sábado, 26 de novembro de 2016

Elle: uma mulher com vinte janelas


Este texto contém spoilers. Veja o filme e depois leia a crítica.

Paul Verhoeven ficou famoso em Hollywood no final dos anos 80 e começo de 90 por sucessos comerciais como Robocop: O Policial do Futuro (1987), O Vingador do Futuro (1990) e Instinto Selvagem (1992), e fracassos retumbantes como Showgirls (1995) e Tropas Estelares (1997) que, hoje, distanciados no tempo, se transformaram em cults. Fora do universo dos poderosos produtores americanos encontrou dificuldades pra filmar. Suas temáticas favoritas, a violência e o sexo, evidentemente, encontraram grandes entraves para a realização de suas ideias. A Espiã, uma produção belga-alemã de 2006, foi sua última produção com relevância. Eis que agora, o cineasta, nascido na Holanda, encontrou em território francês a oportunidade perfeita (leia-se: liberdade criativa) para realizar o seu novo trabalho. Assim, Elle surge no cinema marcado pelo rótulo de “filme polêmico”. Exibido no encerramento do Festival de Cannes 2016, o longa-metragem foi ovacionado pela crítica, mas não demorou muito para as plateias mais sensíveis começarem a tachá-lo como “filme machista” ou “filme misógino”. A explicação para a divergência de opiniões segue adiante.

Michèle Leblanc é uma executiva poderosa e criativa da indústria de videogames. Comanda sua equipe, e sua vida pessoal, com mãos de ferro e uma frieza assustadora. Mas essa informação somente chegará a nós, plateia, depois da abertura quando, subsequente ao término dos créditos iniciais, escutamos os gritos de uma mulher em desespero. Sem preâmbulos ou concessões, o diretor abre a imagem com uma brutal cena de estupro, assim mesmo, sem pedir licença, tanto quanto é o ato violento ali praticado. O que poderia seguir numa denúncia na delegacia, inesperadamente resvala para outros caminhos. Ainda machucada, Michèle se levanta, recolhe os cacos da destruição resultante da luta com seu agressor, toma um banho e finge que nada aconteceu. Esse início, por si só, gera um grande estranhamento. A partir de então, a projeção nos apresenta a uma numerosa quantidade de personagens que circundam a figura feminina principal: o filho passivo-agressivo, Vincent (Jonas Bloquet), e a raivosa e interesseira esposa dele, Josie (Alice Isaaz). A mãe idosa, Irène (Judith Magre), que paga um garoto de programa, Ralf (Raphäel Lengret), para não se sentir sozinha. O ex-marido, Richard (Charles Berling), que se sente fracassado na carreira de escritor mas, ainda assim, tenta conquistar mulheres com seu suposto talento. A melhor amiga e sócia, Anna (Anne Consigny), cujo marido Robert (Christian Berkel) a está traindo às escondidas e, por fim, o vizinho boa gente, Patrick (Laurent Lafitte), que desperta o interesse sexual de Michèle e, aparentemente, está feliz e bem realizado com a esposa católica Rebecca (Virginie Efira). Cada um desses indivíduos, por menor que seja a participação, tem a sua relevância no enredo e estão todos muito bem conectados ao longo das 2 horas e 10 minutos de duração do filme. 

O pai da protagonista, que surge como um passado do qual ela quer se esquecer, acrescenta tanto à trama que, por um momento, até acreditamos que o sangrento episódio ficcional, ocorrido nos anos 70, de fato, aconteceu. Aliás, fazia tempo que eu não via um filme que utilizasse tão bem o recurso do flashback. A própria cena do estupro é resgatada em dois outros momentos da projeção, sendo uma de rememoração, por meio de um elemento bastante marcante, o miado do gato; e a outra, de imaginação, quando a personagem tenta refazer na memória como ela gostaria que a situação terminasse, caso vencesse a luta contra o seu violador. Desse jeito, vislumbramos o funcionamento da mente diante de um trauma em um constante processo de repetição. Verhoeven, em nenhum momento, julga suas criações, pelo contrário, sem pudores, revela suas facetas mais detestáveis, trazendo à tona a mediocridade, a arrogância, a ignorância, a covardia e a vaidade humanas. Um das sequências mais importantes é quando todos estão reunidos à mesa durante uma cerimônia de Natal. Até ali, já conhecemos um pouco de cada um deles e reconhecemos suas fraquezas e seus fingimentos. A crítica que se deseja fazer, de forma bastante irônica, fica ainda mais contundente quando a encenação ocorre sob a fachada cristã. Não há como negar, trata-se de uma reflexão sobre a hipocrisia e a moralidade excessiva de nossos tempos que, tomando a decisão de jogar para debaixo do tapete aquilo que não compreende, acaba por gerar desvios de comportamentos bastante agressivos.

Adaptado por David Birke do romance “Oh...” de Philippe Djian, que também escreve o roteiro, Elle faz um inventário de seres humanos cujo desejo é a maior força motora da existência. Não é à toa que o mundo animal surja à espreita ou, repentinamente, em vários momentos da história: zebras correm numa imagem da televisão, um pássaro se fere ao se chocar contra uma vidraça, um cervo cruza o caminho de um automóvel em movimento, animais mortos são mencionados pela protagonista numa conversa quando ela conta a tragédia que viveu na infância, e não podemos nos esquecer do belíssimo gato que é tão personagem quanto os humanos. É ele, por sinal, que assiste, impassível (antes mesmo do espectador), a cena do estupro. A animalidade humana revela-se latente, pronta a se materializar quando menos se espera. Lembremos que uma das fotografias de divulgação da produção é da protagonista confrontando um gato (foto acima), numa espécie de cotejo entre mundos distintos nos quais ambos possuem seus afetos e monstruosidades. E o miado do gato, já mencionado nesse texto, serve como dispositivo de conexão entre esses dois universos. 

Isabelle Huppert, num papel que poucas atrizes aceitariam fazer, confere à sua interpretação camadas profundas cujo alcance é intangível. Não sabemos ao certo o quanto ela seduz ou é seduzida no perigoso embate que realiza com seu algoz. Também temos dúvidas sobre o quanto de psicopatia ela herdou do pai. A cena final com o filho adiciona ainda mais incertezas sobre a sua conduta. Nesse sentido, é de grande simbolismo quando o vizinho Patrick, durante uma tempestade, oferece ajuda à empresária para fechar as janelas da residência, e ela responde que na casa devem haver mais de vinte janelas. Trata-se de uma sutil metáfora da complexidade humana: Michèle Leblanc é uma mulher com vinte janelas abertas e algumas, evidentemente, fechadas. Por mais que a investiguemos, pouco a decifraremos. Assim, é mais que acertada a escolha do título construído apenas com um pronome. (Elle, em francês, significa Ela). Dessa forma,  ao associar a casa com a personagem, não me furtei de fazer comparações: a Michèle, de Isabelle Huppert, se alinha à Clara, de Sônia Braga, em Aquarius. São mulheres que, longe de serem vítimas, assumem uma postura de perscrutação de si mesmas, sondando os seus desejos e os seus medos. São duas mulheres que não recorrem à polícia para resolverem seus problemas, que não são nada fáceis de serem resolvidos sozinhos. Aqui, não se trata apenas de orgulho, mas sim de tentar compreender por meios menos maniqueístas, o mundo cheio de ambiguidades com o qual interagem. É maravilhoso que a arte cinematográfica, em 2016, tenha nos presenteado com essas obras, grandes exercícios de observação do mundo feminino por lentes nada convencionais.

Cinematograficamente, Elle é estupendo. A fotografia com palheta em tons de marrom, aproveita muito bem as luzes e as sombras dos cenários, conferindo uma ar de conforto contraditório às perversidades presenciadas. (A elite sabe esconder seus podres como ninguém). Os enquadramentos sugerem claustrofobia aos espaços filmados nos dando a impressão de se estar sempre na iminência de um novo ataque. A montagem rápida e pontual conduz a trama com bastante movimentação de cena. A direção, segura do que quer, desconstrói os clichês dos filmes de suspense. Estão lá, o gato que dá o susto proposital, o homem mascarado cuja identidade precisa ser descoberta, os suspeitos e as pistas falsas. Na intenção de contar uma história que nunca pretende ser mais do mesmo, o roteiro é um exercício de gênero cinematográfico, ao mesmo tempo em que entrega algo para além do suspense proposto. Diálogos rápidos e precisos, cheios de intenções que revelam mais do que aquilo que é dito, permeiam toda a narrativa. Como, por exemplo, a frase genial “A vergonha não é um sentimento forte o suficiente a ponto de te impedir de fazer nada”, que pode ser entendida como a tônica de toda a trama. Também é bom ficar atento ao final quando Rebecca diz “a gente acumula coisas”, cujo sentido não é só falar de ajuntamento de objetos e coisas, mas também sobre nossos acúmulos emocionais que podem promover atitudes incompreensíveis. Assim sendo, o estupro, no filme, surge como o mais alto nível dessas insanidades. 

Por isso é compreensível que muitas pessoas tenham agido com estardalhaço diante de um longa-metragem tão diferente e dúbio quanto este. Elle poderia ser um filme de crime, de vingança, de culpados, de vítimas e vilões, mas não é. É uma obra de provocação que vira do avesso algumas convenções, e Verhoeven faz isso com maestria. Um dos papéis primevos da arte é o de balançar o senso comum e fazer com que o apreciador - no caso do cinema, o espectador - consiga se colocar noutras posições distintas das que estão dadas/impostas. Em um mundo no qual a indústria cultural transformou a mentalidade do público a ponto de fazê-lo acreditar que o papel majoritário da arte é o entretenimento e o escapismo, o estranhamento provocado por Elle é mais que bem-vindo. É preciso senso crítico apurado para perceber que, o que está em exibição na tela, não se trata de misoginia e nem de machismo, ainda que fale desses temas. É como arte que Elle deve ser julgado, não como panfleto contra ou favor de causas humanas. E se a arte incomoda é porque disse mais do que deveria dizer e, na minha opinião, é melhor que se diga. Anotem: Elle é a obra-prima de Paul Verhoeven e será um daqueles filmes discutidos, estudados e revisitados ad infinitum.

 Paul Verhoeven dirige Isabelle Huppert