sábado, 28 de fevereiro de 2015

Birdman: ou a grande farsa do cinema americano


Este texto contém spoiler.

A pergunta que não quer calar: como um filme que critica o sistema de produção hollywoodiano pode ganhar o maior prêmio do cinema americano se ele está preso a esse mesmo conjunto de regras que mantém a grande indústria cinematográfica funcionando? Imagine uma pessoa que trabalha numa grande empresa e resolve, de um hora para a outra, apontar os erros, falhas e comportamentos execráveis do modo de agir dessa firma. Como você acha que o patrão vai se comportar? Ele daria um prêmio de melhor funcionário do ano ao sujeito? Diante de inquietações cinéfilas, tentei refletir sobre o feito realizado por Birdman: Ou a inesperada virtude da ignorância. Eis as minhas observações.

Antes de tudo, é preciso abordar os aspectos relevantes da obra em questão. Filmado pelo cineasta mexicano Alejandro González Iñarritú, o filme foi considerado um divisor de águas na carreira do diretor. Responsável por dramas densos como Amores Brutos, 21 gramas e Babel, a comédia dramática surge como um trabalho atípico no seu currículo. O longa-metragem conta a história de um ator decadente interpretado de forma magistral por Michael Keaton. O projeto de Inãrritú é conduzido como se não houvesse cortes, uma técnica de excelência aplaudida mundo afora, mas que não é nenhuma novidade como bem apontou o crítico do IMS José Geraldo Couto. Alfred Hitchcock, em 1948, realizou Festim Diabólico utilizando a mesma ideia. Porém, o criador de Birdman usou a contento os falsos planos-sequência para dar conta do percurso labiríntico dos corredores do grande teatro e realizar uma sagaz analogia com a própria mente perturbada do protagonista. A trilha-sonora composta por solos de bateria também reflete o turbilhão de sentimentos e sensações que se passam no interior do personagem.

Birdman é criativo e sua força motora é a atuação de Michael Keaton. Ele interpreta Riggan Thomson que teve um passado glorioso como ator de Hollywood encarnando, por três vezes, o super-herói Birdman. O personagem foi tão forte em sua carreira que acabou por se tornar um alter-ego que o persegue o tempo todo como uma voz que clama para que ele faça a quarta sequência da famigerada produção. Entretanto, Riggan está disposto a retomar sua carreira como um grande ator dos palcos e não das telas. Por isso, esforça-se para montar uma peça baseada num conto de Raymond Carven, mas o que de fato entra em cena é o seu desejo de ser amado e respeitado pelo público, por suas mulheres e pela filha. Outrora um ator de grande sucesso (ele fez os dois Batmans de Tim Burton em 1989 e 1992), Michael Keaton há anos não emplacava um sucesso, muito menos um filme relevante. O ator, como poucos, soube tirar proveito dessa situação e fez piada da própria condição colocando-se como objeto de análise. Qual ator de Hollywood conseguiria processar, frente ao público, seus fracassos, decadência e vaidades? Pouquíssimos, seria a minha resposta com certa convicção. Uma pena que o ex-Batman do cinema tenha sido preterido com a perda do Oscar de melhor ator para Eddie Redmayne, que interpretou Stephen Hawking no sentimental A teoria de tudo. Redmayne é bom ator e se beneficiou pela transformação, mas Keaton, ao contrário, é pura atuação. Intensa, desesperada e insana.

Mas e a pergunta feita no início deste texto, como se responde? Ora, Birdman pode ser genial pelas atuações e por suas técnicas de filmagem, porém, o premiado longa-metragem é uma verdadeira farsa no que concerne ao seu conteúdo crítico. Conduzido com humor duvidoso e certo histrionismo, o filme parece nunca chegar ao cerne da questão que pretensamente quer apontar ou denunciar. A cena em que Riggan fica preso do lado de fora do teatro e precisa andar, apenas de cueca, entre os frequentadores de uma Times Square movimentadíssima pode ser engraçada, mas nada mais é do que aquele humor rasteiro que o cinema americano sabe fazer muito bem. O que assistimos com essa cena? Bem, alguns poderão acreditar que estão vendo uma crítica à decadência de Riggan. Porém, o que se vê, é muito mais a ideia da humilhação de ser velho, de estar fora de forma e de passar vexame no meio da multidão. Ou seja, é gratuito demais. Essa mesma graça que supostamente torna o filme divertido, acaba por enfraquecer o seu potencial de meter o dedo na ferida. Se num determinado momento da projeção ousa fazer alguma crítica, no outro momento anula tudo o que disse recorrendo a alguma piada ou clichê estapafúrdios. É um verdadeiro morde e assopra que não chega a lugar nenhum.

A cena final, no entanto, parece-me a chave para o entendimento da questão que aqui saliento. Sem coragem para finalizar mais incisivamente o seu trabalho, Inãrritú recorre ao fantástico. Ao se lançar pela janela de um hospital e se transformar literalmente no personagem que o perseguia, Riggan encontra a liberdade naquilo que mais o atormentava. Perceba: fica subentendido que a filha ao ver o pai morto também enlouquece e, daí em diante, passa a vê-lo como o Birdman. Tudo fica muito óbvio nesse desfecho: o que vence no final das contas é o sistema. É Hollywood e seus personagens exagerados, suas narrativas vazias e mirabolantes e seus efeitos especiais de ponta, que seduzem e alienam, que permanecem no imaginário e que se perpetuam mesmo depois da morte.  O que triunfa é o super-herói, não o homem. Essa é a mensagem incutida na obra com ares de respeitosa crítica inteligente, mas que não faz nada mais do que manter aquilo que torna Hollywood o que ela é. Birdman é a ilusão da crítica. Não há humor incisivo como, por exemplo, fazia Charles Chaplin ou como faz Woddy Allen. Não há provocação, não há incômodo, não há estranhamento, não há subversão. O filme apenas mantém a indústria cinematográfica perfeitamente intacta, sem arranhões. Iñarritú é perspicaz e sabe que para se manter no jogo precisa jogar com as cartas certas.

A indústria do cinema norte-americano é a mais agressiva do mundo e não deixaria passar em branco um filme forte e expressivo que abalasse suas estruturas. Algo mais vigoroso correria o risco de afastamento do cineasta dos grandes estúdios de produção. A meu ver, uma verdadeira crítica amplia o olhar sobre aquilo que observa, vira do avesso, sacode...Isso é tudo o que Birdman não faz. Criticar para manter o status quo é o mesmo que falar da boca pra fora, o resultado será sempre inócuo. Alejandro González Iñarritú é um cineasta espetacular, isso é inegável. Mas também é muito esperto. Se ganhou o Oscar foi puramente por enaltecer nas suas entrelinhas mais distraídas, o sistema que paga o seu valoroso cachê. Anote: no teste do tempo, Birdman será lembrado apenas como o filme que ganhou o Oscar ou que foi injustiçado pela ausência de uma estatueta dourada para a atuação de Keaton, mas seu conteúdo crítico será tão somente esquecido como os astros e estrelas que envelhecem na indústria e são postos fora de cena.


Michael Keaton sendo dirigido por Iñarritú

sábado, 21 de fevereiro de 2015

Os oito filmes indicados ao Oscar 2015

Amanhã é dia do Oscar e eu, como bom cinéfilo inveterado, fiz a lição de casa. Assisti todos os longas-metragens indicados para melhor filme. A ideia era resenhá-los aqui neste blog, mas como algumas histórias não me provocaram a ponto de merecerem um texto, desisti da empreitada. Abaixo, EM ORDEM DE PREFERÊNCIA, listo as produções com um breve comentário. 

1-     O Grande Hotel Budapeste: O filme do diretor Wes Anderson não é o favorito ao prêmio de melhor filme, mas deve sair com muitas estatuetas em categorias técnicas. Visualmente inteligente, com belo e detalhista trabalho de fotografia, direção de arte, figurinos e maquiagem, o longa-metragem tem uma deliciosa verve que nos remete aos filmes de Charles Chaplin; uma referência evidente nessa obra. Anderson é sempre genial ao misturar belos cenários, fotografia de cores vibrantes e uma atmosfera lúdica que faz com que seus filmes se tornem grandes obras de arte. A narrativa, dividida em três momentos, tem roteiro original desenvolvido a partir de textos do escritor vienense Stefan Zweig. Premiar "O Grande Hotel Budapeste" significaria reconhecer a arte de um cineasta de estilo  inconfundível. É o meu favorito.


2-     Whiplash – Em busca da perfeição: Furioso, vibrante, dinâmico e catártico, o filme do jovem diretor Damien Chazelle traz à tona a discussão dos limites de um mestre diante de seus pupilos. Como incentivar grandes talentos? Eis a questão. Em busca de um gênio, o rígido maestro Terrence Fletcher - interpretação que certamente concederá o Oscar de melhor ator coadjuvante para J.K. Simmons - encontra no jovem Andrew Neiman um excepcional baterista. Assim, o chama para compor sua famosa banda de jazz. A relação entre os dois é explosiva e o filme nos brinda com ótimas atuações, momentos intensos e uma vitalidade que está em falta nos dias de hoje, tanto na arte quanto na juventude. Em tempos de apatia, nada como um filme que sacode plateias.


3-     Boyhood - Da infância à juventude: Este é o favorito ao Oscar de melhor filme. Mas se ganhar, o que estará sendo premiado nada mais será do que a técnica. O diretor Richard Linklater conseguiu realizar uma obra curiosa sobre o tempo. Narrativamente, não é espetacular. Mas conseguiu um resultado plausível graças a dedicação de seus atores que se lançaram em filmagens ao longo dos últimos 12 anos e a uma montagem eficiente que garantiu a coesão do trabalho. É um daqueles casos em que a vida real se confunde com a arte. Acho um bom filme, mas muito superestimado.


4-     Birdman ou ( A inesperada virtude da ignorância):  Dirigido de forma exemplar pelo mexicano Alejandro González Iñarritú, o longa-metragem tem em seu falso plano-sequência e na atuação soberba de Michael Keaton a sua força. É um filme que critica com humor o sistema de produção hollywoodiano. Seu maior trunfo, no entanto, é o protagonista Riggan Thomson, um ator decadente em busca do reconhecimento nos palcos da Broadway. Qualquer semelhança com a carreira do próprio Keaton não é mera coincidência. Apesar dos elogios que vem recebendo, na minha opinião, o final careceu de melhor desfecho.


5-     A teoria de tudo: A cinebiografia do físico Stephen Hawking, muito mais que abordar a sua genialidade e inteligência, tem seu verdadeiro cerne na relação que o físico teve com a esposa Jane. Antes de mais nada, é bom saber que o longa-metragem do britânico James Marsh é uma história que fala da força inexplicável do amor. É romântico, emocional e sentimental, mas tem seu valor. A performance brilhante do ator britânico Eddie Redmayne é perfeita e em momento algum resvala para a caricatura. A atriz Felicity Jones, que interpreta a esposa dedicada de Hawking, também não deixa a desejar.



6-     Selma: O filme faz um recorte da luta de Martin Luther king pelos direitos civis dos negros norte-americanos na cidade de Selma, no Alabama. Durante o governo do presidente Johnson, que assumiu o posto após o assassinato de John Kennedy, a cidade sulista era uma das mais racistas e resistentes a conceder o direito de voto aos negros. Seja para lembrar do quanto o ser humano é capaz de negar a outro ser humano direitos básicos de uma sociedade, seja para rememorar a história do homem que muito fez pela justiça e humanidade daqueles que eram desprezados por aqueles que deveriam governar para todos e não apenas para um grupo específico, esse é um pequeno grande filme que merece ser visto.


7-     Sniper Americano: Clint Eastwood é um dos cineastas mais importantes do atual cinema americano e um dos mais prolíficos. Eastwood domina as técnicas do cinema como ninguém e conduz qualquer história com muita competência. "Sniper Americano" é a prova desse talento. No entanto, a produção é de um maniqueísmo assustador. A ideia contida no roteiro é a de que todo iraquiano é um terrorista. O tom patriota também não ajuda muito e o filme ainda foi acusado de humanizar o atirador americano Chris Kyle, um homem frio e calculista que ceifou, a sangue frio, a vida de cerca de 160 pessoas. Não precisa ser nenhum gênio para perceber que o verdadeiro terrorista da história é o próprio Kyle. Porém, isso não foi problema para o público norte-americano que abraçou o filme transformando-o num grande sucesso de bilheteria. Como escrito em artigo na revista Carta Capital: é a história de um herói ou a glorificação da violência americana no Iraque?


8-     O Jogo da Imitação: O filme é cheio de boas intenções, mas se transformou num grande equívoco cinematográfico. A história de Alan Turing que inventou aquilo que foi considerado o primeiro computador, tenta se desenvolver em duas partes distintas que se conectariam em algum momento da projeção. Ao mesmo tempo em que o matemático tenta desvendar códigos secretos nazistas para tentar dar fim a II Guerra Mundial, Turing precisa esconder sua homossexualidade, comportamento condenado à época e que acarretaria sua prisão se descoberto. O filme tenta intercalar essas duas camadas: os segredos que precisam ser revelados e os segredos que precisam ficar escondidos. O resultado, entretanto, é insatisfatório. As atuações são descabidas resvalando para um tom piadista que enfraquece a tensão vivida pelos personagens. Apenas em uma cena ou outra conseguimos vislumbrar traços de verdadeira intensidade e entrega, e todos estão nas mãos do ator Benedict Cumberbatch que protagoniza a obra. Dos oito, é o mais fraco.


terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Ida: o sacrifício da clausura e do viver.



Vencedor do Oscar 2015 de Melhor Filme Estrangeiro.

Em poucos minutos da projeção de Ida, percebemos sem muita dificuldade que estamos diante de uma grande obra de arte do cinema europeu. A fotografia em preto e branco, bem explorada em suas nuances, causa impacto no espectador e é um dos pontos altos da produção polonesa candidata ao Oscar 2015 de melhor filme estrangeiro. O impecável trabalho de luzes e sombras realça ainda mais o universo proposto pelo cineasta Pawel Pawlikowski. A história gira em torno de Anna que está prestes a fazer seus votos de castidade, pobreza e solidariedade para se tornar freira. Inicialmente, observamos a disciplina rígida do convento. O silêncio dos ambientes é quase tangível, quebrado apenas pelos pequenos ruídos dos movimentos metódicos das religiosas ou quando alguma oração é realizada. Órfã, a protagonista recebe a informação da existência de uma tia - seu único vínculo familiar - da qual ela não tinha conhecimento até então. Liberada das obrigações para conhecer a parente, a noviça sai da clausura por uns dias e muito mais que descobrir sobre o trágico passado de seus pais, ela também irá descortinar uma vida plena de emoções e desejos jamais experimentados.

O filme se alicerça na tese de que uma pessoa somente estará se sacrificando em nome de alguma santidade se a priori tiver conhecido o pecado. Ou seja, não há santa que não tenha sido profana e devassa que não tenha sido um pouco virtuosa ao longo da vida. Essa ideia surge no enredo no momento em que Wanda Gruz - uma mullher que carrega o peso da experiência da vida e de um passado marcado por arrependimentos e dor -  conhece a sobrinha. Ao mesmo tempo em que busca compreender a morte de seus pais, Anna, que fora batizada como Ida, sente o desejo surgir pela primeira vez quando conhece um saxofonista. É após uma tragédia marcante que a garota se arriscará a experimentar o mundo do qual ficou alheia por tantos anos. Dessa forma, passa a reconhecer a si mesma como um ser humano complexo; assim como todos nós somos. Não é em vão que a personagem que intitula a produção tenha dois nomes, um de batismo e um recebido posteriormente. Anna é a certeza e as verdades impostas pelo mundo religioso. Ida é a dúvida e a descoberta de um universo cheio de possibilidades. Seja pelo passado marcado pela dor da Segunda Guerra Mundial ou pelas escolhas ainda incertas do futuro vindouro, a construção de Anna/Ida se mantém nessa perspectiva contrastante do que foi e do que pode ser, do que foi ensinado e do que está por aprender. A jovem vai da silenciosa observação às delicadas descobertas da vida sem nunca perder a ternura, uma eficaz interpretação da atriz Agata Trzebuchowska. É bonita a cena em que alcoolizada a moça se envolve numa cortina e, rodopiando, acaba por arrebentar o pano do trilho. Uma metáfora de como a moça se sente no mundo.

Ida é um trabalho belo e sofisticado. A temática do holocausto surge de forma sutil, mas é ponto-chave para compreensão da narrativa. A estética visual da obra é de uma composição quase barroca, soturna e melancólica, impactantes. Os enquadramentos são diferenciados colocando os atores sempre às margens da cena representando o desejo de fuga da vida que se leva, no caso da noviça, ou do passado que assombra, no caso de Wanda. Por vezes, as personagens surgem com as faces divididas fugindo da quadratura da câmera, o que reforça as ambiguidades existentes. Na maior parte do tempo, os personagens são focados no canto inferior da tela potencializando a opressão do mundo em que vivem e das questões internas que processam. A qualidade da direção e a constância do silêncio como meio de provocar reflexão nos remetem às grandes obras clássicas do sueco Ingmar Bergman. 

No entanto, é na música de John Coltrane, soprada pelo saxofonista do filme, que a quietude se rompe por completo. O som invade cenas pontuais com uma sonoridade sensual e aprazível, algo que se relaciona perfeitamente com a ebulição dos desejos recém-descobertos pela religiosa. Quando a música toca, por breves momentos, é como se a frieza do que vimos até o momento ficasse em suspenso e a vida se revelasse deliciosamente hipnótica em seus sons, cheiros e sabores. Assim, Ida, com seus grandes olhos inquietos e assustados, começa a perceber que viver - apesar de toda dor que possa causar - é contagiante. E evitar tudo isso depois de ter experimentado, agora sim, se configurará num autêntico sacrifício.


quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Leviatã: quando a fé não move mais montanhas


Indicado ao Oscar 2015: Melhor Filme Estrangeiro

Na mitologia bíblica, Leviatã é um poderoso monstro marinho que causa devastação por onde passa. Afrontá-lo, significa perder a vida. A criatura surge no livro de Jó, capítulo 41. O filme de Andrey Zvyagintsev pode ser visto como uma atualização da história do personagem da Bíblia que, desafiado por Deus, precisou passar por diversas provações até conseguir suas recompensas. No entanto, no longa-metragem, o monstro é outro e as recompensas são inexistentes. Essas informações são importantes para podermos entender melhor a obra aqui resenhada.

Kolya, um homem comum, vive numa casa próxima ao mar de Barents, norte da Rússia, com a mulher e o filho. Com os bens confiscados pela prefeitura, ele pede ajuda ao amigo Dimitri, um advogado de Moscou. Enquanto acompanhamos todas as tentativas do russo de reaver sua propriedade, somos apresentados a indivíduos corrompidos e corruptos. O prefeito Vadim é o símbolo máximo dessa corrupção. Arrogante e violento, o político utiliza o poder, que lhe foi outorgado, a seu bel-prazer e sem nenhum escrúpulo destrói a vida de quem atrapalha seus projetos gananciosos.

Pelos personagens que compõem a pequena família - pai, mãe e filho - podemos observar três vertentes de um país decadente. A Rússia dos homens: machista e violenta. A Rússia das mulheres: silenciosa e passiva. E a Rússia dos jovens: assustada e perdida. Todos bebem vodca em excesso e vivem a maior parte do tempo alcoolizados criando uma atmosfera ébria que parece antecipar a inevitável tragédia que está por vir e que precisará ser enfrentada. Nesse caso, estar sóbrio não parece ser uma boa opção. A câmera de Zvyagintsev mira em dois alvos: o estado e a igreja. Articulados, ainda em pleno século XXI, as duas instituições são responsáveis por perpetuar o poderio de políticos corruptos e a ignorância de um povo que espera por uma intervenção divina que, um dia, os salve de todos os males. A crítica é corajosa e direta ao governo de Vladimir Putin e isso fica evidente quando vemos a fotografia do presidente russo ornando o gabinete do prefeito Vadim.

O diretor recorre a uma fotografia bem executada que reforça o tom melancólico do enredo. Cenários lúgubres tornam a narrativa ainda mais intensa. Cenas de ondas quebrando sobre rochedos surgem desde o início da projeção. A fluidez das águas do mar contraposta a rigidez das pedras é um bela metáfora do homem que acredita ser possível mudar alguma coisa pela força da insistência, da paciência e da fé. Porém, diante de um governo leviano que nada faz para a humanidade e que governa como se fossem deuses para benefício próprio, não basta crer em Deus para fazer mudanças. No universo severo criado pelo diretor, a fé não move mais montanhas. E quando o desespero se instala, rezar não faz mais sentido. Imagens de barcos abandonados irrompem em diversas passagens da história para representar o estado de espírito dos personagens nos quais a inocência é nula. Em Leviatã todos são barcaças meio afundadas, meio destruídas e totalmente perdidas. Amizade e traição entram no bojo como elementos que dão conta das questões humanas mais internas. Porém, a cena com simbologia mais incisiva é a do menino que, desesperado, chora próximo a um imenso esqueleto de baleia. O leviatã, como besta dos mares, aqui, se revela morto para dar lugar a outro monstro muito pior: o homem. 

Sem muitas explicações, o cineasta constrói uma obra vigorosa e triste. A cena da traição da mulher com o amigo do marido não é revelada, apenas os assistimos voltando para casa com os rostos marcados pela violência do esposo traído. Não são visíveis também as armações do prefeito para incriminar Kolya, bem ao final do filme. Simplesmente percebemos o que está acontecendo, sem que para isso precisemos ver qualquer coisa que seja. Leviatã é uma produção russa da melhor qualidade que, sem mostrar muito, diz bastante. É um retrato desolador da Rússia, e a experiência vivida pelo protagonista muito se assemelha a de um personagem kafkiano. Kolya é lançado em um mundo no qual as leis não fazem justiça e encontrar saída é impossível. Por mais que Dimitri se esforce para defender o amigo, ele acaba por se deparar com um sistema judiciário obscuro e burocrático que mais prejudica do que ajuda o seu cliente.

No momento derradeiro, não há novidades quando descobrimos que Kolya perderá a sua casa. Afinal, o próprio trailer mostrava um trator derrubando uma residência; uma cena pungente que nos provoca grande indignação. Agora, a grande surpresa é descobrir o que é erguido nas terras que a prefeitura toma tão violentamente do pai de família. Dado o exposto até aqui, acho que não é difícil imaginar. Adivinhou? Ao final, quando os créditos sobem, será impossível não percebermos que a realidade retratada no filme russo é assustadoramente semelhante a que vivemos no Brasil e que o homem nunca foi tão lobo do homem como em tempos atuais.


domingo, 1 de fevereiro de 2015

Boyhood: um exercício cinematográfico sobre o tempo

Indicação ao Oscar de Melhor Filme
Outras indicações: diretor, edição, ator coadjuvante (Ethan Hawke), atriz coadjuvante (Rosana Arquette) e roteiro original (Richard Linklater).

Transições de tempo são importantíssimas para contar histórias no cinema. Por exemplo, não dá para imaginar filmes como O curioso caso de Benjamim Button (2008) de David Fincher sem a utilização de recursos para fazer a passagem dos anos, pois, obviamente, o que está sendo narrado é a sequência dos dias. Mas se a maioria dos cineastas utilizam efeitos visuais para conseguirem o que desejam, o diretor Richard Linklater utilizou o tempo em si mesmo como elemento de sua obra. Boyhood: da infância à juventude é um exercício cinematográfico singelo sobre o decorrer da vida, sobre o inexplicável que é viver e, interposto a tudo isso, sobre a efemeridade. 

A câmera do diretor observou minúcias do crescimento do menino Mason interpretado pelo até então desconhecido ator Ellar Coltrane. Ao acompanharmos a trajetória do personagem até o seu ingresso na universidade de 2002 a 2014, observamos como ele precisa lidar com as mudanças decorrentes das separações amorosas da mãe e o que entra em cena são as perdas inerentes à vida as quais, inevitavelmente, todos nós precisamos nos adaptar. Ao construir a narrativa ao longo de doze anos filmando pouco a pouco o processo de amadurecimento e envelhecimento de seus atores, o cineasta rompeu com a tênue linha que separa vida real e arte. Ao mesmo tempo em que muito intimamente seguimos o percurso de vida do protagonista, a câmera também nos faz acompanhar a passagem de tempo no ator que o interpreta, gerando uma obra curiosa e importante para o cinema mundial.

É na transição da criança para o adolescente, e daí para a fase adulta, que vemos a vida passar de forma mais nítida. A partir dos trinta anos, mudamos pouco ou mal nos damos conta de que estamos “passando”. São crianças e jovens que nos revelam, através de suas mudanças físicas e comportamentais, que o tempo urge. Por isso o foco da trama se concentra em crianças e não em adultos. Mas isso não nos exclui de assistir a decorrência dos anos nos pais do protagonista, o que torna a obra ainda mais dinâmica. Rosana Arquette e Ethan Hawke, atores sem vaidades, abriram mão de bons salários e contribuíram com boa parte de suas vidas em nome do fazer artístico. Trata-se de uma entrega genuína, rara de ser apreciada na sétima arte, ainda mais no que concerne ao cinema norteamericano. É intrigante observar também que o menino protagonista concedeu à sua carreira uma estranha unicidade ao interpretar apenas um personagem ao longo dos últimos doze anos. Dessa forma, ele foi criança numa tela de cinema apenas uma única vez e nunca mais será porque hoje, aos 19 anos, encontra-se adulto. Para os atores envolvidos no projeto, o registro realizado deve ter sido motivo de orgulho e estranhamento.

A simplicidade é a base de todo o filme. Roteiro e atuações estão corretos, se pensarmos nas infinitas possibilidades que essa ideia tinha para dar errado. Não há grandes reviravoltas na trama e o maior acontecimento do roteiro incide no dia-a-dia, no viver. Não muito diferente do que é a vida da maior parte das pessoas. A despeito dos sonhos que acalentamos, a maioria de nós viverá de maneira trivial e nossas maiores conquistas serão as que todos desejam: um bom trabalho que nos sustente e nos conceda alguns prazeres na vida, um grande amor, algumas viagens inesquecíveis, ter filhos, comprar uma casa, um carro e ponto final. Todo o resto são coisas de ordem pessoal que, em geral, serve apenas para preencher os dias até o nosso momento derradeiro. O cinema, principalmente o sediado nos Estados Unidos, sempre foi um catalisador de narrativas heroicas, grandes feitos e histórias incríveis. Boyhood, no entanto, é o contrário de tudo isso. É uma película que fala de pessoas comuns, gente como a gente, nada extraordinárias, sem grandes perspectivas de fama e sucesso desenfreado que a mídia tanto incute em nosso pensamento. É uma obra que tem temporalidade própria e se distancia do famigerado imediatismo contemporâneo. Não é à toa que possua quase 3 horas de duração. 

Richard Linklater é um dos cineastas americanos mais geniais da atualidade e o tempo é um de seus instrumentos de trabalho mais profícuo. Utilizou-o de forma exemplar na trilogia romântica Antes do amanhecer (1995), Antes do pôr-do-sol (2004) e Antes da meia-noite (2013) que acompanhou um casal da juventude à vida adulta, configurando-se em um de seus melhores projetos cinematográficos. Em tempos nos quais a velocidade dita o ritmo da vida e consequentemente da arte, Linklater faz de seus trabalhos algo que desperta a atenção, sem que para isso precise se render aos exageros típicos da moda. Registrar o tempo não é trabalho fácil, requer paciência que respeite a própria gestação da obra com seus prováveis imprevistos. É como esperar um filho nascer. E isso é belo, mágico, sensível, mas também assustador. Bem no finalzinho do filme, o roteiro ainda abre uma pequena discussão filosófica: aproveitamos o momento ou é o momento que se aproveita da gente? A resposta pode levar uma existência inteira.

As etapas do crescimento do ator Ellar Coltrane