quarta-feira, 22 de julho de 2015

Longevidade e efemeridade em Woody Allen


Woody Allen afirma que foi uma criança brincalhona e feliz. Mas, quando se deu conta de que um dia iria morrer, tornou-se uma pessoa muito rabugenta. O diretor nos conta isso como quem conta uma anedota pessoal e, logo em seguida, vemos o quanto aproveitou-se dessa história para falar da infância de Alvy, seu personagem no filme Noivo neurótico, noiva nervosa (Annie Hall). Numa cena em um consultório, uma mãe desesperada e irritada leva o filho ao psicólogo para tentar entender por que o menino desistiu de estudar ao descobrir que um dia ira morrer. O garotinho, com muita sapiência, argumenta não ver mais sentido em fazer o que faz se o fim de sua vida é algo inevitável. Woody Allen é tão genial que não sabemos se suas histórias, de fato, são parte de sua vida ou de uma persona engenhosamente criada para sobreviver ao mundo e à poderosa indústria do cinema americano.

Seguindo essa linha de contar os “causos” da vida e dos bastidores dos filmes do cineasta, Woody Allen: Um documentário faz um registro de mais de 60 anos de carreira (53 anos só no cinema) de um artista que começou a trabalhar como comediante nos anos 50, driblou uma timidez gigantesca, se tornou ator e, posteriormente, veio a se transformar num dos maiores cineasta norteamericanos de todos os tempos. Sem deslumbramento algum e com uma boa dose de sorte, o realizador de sucessos como A rosa púrpura do Cairo, Vicky Cristina Barcelona e Meia-noite em Paris nos conta sua particular história de vida que tinha tudo para dar errado, mas acabou dando muito certo. Seu estilo avesso a badalações e meio impaciente poderia lhe conferir um ar pedante, mas o que ocorre é o oposto e o diretor acaba se tornando uma figura muito engraçada e perspicaz. A passagem em que o vemos criticando o estardalhaço que as pessoas fazem em festivais como Cannes é hilária. Em dado momento, um repórter alemão lhe diz que toda a Alemanha ama Woody Allen e ele duvida: “Todos?”. E o interlocutor confirma: “Sim, todos”. E Woody com seu humor sarcástico rebate com certa provocação: “Mas são muitas pessoas”. A unanimidade de opiniões em um país, decerto, é uma impossibilidade e o diretor, com sutil inteligência, brincava com o lugar-comum do jornalista puxa-saco.

Assistindo ao documentário dirigido por Robert B. Weide, não é difícil testemunhar o que fez de Woody Allen um grande cineasta. Humor e inteligência foram as armas utilizadas para driblar dificuldades, para conquistar fãs, produtores e profissionais gabaritados do cinema, além de atores e atrizes consagrados que abriram mão de salários astronômicos para estar num filme do diretor. E completando sua receita de sucesso: produtividade, persistência, baixo orçamento, liberdade para fazer tudo do jeito que idealizava e uma visão de mundo muito peculiar. Com mais de 45 filmes - um feito raro na história do cinema - Woody Allen vem, ano após ano, lançando um longa-metragem atrás do outro, provocando, dessa forma, um evento quase que obrigatório no calendário anual de cinéfilos e admiradores. 

É incontestável perceber que a trajetória de tenaz atividade do cineasta está intrinsecamente ligada à sua vida. Vida e obra em Woody Allen são indissociáveis. Não é por acaso que todos os personagens masculinos que cria são sempre versões dele mesmo. Ele canaliza para seus roteiros todas as suas angústias, neuroses, medos, compulsões e desejos, produzindo, desse jeito, obras tão cheias de questões filosóficas e existenciais que é impossível não se reconhecer em ao menos uma de suas narrativas. O diretor mesmo justifica sua prolificidade se baseando na teoria da quantidade. Filma compulsivamente como quem faz terapia através do cinema na tentativa de escapar da própria realidade. Faz isso como quem deseja enganar a morte, que é uma de suas maiores obsessões. A longevidade, aqui, surge como resultado da obstinação de criar sem interrupções, convertendo-se, assim, num poderoso antídoto paradoxal contra a inevitável efemeridade da vida.

O documentário peca, no entanto, por tentar dar conta de 79 anos de uma mente criativa e instigante, algo quase que ingrato se observamos o quanto de história, tanto de vida quanto do ofício da profissão, o filme acaba não explorando em suas quase 2 horas de projeção. A fase pós-Match Point, por exemplo, na qual o cineasta passa a filmar fora dos E.U.A, por si só já renderia um filme. Contudo, como numa produção ruim de Woody Allen, que sempre acaba sendo algo acima da média, o documentário, mesmo falho, ainda assim, é um excelente programa a ser assistido.

E anote na agenda: dia 6 de agosto, nos cinemas, tem filme novo de Woody Allen. Homem Irracional (trailer abaixo) é estrelado por Joaquim Phoenix e Emma Stone e conta a história de um professor de filosofia que entra em crise existencial e tem na ideia de um assassinato um novo sentido para sua vida. Não dá para perder.


terça-feira, 7 de julho de 2015

O medo e a raiva de Nina Simone


Eunice Waymon foi uma garota pobre do sul dos Estados Unidos que sonhava em ser a primeira pianista clássica negra da história americana. Por força do racismo avassalador dos E.U.A, acabou sendo rejeitada pelo conservatório de música. Seu sonho se manteve, no entanto, mesmo diante de todos os empecilhos. Com a ajuda de uma professora aprendeu a tocar piano com perfeição, amava Bach. Para se sustentar e continuar estudando música clássica, começou a cantar - e não somente a tocar - em bares. Algo inimaginável para quem sonhava em se apresentar em salões classudos e teatros pomposos. De família religiosa, precisou driblar as reprimendas que surgiriam caso sua mãe soubesse que ela cantava “músicas do demônio”. Então, para não chamar a atenção, mudou o nome e, assim, surgiu Nina Simone. Numa boate, acabou conhecendo o homem que viria a se tornar o seu marido, o sargento de polícia Andrew Stroud que, encantado com a voz da moça, prometeu transformá-la numa das maiores cantoras dos Estados Unidos. Conseguiu, a custo de muito controle e exploração. A biografia de Eunice/Nina é uma das mais interessantes e importantes no que concerne ao universo da música norte-americana.

O documentário dirigido por Liz Garbus, disponibilizado para os assinantes do Netflix e que passou por vários festivais de cinema, faz um apanhado da carreira da cantora Nina Simone que fez de sua música uma mistura de jazz, blues, soul e música clássica e, mais tarde, acabou sendo reconhecida como uma das mais poderosas vozes contra o racismo inflexível que se espalhava por seu país. Por meio de gravações de shows, fotografias, depoimentos de pessoas próximas, entrevistas gravadas em áudio e trechos de cartas e de um diário, conhecemos um pouco mais sobre esta mulher forte, combativa, de opiniões polêmicas, um pouco melancólica e bastante controversa. Agenciada pelo marido, a autora de Felling Good e Misunderstood se transformou num sucesso absoluto. Vendeu muitos discos e fez amizade com os principais artistas e intelectuais da época, mas ainda assim sentia que algo estava lhe faltando. Queria mais, e sua condição de artista famosa a empurrou para o engajamento político na luta pelos direitos civis dos negros americanos. Queria ser uma voz que incomodava. E foi. Engajou-se com tanta veemência, que chegou a convocar os negros para um combate armado contra os brancos, num protesto com claro viés terrorista. “Vocês estão dispostos a esmagar coisas brancas”, proferia com fúria.  Sua atitude radical, contudo, afetou sua carreira e ela acabou perdendo contratos. Os shows tornaram-se escassos, os programas de televisão não a convidaram mais e os empresários a abandonaram. Um verdadeiro boicote à cantora, que nos induz a pensar no poder do sistema quando, incomodado com a opinião contrária à norma vigente, decide anular uma pessoa.

Duas grandes emoções conduziram toda a carreira e vida de Nina Simone, o medo e a raiva. Não é à toa que o documentário se inicie com uma entrevista da cantora na qual lhe perguntavam o que é ser livre, e ela respondeu com convicção que "ser livre é não ter medo". Sabia o que estava dizendo e falava com conhecimento de causa. À sua época, o recrudescimento do racismo foi violento. O atentado a uma igreja do Alabama foi um dos episódios mais chocantes e tristes culminando com a morte de quatro crianças. O fato fez com que a artista compusesse uma música chamada Mississipi Goddam, que provocou rebuliço quando lançada, sendo rejeitada por muitas gravadoras e rádios. Nina Simone foi uma das primeiras artistas da música americana a colocar palavrões em suas músicas. Ela esteve presente em momentos históricos importantíssimos dos Estados Unidos como o funeral de Martin Luther King e a perigosa marcha de Selma. (Este último episódio, recentemente, tornou-se um bom filme e foi até indicado ao Oscar 2015 de melhor longa-metragem. Recomendo.). A cantora viveu todo o medo da violência do preconceito fruto da ignorância do homem. Viveu também o medo da violência doméstica ao ser surrada pelo marido, como deixou registrado em desesperados desabafos em páginas de seu diário. Sabia, como nos versos do poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade, que "a dor era inevitável, mas o sofrimento opcional", assim sendo, em vez de se fazer vítima, transformou todo o medo em raiva e canalizou toda a dor para sua arte. “A raiva a sustentava”, explicou sua filha em depoimento registrado no filme. Sugiro que se coloquem fones nos ouvidos e ouçam as canções de Nina Simone. É impossível ficar imune à dor que ela exasperava de seu timbre vocal, ela foi a voz das feridas sangrentas do racismo de seu tempo, infeliz e aterradoramente, ainda abertas, até hoje.

O documentário é linear, sem inovações ao gênero. É fácil acompanhar a história dividindo-a em cinco partes. O início, pela dedicação da menina no intuito de realizar o sonho de se tornar uma grande pianista clássica, o auge do sucesso e do reconhecimento, a fase política, o ostracismo na África e o ressurgimento na França onde viveu até a morte. Porém, “What Happened, Miss Simone?” nos mostra uma artista como poucas. Artistas que fazem de sua arte algo além da performance de palco, que pensam o papel do artista no mundo em que vivem. “Como ser artista e não refletir a época?”, questionava-se Nina em uma entrevista. Hoje em dia, é tão raro uma concepção genuína do ser artista que não esteja relacionada somente à imagem de ser uma celebridade, que é emocionante ver o quanto Nina Simone respeitava seu ofício. É fascinante ver a postura de reverência que ela tinha ao entrar no palco se inclinando durante longos segundos enquanto o público a ovacionava. Como também era instigante o olhar com o qual fitava a plateia assumindo a seriedade de quem sabia o significado de estar ali. A severidade de seu rosto, no entanto, se dissipava várias vezes durante os shows e as câmeras flagraram e registraram o sorriso contente de Nina Simone, que, em comunhão com o público, revelava a menina que insertou no nome artístico. 

Já no final da vida, foi diagnosticada com bipolaridade o que explicava, em partes, sua agressividade, algo que lhe causou muitos problemas, principalmente, quando, ressentida da América, embarcou para a África e, posteriormente, para a Europa. Suas últimas entrevistas antes de falecer ganharam um tom amargurado e desesperançoso, dizia que sua obra fora irrelevante para o mundo. Compreensível que pensasse assim, afinal, ela cantou a dor de ser artista num mundo no qual a violência, a banalidade e o preconceito estavam sendo mais fortes que a força da arte. (Qualquer semelhança com a contemporaneidade não é mera coincidência). Sua voz, de fato, incomodou muita gente, como bem queria. Mas, muito mais que provocar, ela emocionou milhões de pessoas ao redor do mundo e fez pensar. Portanto, torna-se imperioso assistir este documentário, principalmente em tempos como o nosso em que o racismo se banaliza de forma tão absurda no Brasil e no mundo. Assistir “What Happened, miss Simone?” é atestar o quanto uma voz como a de Nina Simone - seja pela qualidade artística ou pela mensagem transmitida - faz falta, muita falta.