu o roteiro, quis propor uma reflexão acerca da hipocrisia relacionada ao âmbito da sexualidade. É patente que a compreensão do ser humano em relação às questões que envolvem o sexo é bastante enviesada e limitada o que incorre, na maioria das vezes, em conclusões e ideias estapafúrdias. Porém, Lars Von Trier não tem a mínima pretensão de trazer respostas para sua proposta cinematográfica, ele deixa que o público julgue com os elementos de que dispõe, sejam eles preconceituosos ou não. É um trabalho que mexe com as entranhas do comportamento e do corpo humanos. Um filme que utiliza a pornografia a serviço da reflexão. E isso o torna de grande relevância no cinema mundial. 

       E quem diria que em um filme rotulado como “pornográfico” haveria espaço para a poesia. Pois há. Em um momento da projeção, Joe descobre a árvore com a qual se identifica depois de procurá-la por anos. Em sua infância, era um hobby que seu pai tinha de procurar uma espécie de árvore favorita, que seria aquela que mais o representaria. A protagonista a encontra ao se reconhecer num grande tronco retorcido, solitário, encravado em cima de uma montanha. Um bela metáfora do que ela é no mundo. Seu pai lhe dizia que as árvores desfolhadas durante o inverno revelavam suas almas projetadas na forma de variados galhos secos e Joe se reconhece exatamente num grande tronco torto e seco. No meu entendimento, a cena vai além ao nos dar a dimensão do que somos quando nos vestimos. Será que sem roupas (o que considero uma de nossas primeiras máscaras sociais) seríamos tão hipócritas? Será que daríamos tanta importância ao sexo como é recorrente no mundo atual? Pecado e culpa tomariam nossas consciências e acabariam por criar, em consequência, uma gama de perversões?

        Como disse antes, não há respostas prontas em “Ninfomaníaca”, mas o final deixa evidente que por trás de uma aparência de normalidade, todos nós, por mais bem-intencionados que sejamos, escondemos, sob toneladas de dissimulações, alguma perversão. E assim seguimos, disfarçados de belas árvores cheias de folhas quando na verdade somos estranhos galhos tortos.



quinta-feira, 6 de março de 2014

A Grande Beleza - O 14º longa-metragem italiano vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro



              Depois que saí de uma sessão do filme “A Grande Beleza” foi difícil definir em poucas palavras o que o filme representou para mim. Levei alguns dias relembrando as cenas assistidas, os personagens que transitaram pela tela e as frases proferidas. Pareceu-me uma daquelas viagens que fazemos e, depois de retornarmos, tentamos lembrar dos detalhes para saber se, de fato, ela foi boa. À primeira vista, não considerei o filme de fácil compreensão. É o tipo de trabalho que exige do público olhos atentos e perscrutadores. E isso, não é ruim. Certo de que cada pessoa poderá tirar suas próprias impressões da obra, eis as minhas.

      O filme do cineasta Paolo Sorrentino, um dos expoentes do cinema italiano contemporâneo, nos faz embarcar numa narrativa de imagens belíssimas de uma Roma que insiste em não deixar de lado seu passado de grandeza e beleza. É neste cenário que conhecemos Jep Gambardella, um homem de 65 anos que transita pela alta sociedade romana freqüentando festas, eventos e quaisquer outras interações sociais. Autor de apenas um livro, o protagonista vive de sua fama pregressa e mantém sua agitada vida social entrevistando novos artistas que vêm se destacando no cenário das artes e chamando a atenção da crítica especializada.

            O cineasta, ao lançar seu personagem em meio a um enredo cheio de contrastes e contradições, faz com que o público também reflita sobre aquilo que está vendo. E ao refletirmos, sentimos o mesmo que Gambardella está sentindo: um certo desconforto. Diante dos cenários exuberantes de Roma, que habitam o imaginário de todo viajante, encontramos um homem desacreditado do mundo e das pessoas. Isso pode ser observado em suas conversas com amigos as quais não poupa ninguém com suas opiniões diretas e mordazes. Jep é um sujeito paradoxal, ao mesmo tempo em que critica o mundo em que vive e os rumos que Roma tomou (uma crítica direta a era de Silvio Berlusconi), ele usufrui de tudo aquilo que menospreza. Em certo momento, ele tece comentário ácido sobre a sociedade mundana para, logo em seguida, afirmar que queria ser o "rei dos mundanos". As cenas construídas demonstram todo o tédio que envolve o comportamento e o pensamento do homem misantropo. Somos apresentados a uma elite envelhecida, fútil, banal, que se entrega à festas regadas a álcool e a conversas sobre a vida alheia. É uma visão desencantada do ser humano e uma crítica contundente dos caminhos medíocres que o mundo vem percorrendo. A cena em que Jep observa um navio afundado (foto acima) é inserida no filme para lembrarmos da tragédia do Costa Concordia, navio que naufragou na Itália em 2012 matando mais de trinta pessoas. Após o naufrágio, o comandante, que deveria zelar pela tripulação e pelos passageiros, fugiu. Foi um inteligente enxerto feito pelo cineasta para falar do comportamento humano vigente e totalmente coerente com a realidade vivida e observada pelo protagonista.

            Jep Gambardella é um acerto do roteiro de Sorrentino, escrito em parceria com Umberto Contanello, e que na interpretação do ator Toni Sevillo encontra a sua performance perfeita. Jep tem um ar perdido desenhado no rosto, parece inconformado, mas ao mesmo tempo resignado com o mundo vulgar ao qual pertence. Pelos amigos, é cobrado o tempo todo para que escreva um novo livro, mas argumenta, dizendo que não encontra mais beleza na vida e, por isso, não consegue escrever. No filme, as palavras ditas, ganham força nas imagens mostradas. Quando caminha por Roma, o escritor não deixa de observar o contraste entre a magnitude dos monumentos históricos e a decadência humana que se formou em torno deles. E é nesse jogo entre grandeza e medianidade, expressividade e inexpressividade, singularidade e decadência que o filme nos leva até o fim. Vivendo de entrevistar novos artistas, o escritor se vê diante de uma arte inusitada, como a garota masoquista que, nua, se atira contra uma parede até sangrar ou a menina furiosa que lança tintas sobre uma tela com a birra de uma criança própria de sua idade. Ao final, todos aplaudem efusivamente. Aqui temos um dos principais pontos de reflexão do filme: num mundo no qual qualquer pessoa pode ser artista, o que é arte hoje em dia?

            “A Grande Beleza” é uma produção de muitas camadas, de muitos simbolismos, muitas cenas interessantes e muitos questionamentos, o que dá ao espectador numerosas possibilidades de reflexão. Dentre tantos olhares que o filme lança para a vida contemporânea (incluindo um estranho olhar sobre a religião), na minha opinião, a grande crítica  feita é a já conhecida ideia de que a beleza é apenas um momento, algo passageiro como a vida, mas que nós, seres mortais, parecemos nos esquecer constantemente. É da essência do belo ser efêmero e é nisso que reside toda a tragédia. Não é à toa que Gambardella fique preso a uma memória de seu passado, quando ainda jovem descobre o amor e o desejo por uma garota ou quando é convidado a assistir uma exposição de um fotógrafo, que registrou num mosaico fotos de seu rosto desde o nascimento até os dias atuais, e com essa experiência tem a prova cabal de que o tempo corrói tudo e que toda beleza humana, um dia, se dissipará

            No último domingo, “A Grande Beleza” recebeu o Oscar de melhor filme estrangeiro, o 14º destinado a um filme italiano. Abaixo, uma listinha com os quatorze vencedores. Um bom começo para conhecer um pouco mais do cinema italiano. Fica a dica.


1-     Vítimas da Tormenta – Vittorio de Sica
2-     Ladrões de Bicicleta – Vittorio de Sica
3-     Três Dias de Amor – René Clément
4-     Brinquedo Proibido – René Clément
5-     A Estrada da Vida – Federico Fellini
6-     Noites de Cabíria – Federico Fellini
7-     8 ½  - Federico Fellini
8-     Inquérito a um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita – Elio Petri
9-     O Jardim dos Finzi-Contini – Vittorio de Sica
10-  Amarcord – Federico Fellini
11-  Cinema Paradiso – Giuseppe Tornatore
12-  Mediterrâneo – Gabriele Salvatores
13-  A vida é Bela – Roberto Benigni
14-  A Grande Beleza – Paolo Sorrentino



quarta-feira, 5 de março de 2014

A fotografia mais famosa dos últimos anos: programada ou espontânea?


          Tive um professor de literatura na faculdade que entrava na sala de aula bradando: “Tudo é ficção”. Ele não dava bom dia e nem cumprimentava ninguém, já entrava dizendo, em alto e bom som, “Meus queridos alunos, tudo é ficção”. Era quase um bordão. E logo em seguida, após proferir a sentença, iniciava suas aulas, que geralmente levavam a turma a pensar na frase que ficava ecoando nas mentes. O motivo desta introdução, já, já, explicarei. Antes, quero falar da selfie do Oscar 2014.

 Selfie é uma expressão americana utilizada quando uma pessoa tira fotos de si mesma, como num autorretrato. A prática tornou-se frequente com o uso de celulares com câmeras. Não é nada difícil encontrar alguma selfie pelo Facebook com gente afastando a câmera e tirando uma fotografia com o namorado(a) ao lado, com os amigos numa festa, com o cachorro no colo ou mesmo sozinha. Enfim, uma infinidade de possibilidades. A expressão tornou-se famosa e rompeu os limites do mundo norte-americano, chegando ao vocabulário das línguas de outros países. Basta dar uma olhada em textos de revistas e jornais de nosso país para rapidamente encontrá-la. A nova palavrinha do século XXI, ainda não está em nossos dicionários, o que gerou em mim uma dúvida de concordância: seria a selfie ou o selfie? Quando escrevi o texto sobre o Oscar e intitulei “O Oscar além da festa, dos luxos, dos egos inflados e do selfie”, usei a expressão no masculino porque achava que se referia ao movimento, ao gesto de virar a câmera do celular na própria direção. Mas, dando uma circulada pelos textos on line de nossos principais veículos de comunicação, observei que a maioria está utilizando no feminino. Certamente em analogia à palavra feminina “fotografia”. Então, fui lá e corrigi o meu título.

            Dúvidas de gêneros à parte, a selfie tirada no Oscar (foto acima) do último domingo vem dando o que falar. A foto, logo após ser tweetada, rapidamente gerou 1 milhão de retweets, prova de que a audiência estava ligada na apresentação, que de fato teve índices recordes e bateu até mesmo a audiência fenomenal - histórica que cabia ao último episódio do seriado “Friends”. Em menos de dois dias, somando mais de 3 milhões de replicagens, a selfie do Oscar tornou-se a mais retweetada da história do Twitter. Com tanta gente curiosa e interessada na fotinho de celular, rapidamente ela ganhou status de fotografia mais emblemática da história do cinema e da premiação.

            Vejo dois motivos para esse prestígio todo sobre a selfie oscarizada. Primeiro, a fotografia representou uma quebra de protocolo. A cerimônia do Oscar sempre foi permeada por uma fama de seriedade. Afinal, os americanos estão premiando aquilo que fizeram de melhor ao longo do ano. (O que se formos pensar bem, não tem sido muita coisa). Toda a pompa das roupas dos astros e estrelas de Hollywood demonstra que aquela não é uma festinha qualquer. É mais que isso. É cerimônia de gala, de reverenciamento de grandes talentos, homenagens a quem faleceu e a grandes lendas do cinema que ainda estão vivas, portanto, todos devem se comportar com deferência. Todos devem se levar a sério, todos devem se fazer sérios. Tanto é que muitas macacadas (Vide Roberto Benigni quando ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro por “A vida é Bela” em 1999. Se não se lembra do momento, procure no YouTube), sempre são vistas com maus olhos. Mas o Oscar, nas décadas recentes, tem se levado a sério demais, o que tem tornado a festa bastante chata. Ao realizar um gesto comum e recorrente das massas, o Oscar aproximou-se muito mais do público e tirou até mesmo de suas estrelas aquela aura de intocáveis. A condução do programa pela apresentadora Ellen DeGeneres, popular na televisão americana, e a presença de entregadores de pizza no palco reforçaram ainda mais esse lado menos formal da festa.

            O segundo motivo é que a selfie reuniu atores e atrizes de diferentes gerações. Estavam lá, a nova geração encabeçada por Jennifer Lawrence (Jogos Vorazes) e Bradley Cooper (Se Beber, não case) ao lado de figuras símbolo do cinemão americano: Julia Roberts, Meryl Streep, Kevin Spacey e o casal mais famoso Brad Pitt e Angelina Jolie. Ainda figurava na fotografia, a artista referência da noite em que o filme “12 anos de escravidão” venceu o Oscar de melhor filme, o primeiro da história da premiação escrito, dirigido e interpretado por negros: a atriz queniana/mexicana Lupita Nyong`o, vencedora do Oscar de melhor atriz coadjuvante. A fórmula era perfeita: quebra de protocolo, reunião de artistas de diferentes gerações e um comportamento bastante atual e popular. Resultado: repercussão no mundo todo. A foto circulou por todos os jornais on line e é uma das mais comentadas nas redes sociais. Uma fama que não deixará a selfie ser esquecida tão cedo, se é que será esquecida, e que lhe deu ares cult.

            No entanto, lendo as notícias recentes, vi a denúncia de que a selfie foi um golpe de marketing. A Samsung, empresa que patrocinou a transmissão do Oscar, tinha feito um contrato com a apresentadora do programa, o que incluiu um treinamento para que a foto fosse feita. A anfitriã da festa negou que tudo tenha sido forjado. Mas não é muito difícil suspeitar que isso realmente tenha acontecido. Com uma audiência altíssima, as empresas, principalmente as de comunicação, saem no tapa para terem um espaço durante a exibição do programa e assim exibirem seus produtos. O celular usado para a famosa selfie era o lançamento mais recente da Samsung. São os tempos modernos, uma fábrica de momentos fabricados. Se até os nossos sentimentos estão cada vez menos orgânicos, não dá para duvidar que uma simples selfie tenha sido pensada antes de ser executada.

            Mesmo assim, toda essa polêmica em torno da selfie não diminui seu caráter de fotografia emblemática dos últimos tempos no mundo do cinema. Pelo contrário, só aumentou ainda mais a sua fama. E é isso mesmo que a Samsung quer, que O Oscar quer, que o mundo das celebridades quer, que o público em geral quer: polêmica. Fico pensando: quem sabe a selfie realmente não tenha sido espontânea e a informação que denuncia a armação do momento, essa sim, seja falsa. Num mundo no qual o jogo de aparências é cada vez mais intenso, no que podemos acreditar? Pois é, talvez nunca saberemos se a selfie foi ou não espontânea. O que a torna ainda mais célebre.

            Toda essa história em torno da selfie me fez lembrar de uma renomada fotografia, também envolta por polêmicas. Se voltarmos no tempo, lá em 23 de fevereiro de 1945, lembraremos que uma grande fotografia foi tirada em meio a Segunda Guerra Mundial. Era a conquista dos americanos na batalha de Iwo Jima. A foto de Joe Rosenthal (foto abaixo) registrou cinco fuzileiros e um médico no momento em que içavam a bandeira americana. A fotografia ganhou o prêmio Pulitzer, percorreu o mundo inteiro e entrou para a história. Porém, a fama de que aquele momento não tinha sido natural, mas fruto de uma armação, sempre assombrou a fotografia. Pessoas que estavam presentes no momento do içamento da bandeira, disseram que Rosenthal chegou atrasado no monte Suribachi e pediu para que repetissem o gesto, conduzindo os soldados novamente a levantar a bandeira, por várias vezes, até que conseguisse o clique perfeito, aquele que entraria para a história. A pergunta que não quer calar: o que de fato nessa vida é espontâneo, natural ou sincero?

            Só para lembrar do meu professor de literatura com o qual comecei esse texto, ele foi apenas um gesto de escrita. Algo elaborado por mim apenas para iniciar o meu texto. Ele nunca existiu. A vida é assim, meus caros... tudo é ficção.



segunda-feira, 3 de março de 2014

O Oscar além da festa, dos luxos, dos egos inflados e da selfie

       
           O Oscar 2014 foi uma grande festa para os realizadores do filme “Gravidade”, longa-metragem blockbuster, que arrebatou nada mais, nada menos do que sete estatuetas. A maioria foi destinada às categorias técnicas, mas dentre elas, o cobiçado prêmio de melhor diretor para o mexicano Alfonso Cuarón. Pois é, um mexicano roubou a cena dos americanos. Não que os concorrentes de Cuarón fossem ruins, pelo contrário. Entre eles, havia um mestre do cinema, Martin Scorsese. Mas o seu excelente e divertido filme “O lobo de Wall Street” era bastante ácido para o comportamento conservador dos votantes da Academia de Cinema de Hollywood. A indicação, no entanto, por si só representou o reconhecimento de seu talento e, principalmente, de sua relevância para o cinema atual.

            Mas o que interessa aqui neste post, não é falar sobre quem venceu ou perdeu, mas sim tentar descobrir se há algo por detrás dos prêmios concedidos na noite do último domingo. Como cinéfilo, bem sei que o Oscar é pura politicagem. Premia seus atores mais icônicos com o propósito de eternizá-los no hall da fama, recompensa aqueles que demonstram talento mas sem que esqueçam de que é o dinheiro quem manda por aquelas paragens e reconhece produções e artistas estrangeiros com o único intuito de cooptá-los para sua prolífica indústria. Mesmo assim, quero acreditar que há algo que transcenda todo o luxo,  o desfile de moda, os egos inflados, as piadinhas de gosto duvidoso, os tombos de estrelas e o selfie retweetado milhões de vezes.

Ao premiar Alfonso Cuarón, os votantes conferiram a um latinoamericano o seu primeiro Oscar de melhor direção. O escritor mexicano Guillermo Arriaga responsável pelos roteiros dos filmes “Amores Brutos”, “21 Gramas” e “Babel” reconheceu em sua conta no Twitter a importância do prêmio: “Seja ou não seja Gravidade um filme mexicano, fez muito bem ao cinema mexicano esses Oscars”, disse o entusiasmado roteirista. O fato é que, quando os norte-americanos premiam um habitante de terras vizinhas com um prêmio tão importante quanto o Oscar, preconceitos e fronteiras passam a ser atenuados, mesmo que inconscientemente. Não se trata de bondade ou favor, mas de reconhecimento. Os mexicanos, vistos como sustentáculos da combalida economia americana, tem no Oscar de Cuarón uma valorização de sua importância na cultura americana não somente como esteios das engrenagens econômicas, mas também por seu talento artístico. É como se o cineasta vencedor dissesse: “Nós somos capazes de muito mais”. Eu quero acreditar nisso.

            Seguindo nessa linha de raciocínio, podemos pensar no prêmio destinado a Lupita Nyong`o (foto acima), que fez bonito com sua atuação em “Doze anos de escravidão”, não deixando espaço para as concorrentes. Nascida no México (sim, mais uma mexicana no Oscar), a atriz foi criada no Quênia (os pais são quenianos) e, posteriormente, foi para os Estados Unidos onde passou a viver. Ao vencer na categoria de atriz coadjuvante e erguer os braços para o público com a estatueta dourada em mãos, Lupita não só venceu as barreiras geográficas impostas por anos de história, como também venceu as barreiras raciais. Exagero meu? Pode ser. Mas quero continuar acreditando nisso.

            “Doze anos de escravidão”, que levou o prêmio de melhor filme, atestou esse interesse da Acadêmica de Cinema em laurear produções que abordem questões de temática difícil de ser digerida. Nas últimas décadas, o reconhecimento dos negros na cultura norte-americana vem sendo feito por via da reflexão artística. “O mordomo da Casa Branca”, outro filme recente sobre o mesmo assunto, apesar de sentimentalista, passou a limpo a história de lutas e sofrimentos do negro na América até a chegada de Barack Obama à presidência. É como se o país inteiro pedisse desculpas pelas atrocidades cometidas no passado e com esse movimento tentasse diminuir o racismo ainda existente nas terras do Tim Sam. Pode parecer ingenuidade minha, mas toda vez que um filme com a temática de “12 anos de escravidão” é festejado numa premiação como o Oscar ou toda vez que atores e atrizes negros são agraciados com o prêmio, sinto como se o preconceito racial abrandasse um pouco mais. Eu quero realmente acreditar nisso.

            Não podemos esquecer dos prêmios de melhor ator para um revigorado Matthew McCounaghey e de ator coadjuvante para um transformado Jared Leto. Ambos estrelando o mesmo filme “Clube de Compras Dallas” e retratando questões polêmicas que muitas vezes são jogadas para debaixo do tapete pelo mundo conservador: a Aids e o mundo dos travestis. E o que dizer do prêmio para Cate Blanchett? Bom, ela era carta marcada. Mas seu papel em “Blue Jasmine”, filme de Woody Allen, é um retrato desses tempos modernos. A Jasmine de Blanchett é a imagem do desespero do ser humano contemporâneo que em busca de status acaba enlouquecendo. Nesses prêmios há um jogo duplo: ganham os artistas pela coragem com que se lançam em seus papéis, deixando de lado toda a vaidade. Mas também ganham as temáticas abordadas, o tapa na cara, o soco no estômago, que incomoda as plateias do mundo inteiro e derruba toda a hipocrisia. Faço menção também ao prêmio de melhor roteiro original para "Ela" de Spike Jonze, uma história consonante com os melancólicos tempos atuais e os rumos que os sentimentos estão tomando em meio a tanta tecnologia disponível.

            E os sete Oscars para "Gravidade"? Seria apenas pura massagem no soberbo ego dos americanos que se autocongratulam por sua capacidade de fazer bons filmes de entretenimento (muitas vezes sem estofo intelectual), o que no caso do filme de Cuarón tornou-se uma exceção? Não, quero acreditar que há algo mais. Quero acreditar que premiando "Gravidade", antes de tudo, premia-se a ficção científica, um gênero que por excelência discorre sobre a vida, sobre a existência, sobre a nossa condição humana, atualmente tão devastada por todo tipo de violência. Se a arte tem o poder de nos fazer refletir, pensar e, quiçá, mudar, os filmes premiados pelo Oscar, talvez repercutam pelo mundo levando mensagens que desnudem aquilo que muitos de nós, muitas vezes (ou na maioria das vezes), não quer ver ou finge não ver: a complexidade e a diversidade do ser humano.

O Oscar, considerado o maior prêmio do cinema, é exibido em mais de 80 países no mundo todo, não seria difícil pensar no impacto que uma estatueta dourada poderia causar mundo afora. Muitos dos filmes indicados, com a exceção do filme de Alfonso Cuarón que teve uma alta campanha de marketing, passariam despercebidos pelas salas de cinema. Porém, ao serem mencionados pelo Oscar, ganharam projeção mundial e suas narrativas atravessaram oceanos entrando na vida e nas mentes dos mais distintos grupos de pessoas. Pode parecer devaneio meu, mas eu quero acreditar que sim, que apesar do jogo nem sempre muito nobre engendrado pelos organizadores da premiação, há algo muito maior e significativo quando se ganha um Oscar.

And the Oscar goes to...

Filme: 12 anos de escravidão
Direção: Alfonso Cuarón (Gravidade)
Ator: Matthew McCounaghey (Clube de Compras Dallas)
Atriz: Cate Blanchett (Blue Jasmine)
Ator Coadjuvante: Jared Leto (Clube de Compras Dallas)
Atriz Coadjuvante: Lupita Nyong`o (12 anos de escravidão)
Roteiro original: Ela
Roteiro adaptado: 12 anos de escravidão
Trilha-sonora: Gravidade
Montagem: Gravidade
Fotografia: Gravidade
Efeitos especiais: Gravidade
Edição de som: Gravidade
Efeitos sonoros: Gravidade
Canção: Let it go (Frozen)
Curta-animação: Mr. Hublot
Longa de animação: Frozen (Disney)
Design de produção: O Grande Gatsby
Figurino: O Grande Gatsby
Filme estrangeiro: A Grande Beleza (Itália)
Documentário: A um passo do estrelato
Documentário (curta): The lady in number 6

Curta-megragem: Helium

P.S: Não posso esquecer a lembrança a Eduardo Coutinho nas homenagens aos mortos. Morto recentemente, o cineasta brasileiro foi de grande importância para a nossa cinematografia. Ao lembrar dele, os organizadores do Oscar demonstraram o quanto estão de olho em nosso cinema.