quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

Relatos Selvagens: mais um acerto do cinema argentino


Indicado ao Oscar 2015: Melhor Filme Estrangeiro

O que fez Relatos Selvagens cair nas graças da crítica especializada ao redor do mundo foi a competência inquestionável de seu diretor na condução das incríveis - e ótimas - seis histórias que compõem o filme. Por um viés tragicômico, Damián Szifron alinhava sua meia dúzia de médias-metragens produzindo uma crítica contundente sobre o comportamento humano contemporâneo. O diretor, em entrevistas, afirma que o formato de sua obra foi pensado por influência de séries como Além da imaginação (1959 -1964) e Alfred Hitchcock Apresenta (1955 -1965), que contavam com uma estrutura de tramas curtas com começo, meio e fim. O excelente trabalho de montagem permite nos deliciarmos com a história dos passageiros do avião que percebem que nada é mera coincidência, da garçonete que encontra seu algoz numa noite de chuva, do homem atacado numa estrada após xingar outro motorista, do cidadão que resolve se vingar da burocracia de seu país, do pai de família desesperado que tenta salvar o filho adolescente da prisão e, por último - a mais nonsense de todas - a noiva que descobre a traição do marido no dia do casamento. Nas entrelinhas das narrativas quase absurdas, a reflexão sobre a nossa relativa civilidade, principalmente, quando somos expostos a situações limítrofes.

Szifrón e sua equipe arrojada foram muito bem-sucedidos no intuito de entrelaçar entretenimento e reflexão. A câmera ágil e esperta (com certa obsessão para filmar automóveis), nos momentos certos, constrói um clima propício de suspense, drama, ação ou romance, sem cair no ridículo ou na pieguice. E quando cai é puramente intencional. As histórias são surreais, mas, em nenhum momento, perdem o foco com a realidade circundante. Se ocorrem na Argentina é tão somente por ser uma produção desse país, mas poderia muito bem se passar em qualquer grande metrópole do mundo que a crítica existente continuaria a ser a mesma. O texto é criativo, cheio de humor negro, ironias, diálogos rápidos e sem rodeios. Os atores que encarnaram os personagens parecem ter se deleitado com a interpretação. Além da figurinha repetida Ricardo Darín, que estrela oito entre dez filmes argentinos, há também as presenças ilustres de Leonardo Sbaraglia como o motorista arrogante de um Audi que se vê num desespero alucinado ao ser confrontado por outro motorista; Rita Cortese como a cozinheira que não tem paciência e com um jeito muito prático resolve problemas, Oscar Martinez (excelente) como o pai que planeja um jogo sujo e corrupto para salvar o filho e Erica Rivas como a noiva descontrolada com a descoberta do adultério do marido, entre outros. Relatos Selvagens é um desfile dos maiores nomes do atual cinema argentino.

Excetuando as qualidades dessa película, dois outros elementos me chamaram a atenção. Primeiro, a presença de Pedro Almodóvar na produção do filme. O que prova, cada vez mais, o olhar arguto do cineasta espanhol para encontrar boas histórias. O segundo é da ordem da comparação. Enquanto as nossas comédias brasileiras permanecem no estilo pueril de um Zorra Total, os nossos hermanos investem em produções mais ousadas e inteligentes sem nenhum prejuízo do sucesso nas bilheterias. Prova de que qualidade também rende grana e, o melhor, projeta o cinema com mais força em territórios estrangeiros. Não foi à toa que Relatos Selvagens foi o único filme latino-americano selecionado para Cannes no ano passado e, recentemente, foi indicado ao Oscar de filme estrangeiro. A sétima indicação de um filme argentino nesta categoria. Além disso, tornou-se o longa-metragem mais assistido da história do país governado por Cristina Kirchner.

Quem acompanha o cinema com atenção perceberá que a referência mais direta do filme de Szifrón foi Um dia de fúria (1993), longa-metragem de Joel Schumacher no qual Michael Douglas interpreta um homem que, após perder o emprego, entra em colapso provocando um caos pelas ruas de Los Angeles. Essa referência se faz ainda mais presente nas cenas em que o ator Ricardo Darín surge; uma das mais criticamente sociais. Violência urbana, descontrole, a banalidade da vida, nossa aparente civilidade contraposta à nossa animalidade intrínseca, a falta de diálogo que nos levam a atos extremos e a cultura da vingança tornam esta produção tão atual que não sabemos se rimos do que estamos vendo porque é simplesmente divertido ou porque, na verdade, nos reconhecemos tão descaradamente nas situações ali presentes que o nosso riso é apenas um movimento involuntário de incômodo e desespero. É impossível não haver identificação. Em tempos em que uma simples briga de trânsito pode ter um desfecho trágico e pessoas se matam por tão pouco, Relatos Selvagens torna-se uma obra oportuna e muito bem-vinda, mais um acerto do cinema argentino.

Para encerrar, uma última observação: atenha-se para o momento dos créditos iniciais do longa-metragem. Ao mesmo tempo em que um nome da produção aparece, alguma espécie da fauna estampa o fundo da tela fazendo uma interessante relação com as características dos personagens que os atores viverão. (Para isso, é claro, será interessante se você conhecer quem são os atores que interpretam os personagens). A equipe de produção também não escapou da brincadeira sendo ilustrados com algum animal que faça jus ao cargo desempenhado no filme. O diretor, sabiamente, escolheu para si uma raposa que ele justificou como um animal de olhar atento – qualidade de todo cineasta – e que possui uma certa sagacidade. Ideia simples, porém, genial. Assim como todo o filme.


quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Invencível: a via crucis de Louis Zamperini


Em entrevista à revista americana American Cinematographer, o diretor de fotografia Roger Deakins revelou que Angelina Jolie utilizou como referência para seu novo trabalho de direção cinematográfica o longa-metragem A colina dos homens perdidos (The Hill) de Sidney Lumet, filme de 1965 estrelado pelo ator Sean Connery. O crítico Luiz Carlos Merten do Estadão, também reparou na semelhança entre o filme de Jolie e o longa-metragem japonês Furyo- Em nome da honra (Merry Christmas, Mr. Lawrence) do diretor Nagisa Oshima, uma produção de 1983 protagonizada pelo cantor David Bowie. No entanto, para mim, a maior inspiração da cineasta/atriz, em seu segundo trabalho como cineasta (o primeiro foi Na terra de amor e ódio de 2011), foi a Bíblia. Sim, isso mesmo. O livro sagrado parece ter sido a base da construção da narrativa de Invencível, principalmente, no que se relaciona ao seu heroico protagonista. 

Louis Zamperini foi um atleta olímpico que acabou escalado para a Segunda Guerra Mundial. Após a queda de um avião em pleno alto-mar, ele e mais dois companheiros ficaram à deriva por 47 dias. Para sua infeliz sorte, eles foram encontrados pelos soldados japoneses e a partir de então tornaram-se prisioneiros de guerra. O Louis, imaginado por Angelina e seus produtores, assemelha-se a Jesus Cristo em seu calvário, isso fica nítido da segunda parte do filme em diante quando o personagem é preso e torturado. Em terras nipônicas, Zamperini é surrado ostensivamente e é obrigado a trabalhar a contragosto numa mina de carvão, carregando volumosos baldes nas costas como um Cristo que carrega a sua cruz. O prisioneiro sofre toda uma série de violências que vão desde humilhações públicas - quando, debilitado fisicamente, é obrigado a correr como um atleta olímpico tornando-se alvo das gargalhadas dos soldados japoneses - até ataques físicos deflagrados por seu algoz com requintes de masoquismo. A analogia com Cristo fica ainda mais explícita quando em momento derradeiro da projeção, o protagonista precisa levantar uma onerosa viga de madeira acima da cabeça. Num teste de resistência, ele precisa se manter assim por um longo tempo sob às ordens do oficial/vilão Watanabe, interpretado de forma canhestra pelo ator Miyavi. A cena revela o rosto sujo e extenuado do personagem iluminado pelo sol e, se nos atermos à sombra que se forma no chão, poderemos vislumbrar, por breves segundos, uma imagem análoga à uma cruz, formada da junção do corpo do homem com o pedaço de madeira. Louis é um homem crucificado pela guerra, sua jornada de vida foi de provação e a semelhança com a via crucis de Jesus Cristo não foi mera coincidência. Não é à toa, que essa cena foi utilizada como foto para estampar um dos pôsteres de divulgação da produção. A essência cristã permeia grande parte do filme.

Esse viés religioso surge entrelaçado à temática da esperança, da superação e da sobrevivência, temas caros aos norteamericanos. Isso não seria um problema, se Angelina Jolie não investisse em um sentimentalismo barato e lacrimoso e em diálogos de autoajuda que não deixariam nada a desejar aos livros de Augusto Cury. Frases como “Você pode fazer isso, basta acreditar”, muito me lembrou o “Querer é poder” da 'nossa' rainha dos baixinhos. Jolie emula um pouco de Steven Spilberg (quando o cineasta realiza dramas) e Clint Eastwood, mas ainda não possui a criatividade pop do primeiro e a elegância e bom senso do segundo. As cenas de tortura são excessivas e desnecessárias. É difícil imaginar que alguém tão violentamente espancando no rosto, por tantas vezes, não fique com nenhuma deformação posterior; Mas isso é esquecido pela produção do filme. Se você não for um fã ardoroso da atriz, perceberá que Invencível é um filme falho que apela o tempo todo para as emoções mais superficiais da plateia.

Apesar de seus problemas, o filme tem seus méritos. Belas cenas estampam diversas passagens do longa-metragem. A fotografia de Roger Deakins (indicada ao Oscar 2015) nos ajuda a acompanhar a narrativa com maior interesse e deleite, se é que isso é possível diante de tantas cenas cruéis. É um trabalho esforçado, não há como negar. E ninguém poderá acusar Angelina Jolie de comodismo. Estrela da mais alta patente hollywoodiana, ela poderia se contentar com os milhões que recebe por encarnar heroínas de filmes de ação, mas preferiu se arriscar, ao longo de sua carreira, em produções menores, papéis ousados e, agora, se arrisca na direção de seus próprios filmes. A famosa atriz recebeu apoio de todos os lados para que Invencível se tornasse uma grande obra. Direção de fotografia de Roger Deakins (já mencionada neste texto), roteiro dos célebres irmãos Coen, trilha-sonora de Alexandre Desplat, música-tema do grupo Coldplay e um orçamento de 65 milhões de dólares à sua disposição, mostraram o quanto o estúdio que bancou a história acreditou na assinatura de Jolie como diretora. Não fez feio, o filme foi um sucesso nos E.U.A.

Mas o que mais chama a nossa atenção nessa segunda investida da atriz na direção foi a atuação dedicada do desconhecido Jack O`Connell que interpreta Louis Zamperini. Ele é o maior trunfo desse projeto. O personagem, certamente, exigiu bastante física e emocionalmente do ator britânico que teve que mudar seu sotaque para falar com sotaque do inglês americano. Uma performance que merecia ser lembrada no Oscar 2015, já que uma das intenções óbvias dessa obra, além de fazer boa bilheteria e comover o público, era essa: receber indicações ao prêmio máximo do cinema americano e catapultar a carreira de Angelina Jolie como cineasta. Não foi dessa vez. O filme recebeu apenas quatro indicações, sendo todas em categorias técnicas. (Fotografia, roteiro adaptado, som e edição de som). Entre pontos positivos e negativos, se há algo que Invencível nos provoca, além do choro fácil, é a reflexão do quanto o homem pode ser estúpido. Não há pior criação humana que a guerra e Angelina Jolie nos mostra isso o tempo todo ao longo dos 137 minutos de duração dessa narrativa. Mas isso, em geral, todo filme de guerra nos faz refletir. 

Angelina Jolie e o verdadeiro Louis Zamperini falecido
em 2014 antes da estreia do filme.