terça-feira, 21 de junho de 2016

Agnus Dei: uma reflexão sobre o conservadorismo religioso


Festival Varilux de Cinema Francês 2016

O término da Segunda Guerra Mundial, em 1945, pode ter significado um novo começo de era para muitos indivíduos, depois de longos anos de sofrimento. Mas as feridas deixadas pela barbárie desse período permaneceram muito além na mente e nos corpos das pessoas. Se para muitos sobraram as cicatrizes das torturas e da violência belicista, para outros tantos - especificamente para as mulheres - restou a dor de ter que carregar a gestação de um filho indesejado. Agnus Dei, de Anne Fontaine, - responsável por Coco Antes de Channel estrelado pela atriz Audrey Tautou – é um filme que atrai a atenção do espectador pela narrativa peculiar. Uma médica que atua na cruz vermelha francesa na Polônia é chamada às pressas por uma noviça para ajudar alguém supostamente doente. Chegando ao convento, descobre, não somente uma mulher em processo de parto, como também a história perturbadora das freiras que residem naquele local. Durante uma invasão de soldados, elas foram brutalmente violentadas. Muitas delas acabaram engravidando, o que acabou forçando a madre superiora da instituição a esconder esse segredo por medo do julgamento impiedoso da sociedade e consequente fechamento do convento diante do escândalo, caso ele se tornasse público. A história é baseada em fatos reais e a revelação do estupro das freiras, aqui mencionada, não é nenhuma novidade, a própria propaganda de divulgação do longa-metragem revela isso. O que importa no roteiro, escrito pela própria cineasta em parceria com outras três mãos, é acompanhar a forma como cada uma das celibatárias lida com a gravidez proibida dentro de um ambiente de regras intransponíveis, opondo, o tempo todo, a rigidez dos princípios cristãos com o pragmatismo da médica ateia que passa as auxiliá-las em sigilo.

A diretora conduz tudo de forma bastante elegante recorrendo a um trabalho de direção de fotografia muito bonito que remete à arte barroca. Dessa forma, os corredores do convento surgem soturnos como se, realmente, escondessem algum mistério macabro e desconcertante. É interessante notar o contraste da escuridão da arquitetura do local com a neve do lado de fora, algo que também reforça o teor de sombras do recinto representado. Nesse jogo de dualidades, cabe notar a forma como muitas das personagens surgem na tela. A médica, muitas vezes, é posta sentada junto a alguma religiosa, ora em primeiro plano, ora num contracampo, que evidenciam a divergência de dois mundos. Respeitando os dois lados apresentados - não se trata de um filme ateu e e muito menos religioso - Fontaine realiza uma obra interessante na qual a ponderação dos argumentos afirma o respeito, sem nunca abrir mão do viés crítico. "O que é simples para você, não é simples para nós", diz uma freira quando confrontada pelas ideias objetivas da protagonista. A abordagem realizada permite que o espectador pense questões como a alienação religiosa por um viés mais empático e menos radical. Porém, o ponto nevrálgico de toda a trama é retratar os traumas subsequentes da guerra em mulheres, cujo o estupro foi um dos piores pesadelos e um dos meios de demonstração de poder mais desumanos.

Agnus Dei é um filme de atuações femininas. O ator Vincent Macaigne, que interpreta o médico Samuel, integrante da missão francesa, na maioria das vezes em que aparece funciona como alívio cômico. Entretanto, é em uma tríade de mulheres que o roteiro se constrói. Lou de Laâge, que interpreta a cética médica Mathilde Beaulieu, confere a densidade e a emoção que o papel exige, mas é na relação com as outras atrizes que a protagonista cresce. Ela representa o lado racional do ateu, porém sempre muito humana. Ágata Kulesza que faz o papel da madre que dirige o convento, é o oposto de Mathilde. Retratada como uma mulher de atitudes severas e extremistas que, para se manter fiel aos seus princípios religiosos, é capaz de atitudes bastante questionáveis. Por fim, temos Maria, a freira que, no caminho do meio, tece críticas a sua fé, apesar de seguir acreditando em Deus. Ela compreende a vida por meio de um olhar mais amplo sobre as coisas, seguindo aquilo em que acredita e contestando aquilo que julga necessário. As performances, em alguns momentos, soam um tanto maniqueístas, mas acabam, satisfatoriamente, se desdobrando para uma reflexão sobre o fundamentalismo religioso e sobre o comportamento das grandes instituições religiosas que tendem a abafar situações quando diante de escândalos, principalmente, os de ordem sexual.

O longa-metragem se alonga um pouco mais do que o necessário ao final, e se concentra demais nos partos de cada uma das freiras grávidas. Mesmo assim, é um trabalho pertinente e que deve ser visto, principalmente, pela mensagem humana que carrega em si: diante dos imprevisíveis caminhos da vida, sempre há atitudes que podem surgir como alternativas às escolhas fundamentadas na austeridade das ideias conservadoras. Para isso, há que se ter empatia para que compreendamos o mundo do outro com suas escolhas e decisões, desde que estas não interfiram nas escolhas de outros indivíduos. Parece-me uma bela mensagem para os dias de hoje tão fustigado pela violência da ignorância humana. Em tempo: o título original da produção é Les Innocents (As Inocentes), no entanto, Agnus Dei - expressão latina que significa Cordeiro de Deus - é uma escolha bastante sagaz e que condiz perfeitamente com a trama apresentada. Um daqueles raros casos em que o título nacional é mais criativo do que o original.


sexta-feira, 17 de junho de 2016

Meu Rei: atuações viscerais conduzem o drama


Festival Varilux de Cinema Francês 2016

Esqueça o amor romântico. No longa-metragem Meu Rei (Mon Roi), a faceta do amor que mais interessa é a que revela sua complexidade e densidade. O amor, como uma das temáticas mais recorrentes no cinema, parece inesgotável em suas possibilidades de exploração, no entanto, é mais fácil assistirmos a filmes que enveredem por clichês da temática do que vermos algo que consiga ir além na proposta da abordagem amorosa entre dois indivíduos. Felizmente, a cineasta Maïwenn Le Besco (Polissia, 2011 e O Baile das Atrizes, 2009) conseguiu, com muita inteligência, construir uma história de amor única e emocional. Para quem não sabe, Maïwenn foi a cantora de ópera de cor azul do filme O Quinto Elemento (1997) de Luc Besson, seu ex-marido.

Meu Rei conta a história de Tony, uma mulher que acabou rompendo gravemente um ligamento do joelho após um incidente enquanto esquiava nas montanhas, cena que abre os eventos da narrativa. De cara, percebemos que estamos diante de uma pessoa angustiada por um mero detalhe: uma inquietante e profunda respiração da esquiadora. Esta sutil ação ainda deixa implícito que a personagem tinha outras intenções ao se lançar no desfiladeiro. A partir de então, acompanhamos sua recuperação num centro de terapia intensiva, ao mesmo tempo em que a observamos recordando a relação amorosa - intensa e conturbada - que viveu com o seu segundo marido, Georgio Milevski. Do encontro ao acaso, à paixão fulminante, do casamento à gravidez e às brigas, a câmera da diretora leva o espectador a acompanhar esse relacionamento como um verdadeiro voyeur, adentrando os labirínticos caminhos da mente humana quando diante de uma grande paixão. A narrativa do tratamento ortopédico se costura perfeitamente com os flashbacks que vão sendo revelados de forma bastante arguta - um trabalho de montagem impecável que nos faz sentir o peso de 10 anos em pouco mais de 2 horas de projeção.

Emmanuelle Bercot e Vincent Cassel demonstram uma química explosiva na tela. As inseguranças, as brigas, os desentendimentos, os ciúmes vão sendo revelados em camadas de interpretação que chegam a assustar de tão realistas. Por esta performance, Bercot ganhou o Prix de atuação feminina em Cannes, em 2015. A atriz constrói uma personagem de nuances tão complexas que sua angústia acaba transcendendo a tela do cinema. Cassel, não fica atrás, construindo um personagem masculino ambíguo, egoísta e humano em proporções muito bem equilibradas. O bom resultado da dupla, além do talento, corresponde a uma ótima direção de atores focada na intimidade do casal que a diretora explora em enquadramentos sem pudores, fixando sua câmera, preferencialmente, na protagonista feminina, como se quisesse investigá-la em seus sentimentos mais profundos. A atuação de Bercot e Cassel é tão visceral que o restante do elenco acaba desaparecendo. Assim, Louis Garrel, que interpreta o irmão da protagonista, torna-se um coadjuvante de luxo, sem nunca ter o personagem aprofundado. Entretanto, é dele os momentos mais divertidos do filme.

Observando atentamente a narrativa, podemos perceber que há diversas sequências que se passam numa piscina, o que nos induz a pensar numa analogia ao nascimento. No caso do filme, fica claro o "renascimento" da personagem que sempre surge com os cabelos molhados, em ambientes muito úmidos, os olhos marejados e "reaprendendo a andar". No tempo da convalescença, ela repassa a vida e descobre a si mesma. De posse dessas informações, o tratamento de Tony torna-se uma metáfora de sua própria vida. Pela medicina, o joelho é considerado a maior e mais complexa articulação do corpo humano. Assim como o amor, talvez, seja a emoção humana mais difícil de lidar. Portanto, no roteiro, o joelho ganha status de coração. Pode parecer estranho, mas faz muito sentido se entendermos que a dor que a personagem sente na alma materializa-se na dor do ligamento rompido. Sem querer estragar as surpresas, apenas digo que há um cena proposital, inserida durante os acontecimentos do enredo, que vai fazer você pular da poltrona de tanta aflição. Os sentidos denotativos da palavra "articular", inferindo a ideia de comunicar, pronunciar ou proferir algo, também não podem ser esquecidos. Dessa forma, os personagens surgem como seres que se comunicam, mas não o fazem por completo porque, na realidade, não há comunicação completa entre os indivíduos. Sempre há algo a ser dito, e na impossibilidade do dizer, despontam-se os desentendimentos, as brigas e as ofensas, muitas delas resultantes da inabilidade do ser humano de lidar com aquilo que não compreende em si mesmo e no outro. Não é em vão que, depois de anos juntos, Tony conclua não conhecer mais o marido.

Não há sentimentos fáceis neste quarto trabalho de direção de Maïwenn. É, portanto, com ironia que, longo nos primeiros minutos, quando o casal está se conhecendo numa festa, a música Easy do Son Lux surja com seu refrão repetitivo como se nos provocasse: afinal, o que no amor é fácil? Há que se lembrar que os joelhos dobrados remete a posição de submissão a algo ou alguém e isso esclarece o título da produção. Ao se colocar tão reverente ao seu objeto de desejo, como se ele fosse um rei, a personagem acaba por anular parte de sua própria vida em nome de uma relação permeada de ideais românticos. Os caprichos do marido, na maior parte do tempo, conduzem a vida da protagonista. Observe como é ele quem decide ter um filho, sem levar em conta se ela quer ou não enveredar pela maternidade. Abre-se, aqui, uma discussão sobre relacionamentos abusivos, mas a direção escolhe caminhos menos lugares-comuns e menos sexistas para abordar o tema, fugindo do maniqueísmo homem canalha X mulher vítima, ao colocar os dois como parte intrínseca do processo mutuamente.

Amar pode ser um veneno para algumas pessoas. No entanto, não há como aprender a lidar com as emoções humanas sem nunca tê-las experimentado. Às vezes, é preciso atirar-se no precipício (a cena literal da abertura não está lá por acaso) para podermos amadurecer, aprender ou entender certas coisas sobre a vida e sobre nós mesmos. “O amor nada é, enquanto novo, honesto e puro. O amor antes da tempestade, não é escolha: é decreto”, diz a personagem feminina em determinado momento da projeção. Meu Rei é um retrato dos relacionamentos contemporâneos cujos indivíduos, sem o exercício salutar do diálogo, acabam amargurados, destroçados e mergulhados em todo tipo de entorpecente com o intuito de dar conta das emoções mal resolvidas que, invariavelmente, se desdobram em imensas frustrações. (Maldito amor romântico que gerou neuras para serem trabalhadas num consultório por séculos). Quando amamos, há o medo de falhar, o medo de ser rejeitado, o medo de perder, o medo de não ser amado, o medo da solidão e tudo isso surge nas entrelinhas do longa-metragem. O diálogo do eletrocardiograma do personagem de Cassel, que diz que a vida não pode ser uma linha reta, pois isso significaria a morte, é a chave de entendimento de toda a trama deste belíssimo trabalho audiovisual. Um dos melhores do ano.


segunda-feira, 13 de junho de 2016

Chocolate: o Otelo circense


Festival Varilux de Cinema Francês 2016

As origens do circo remontam ao desenvolvimento das civilizações antes de Cristo mas, como espetáculo de variedades para entreter o público, tem incipiência durante o Império Romano com a luta de gladiadores, as corridas de carruagens e a exibição de animais selvagens. A forma do circo moderno, como conhecemos atualmente, começa a ganhar força a partir do crescimento das cidades e da vida urbana. As atrações tinham como objetivo causar assombro e encantamento, além de fazer o público gargalhar com as estripulias do palhaço, o carro-chefe da arena de apresentações. No intuito de provocar a curiosidade das multidões, os empresários do circo recorriam a diversos números apelativos, sempre com um viés de exotismo, que tinham o intuito, ora de provocar o riso, com a exibição da mulher mais gorda do mundo, por exemplo; ora de provocar o espanto, com o homem negro canibal vindo da África. Era o século XIX e, nessa época, o pensamento burguês branco era o que ditava as regras e o conceito da palavra preconceito ficava muito mais recôndita do que expressa. Além disso, muitos profissionais do circo se submetiam ao escárnio das elites, principal público do picadeiro, por motivos de sobrevivência. É neste cenário que se desenvolve o excelente Chocolate, filme francês dirigido por Roschdy Zem que narra a trajetória do primeiro artista circense negro da França.

No roteiro de Cyril Gely, o famoso palhaço Footit precisa reinventar suas ideias para manter o seu emprego no circo Delvaux. Quando ele assiste a um homem negro apresentando-se como Kananga, o canibal rei da África, decide chamá-lo para fazer uma parceria inédita na história, na qual se apresentariam como uma dupla de palhaços. A característica fenotípica de ser um branco e um negro seria o diferencial. Kananga é rebatizado como Chocolat e sai da condição de "shows de bizarrices" para adentrar no mundo dos palhaços, muito mais bem remunerado e com maior fama entre o público, principalmente, entre as crianças. O sucesso é arrebatador. A dupla cresce e acaba recebendo um grande contrato para se apresentar em Paris, cidade-sede dos grandes espetáculos circenses na transição do século XIX para o XX. O grande mote desse enredo, baseado na história real de Rafael Padilla, é colocar o protagonista consciente do preconceito que sofria. Apesar da promoção recebida, que o tira da condição de ser visto como uma besta-fera para se tornar um célebre palhaço, os números apresentados com o seu parceiro branco, na maioria das vezes, o colocava em posição de humilhação. Uma vez em Paris, e no auge de seu sucesso, o protagonista começa a despertar a ira das elites brancas que não conseguiam aceitar que um negro fizesse tanto sucesso. Não é preciso dizer que Chocolat sentirá na pele, literalmente, o peso violento do racismo da época.

O cineasta nos coloca para dentro do mundo colorido e encantado de um circo, recorrendo a um impecável trabalho de direção de fotografia, figurinos e cenografia. A reconstituição de época no filme é primorosa e elegante. Porém, é por detrás das cortinas que Roschdy direciona as lentes de sua câmera desnudando a ignorância humana da época. Os donos do negócio apelavam para todo o tipo de apresentação que pudesse dar retorno financeiro e com o argumento de que estavam lidando com artistas, submetiam seus contratados as mais profundas formas de desrespeito. Chocolat, nome que por si só focava na cor da pele como forma de atração, acreditava estar inserido neste universo artístico cuja função maior era entreter acima de qualquer outra coisa. Com fama e dinheiro, pôde satisfazer seus prazeres mais miúdos, como o interesse por belas mulheres e o vício em jogos que acaba o levando à ruína. No entanto, é a realidade do preconceito que lhe revela os caminhos mais desgostos da vida em sociedade. Sua decadência se dá quando começa a contestar a condição de alienação na qual se encontrava no palco. Uma cena demonstra essa tomada de consciência quando ele se vê diante de um pôster de divulgação do espetáculo sendo retratado açoitado por Footit e com feições de um animal. 

Há no filme um paralelo com a tragédia shakespeariana Otelo, cujo personagem negro  - naquela época, sempre interpretado por atores brancos com o rosto pintado - desperta o interesse de Rafael Padilla. Na interpretação dele, Otelo foi vencido pela ingenuidade de querer ser igual ao outro, ou seja, foi derrotado por querer ser igual ao branco numa sociedade hipócrita que jamais permitiria que isso acontecesse. Entra aqui uma breve e interessante reflexão do poder da literatura na transformação do homem, pois é a partir dela que o palhaço negro começa a ter compreensão da falsa cordialidade que o cercava e da forma preconceituosa como era tratado. É útil lembrar do filme O Homem Elefante de David Lynch, cujo protagonista portador de uma anomalia acaba “adestrado” para fazer graça e horror às plateias de um circo. Tanto em Chocolate quanto em O homem Elefante o cerne da questão é a forma estúpida como o homem lida com as diferenças. 

A amizade afetiva e conflituosa dos dois palhaços se torna algo quase palpável pela plateia, resultado da desenvoltura dos brilhantes intérpretes. James Thiérrée, ator suíço - neto de Charlie Chaplin - que também é artista de circo na vida real, conduz seu Footit com precisão, contrastando o amor à arte com a solidão da vida privada. Porém, é de Omar Sy a grande performance do longa-metragem, o ator de filmes como Intocáveis (disponível no Netflix) e Samba dá um show na pele de Chocolat numa atuação que revela a entrega,  o carisma, a incorreção e o sofrimento do personagem retratado. Sem dúvidas, Omar Sy é um dos grandes atores franceses do momento. A produção ainda resgata os preciosos registros do artista negro circense na obra de Toulouse-Lautrec (ver foto ao final do texto) e na câmera dos irmãos Lumière, os precursores do cinema, em imagem rara exibida ao final da projeção.

Chocolate é uma cinebiografia de primeira que nos faz pensar sobre os limites do humor, sobre a consciência da própria alienação perante o mercado de trabalho, a desumanização de indivíduos, e ainda provoca uma reflexão sobre a condição do que é ser artista. Nos tempos atuais, na cultura circense, felizmente, já não são permitidos números com tamanho rebaixamento de seres humanos. Isso prova que a humanidade tem evoluído - às duras penas, não há como negar – porém, olhada em retrospecto, é difícil ficar indiferente as feridas incicatrizáveis deixadas como registro em um passado não tão distante. No entanto, a tragédia maior, ao assistir este trabalho cinematográfico, é perceber que esse tipo de comportamento, de fazer espetáculo de gosto duvidoso com as diferenças, ainda seja recorrente em pleno século XXI como, por exemplo, nos linchamentos de ladrões (sempre negros) amarrados à postes de luz para exibição pública, ou nos terríveis bullyings sofridos por muitas crianças e adolescentes nas escolas, por divergirem do padrão socialmente aceito, ou mesmo num estupro coletivo de uma mulher indefesa que é postado nas redes sociais com ares de diversão. Não há como negar, na contemporaneidade, o “circo” da ignorância, infelizmente, ainda existe e, parte dele, está na Internet.

obras de Toulouse-Lautrec registrando o palhaço Chocolat

sexta-feira, 10 de junho de 2016

A viagem de meu pai: um exercício quase proustiano


Festival Varilux de Cinema Francês 2016

Há vários filmes no cinema sobre a perda da memória, talvez, uma das mais cruéis formas de terminar a vida, justamente, por nos tirar o direito de lembrar da nossa trajetória até o momento derradeiro. Em Flórida, novo filme de Philippe Le Guay, Claude Lherminier é um senhor octogenário que precisa lidar, cotidianamente, com os seus esquecimentos cada vez mais agravados pela passagem da idade. No passado, liderava com mão de ferro uma fábrica de papéis cujo comando a filha mais velha, Carole, assumiu após a incapacidade declarada do pai para o trabalho. É na relação delicada e conturbada entre pai e filha que toda a narrativa se alicerça. O cineasta conduz seu longa-metragem com sensibilidade e elegância e, pouco a pouco, vai nos revelando os fatos do passado de seu protagonista, marcado por tragédias indeléveis, que inclui a infância durante a II Guerra Mundial, a perda da segunda esposa de forma abrupta e a morte repentina da filha mais nova, da qual ele vive esperando uma visita que, obviamente, nunca acontecerá.

O filme de Le Guay é de uma leveza incrível, mas carrega como pano de fundo dramas pesadíssimos. Enquanto alguns momentos nos provocam risos - as tentativas de Claude de se livrar das ajudantes contratadas pela filha são hilárias - , outros são de dar um nó dorido na garganta, impossível ficar indiferente. Parte dos bons resultados da produção são provenientes da atuação da dupla de protagonistas. Jean Rochefort interpreta o velho rabugento, implicante, orgulhoso e manipulador de forma adorável e humana. Já Sandrine Kiberlain, que interpretou Simone de Beauvoir em Violette (2013), confere a sua personagem um balanço de sentimentos confusos permeados pela angústia,  pelo desespero contido e pelo afeto imenso que sente pelo pai. A cena que mais resume esse embate de atuações, segundo o próprio diretor, é o momento em que Carole precisa despir o pai após ele se urinar por inteiro. Reside ali a descoberta de duas pessoas que, ditas familiares, percebem-se estranhas diante da nudez revelada. O desconforto, a desconfiança, o medo travam as relações diante da intimidade inesperada.

Ao abordar a questão da memória como principal temática de seu trabalho, o cineasta utilizou-se de recursos fílmicos bastante eficientes para conduzir a história que desejava contar. Nesse sentido, destaca-se a belíssima fotografia, que valoriza as paisagens de Avenay - pequena cidade francesa que faz fronteira com a Suíça - e que atribui ao antigo casarão da família, no qual Lherminier reside, ares de grande conforto que, confrontado com os tons frios que as cenas assumem quando ele precisa morar com a filha no pequeno apartamento dela, dá uma ideia de deslocamento e estranheza próprios de quem se encontra em estado amnésico. A montagem também se aproveita muito bem das falhas de memória para construir um enredo que acaba por confundir o espectador, no bom sentido. Durante toda a projeção, ao mesmo tempo em que é mostrada a rotina do personagem, a trama é entrecortada por uma viagem de avião que, ao final, nos faz indagar se ela foi fruto da imaginação ou da realidade do homem. Num filme que fala sobre emoções perdidas, reminiscências do passado e da tentativa de resgate do que se perdeu - ou da manutenção do que ainda resta - é interessante observar que o diretor tenha escolhido elementos cujo o sentido do paladar parece se destacar. Assim, temos o suco de laranja favorito, proveniente da Flórida, que reporta à cidade onde a filha falecida residia; a rejeição ao vinho com o qual ele diz estar “brigado”, que lembra o rompimento de uma grande amizade do passado e a ojeriza ao arroz-doce, que remete aos tempos de guerra pela semelhança que ele associou com o vômito de um soldado morto. É quase um exercício proustiano no qual a madeleine (biscoito tradicional francês), levada à boca, acaba por evocar emoções pretéritas.

Assisti ao filme no Festival Varilux de Cinema Francês 2016 e, logo após a projeção, o simpático diretor conversou com o público. Revelou que o longa foi filmado em 8 semanas, após uma extensa pré-produção. Admitiu cuidados especiais para não extenuar seu ator principal que tem 85 anos, mas que Rochefort se prontificou a fazer tudo o que lhe fosse pedido, inclusive, se colocou a disposição para aparecer nu, caso fosse preciso. Ideia que o diretor, aos risos, disse ter rejeitado por não ver necessidade para a trama. Em uma de suas falas, também revelou que seu primeiro curta-metragem era sobre um garoto que tinha um prego no pé e, mesmo assim, seguia para a escola. Refletindo sobre o longa-metragem, aqui resenhado, pensei que essa história daria uma ótima metáfora para este novo trabalho do cineasta. Assim sendo, o "prego no pé" seria aquela dor - física ou emocional - que todos nós temos que carregar em algum momento de nossas jornadas ou a vida inteira. Porém, mesmo diante do incômodo, precisamos seguir em frente. Em Flórida isso se configuraria na filha que precisa lidar com a doença do pai ao mesmo tempo em que precisa manter os negócios da família, cuidar do filho adolescente e manter a sua vida particular.