quinta-feira, 25 de julho de 2013

O Escritor Fantasma

O clássico “O bebê de Rosemary” termina com uma cena bastante instigante. A mãe do bebê, depois de comer o pão que o Diabo amassou, se aproxima do carrinho de seu filho em meio aos discursos das pessoas ao seu redor: “Olha as mãozinhas dele”, “Olha o pezinho” e por aí vai. Tudo sugere que aquele bebê dentro do carrinho não é comum, mas algo diabólico. Ao ver o filho que gerou, a protagonista expressa o olhar mais apavorado que uma pessoa pode desenhar no rosto ao ver que seu filho é fruto de algo que vai além da compreensão humana. Em “O bebê de Rosemary”, o cineasta Roman Polanski revelou ao mundo seu grande talento na técnica cinematográfica demonstrando que sugerir muitas vezes pode ser mais interessante do que mostrar. Na condução de um filme de suspense, esta característica revela-se um artifício ainda mais eficiente.

 “O escritor fantasma” é um desses filmes no qual a sugestão é melhor que a exposição. Não foi à toa que o longa-metragem levou o Urso de Prata de direção no Festival de Berlim de 2010, provando que os méritos do cineasta de mais de setenta anos ainda são bastante relevantes ao universo da sétima arte. A película, uma co-produção entre Inglaterra, França e Alemanha, é um desses suspenses de primeira linha, com estilo, boas interpretações e uma forma de contar narrativas que revela o quanto uma boa mão na direção pode levar uma história aparentemente cheia de clichês à patamares mais elevados.

No filme, um ghost writer, interpretado pelo excelente Ewan Mcgregor, é contratado para dar continuidade às memórias de um primeiro-ministro vivido pelo ex-007, Pierce Brosnan. O ghost writer que anteriormente escrevia a biografia foi encontrado morto numa praia, aparentemente suicídio, e agora a editora, de olho nos lucros que o lançamento poderá render, precisa terminar o trabalho o mais rápido possível. Então, contratam um escritor a contragosto. No entanto, antes mesmo de assinar o contrato, ele sofre um estranho assalto o que deixa bem claro que há algo errado naqueles manuscritos deixados pelo antigo escritor. Quando começa a dar forma a seu trabalho, um escândalo mundial estoura na mídia. O político está sendo acusado de crimes de guerra que inclui seqüestro e tortura de supostos terroristas no Iraque. O filme, de forma elegante e gradativa, nos conduz ao universo recluso do trabalho de escritor, exposto muitas vezes como um trabalho tedioso. É na investigação dos fatos e na descoberta de pistas que passo a passo o protagonista vai conhecendo informações ainda mais relevantes e impactantes sobre a trajetória de vida política do primeiro-ministro biografado.

“O escritor fantasma” tem como sua principal temática a manipulação dos fatos. Sabemos que uma biografia nunca é de fato o que realmente aconteceu. Tudo vem escrito em tintas mais românticas e até os fatos mais dramáticos podem ser interpretados como algo incrível e aceitável dependendo da forma que se conta. Logo no início da projeção, os editores se reúnem para entrevistar o novo escritor e durante o papo surge a questão: o que faz uma boa biografia? O ghost-writer sem pestanejar diz: o coração. Não é à toa que até mesmo grandes bandidos, seriais killers e outras figuras subversivas podem ser humanizados numa história. Aqui, o cineasta, com certa ironia, vai nos revelando toda mentira que se esconde por trás de pessoas públicas que têm suas imagens devassadas pela mídia.

É importante observar um elemento fundamental na trama: uma grande janela que há no casarão onde reside a família do primeiro-ministro e onde o escritor fica isolado. Em determinado momento do filme, o protagonista observa um homem que tenta limpar as folhas que se espalham pelo lado de fora da casa, porém, o vento o impede de realizar o serviço. É um cena simples, mas que traz com ela informações importantes para o entendimento da narrativa: por mais que tentemos manter tudo organizado aos olhos do outro, haverá sempre algo, do qual não temos controle, que irá bagunçar tudo revelando o caos existente. Num local isolado, as janelas podem vir representadas de diversas maneiras, por exemplo, na forma da televisão ou da internet que não deixam de ser “janelas” do mundo. Com esse jogo de janelas, o cineasta e o roteirista do filme, expuseram duas realidades, a que acontece dentro da mansão e a que é informada pela mídia através dos meios de comunicação. Fatos e versões, verdades e mentiras, o ser e o parecer permeiam esta trama insidiosa.

Na era da imagem, mostrar é imperativo. No entanto, Polanski fez um trabalho às avessas: escondeu mais do que mostrou. Tudo é meio nebuloso e suspeito, assim como seus personagens. Praias desertas, céus cheios de nuvens cinzas, ventos, neblina, chuva e uma fotografia acinzentada ajudam a contar um enredo no qual nada é o que parece ser. A influência mais rapidamente percebida é a do mestre Alfred Hitchcock que se impõe principalmente na trilha-sonora composta por Alexandre Desplat. O fantasma do título além de revelar o óbvio, alguém que escreve no lugar do outro, também pode ter sentidos mais amplos. O ghost writer, que não tem nome no filme, é um ser anônimo, sem família, sem vida própria. É aquele que está sempre a espreita do outro, sabendo sempre mais do que devia, e que de posse de informações valiosas pode ser sempre uma assombração em volta de seu biografado. Saber demais num universo de grandes interesses é sempre perigoso e numa relação cúmplice na qual verdades e mentiras se debatem, o final, inevitavelmente, não será dos melhores.