domingo, 3 de novembro de 2013

Gravidade: roteiro simples, filme arrebatador


 (Este texto contém spoilers)

-“Não é lindo?”. Pergunta o astronauta à sua parceira de trabalho que, distraída, indaga: - “O quê?”. E, logo em seguida, obtém como resposta: - “O nascer do sol”. O diálogo parece banal, mas revela uma das mais poderosas ferramentas do filme "Gravidade": a simplicidade de seu roteiro.

O longa-metragem do cineasta mexicano Alfonso Cuáron, realizador dos excelentes "Filhos da esperança" e "E sua mãe também", é uma bem-vinda realização do cinema norte-americano tão fustigado pela precariedade de seus roteiros em benefício de superficialidades. O problema é que, tratando-se de uma indústria, os executivos dos grandes estúdios estão mais interessados em fazer dinheiro do que necessariamente preocupados com a qualidade de seus projetos. Mas como toda regra tem suas exceções. Eis uma bela exceção.

De autoria do próprio cineasta junto ao filho Jonas Cuáron, o roteiro, de início, nos apresenta os personagens e a situação em que se encontram. A equipe de astronautas capitaneada pela missão da doutora Ryan Stone (Sandra Bullock), surge fazendo um pequeno ajuste numa placa de comunicação do telescópio Hubble. Logo são avisados de que destroços de um satélite, abatido pela Rússia, estão vindo na direção deles. Rapidamente são atingidos e o caos se instala. A partir daí, precisam lidar com o desespero, a iminente falta de oxigênio e a sobrevivência na vastidão do espaço.

A produção poderia facilmente incorrer às tentações típicas do cinema hollywoodiano preenchendo cada seqüência com efeitos especiais estonteantes e cenas de ação ininterruptas a cada minuto de sua projeção. Mas o cineasta, empossado de um grande talento, acabou por entregar uma obra acima da média que foge dos habituais cacoetes cinematográficos. Sua estratégia foi não deixar de lado a adrenalina e a ação tão desejadas pelas grandes plateias do mundo, mas permear tudo isso com sensibilidade e argúcia, elementos que traçam a linha divisória que define um filme medíocre de um filme expressivo.

O roteiro de “Gravidade” é de poucas palavras, cenas bem construídas e muita contemplação. Quando o personagem de George Clooney chama a atenção da personagem de Sandra Bullock para ver o sol, não se trata de fugaz admiração. Trata-se de um chamado para a vida. Imersa em uma grande tristeza pela perda da filha, a doutora Ryan, mergulha na imensidão do espaço como quem mergulha em seu próprio vazio existencial deixando de apreciar o esplendor da vida ao redor. Em diversas passagens da película, contrasta-se a magnificência do espaço com a nossa pequenez. Assim, o filme abarca questões como a fragilidade humana, o desejo de sobrevivência em situações adversas e a solidão. Não importa a condição em que vivemos ou as perdas e danos que sofremos ao longo da nossa trajetória de vida, enquanto houver um fiapo de esperança, todos nós, desejaremos continuar vivos. Isso pode parecer trágico, mas antes de tudo é humano.

E num filme que fala sobre a possibilidade da morte, metáforas relacionadas à vida enchem a tela. A imagem dos astronautas presos por uma corda, numa analogia ao cordão umbilical, pode ser vista claramente como uma alusão à necessidade do outro como condição para existirmos. A mensagem é evidente: viver na mais extrema solidão é impossível. No momento em que a astronauta de passado trágico entra na nave e se despe das pesadas roupas descansando em posição fetal, temos aí uma das mais belas cenas do cinema norte-americano contemporâneo. E a sequência final, não poderia encerrar o filme de forma mais coerente ao fazer referência ao nascimento. Assim, brilhantemente, o que estava no papel de forma bastante modesta se potencializa em belíssimas imagens. É isso que faz deste filme um grande feito.

A influência do cinema independente se faz presente no enredo: apenas dois personagens, sem histórias paralelas e poucos diálogos. Todas características não pertencentes ao cinema mainstream,  mas das quais o olhar sagaz de um mexicano se apropria a serviço do cinemão. Tecnicamente falando, o filme tem tudo em seu devido lugar. Trilha-sonora executada nos momentos-chave da projeção e intercalada com momentos de silêncio que intensifica a sensação de desespero. A fotografia de Emmanuel Lubezki (A árvore da vida) é um desbunde. Realiza perfeitamente um exercício de contraste entre luz e escuridão que aumenta a sensação de insegurança no espaço. E o 3D é um dos melhores já realizados no cinema que se aviva ainda mais numa tela IMAX. Somos o tempo todo levados a um jogo de percepções, ora subjetivas, ora objetivas que nos faz compartilhar a experiência sufocante vivida pelos personagens. Raros foram os momentos que presenciei grande comunhão do público com a tela grande.

No elenco, temos um George Clooney como coadjuvante de luxo que, numa atuação mais leve, equilibra a atuação mais densa de Sandra Bullock que, de fato, carrega todo o filme nas costas. A atuação dela é muito bem dosada, equilibrando momentos de puro desespero e outros de total autocontrole, característica necessária para quem embarca numa viagem rumo ao espaço sideral. Aos 49 anos, a atriz demonstra que está no auge de sua carreira e que em boas mãos pode render bastante como na cena em que uiva dolorosamente explicitando toda a sua fragilidade.

Diante de tantos predicados, “Gravidade” vem sendo ovacionado como o filme do ano, recebendo excelentes elogios tanto da crítica especializada quanto do público e, certamente, será um dos grandes premiados na noite do próximo Oscar. Ao enfatizar o lado humano de seus personagens, deixando que os efeitos especiais apenas ajudem a contar uma história (e não sejam a história em si), Cuáron provou que a experiência cinematográfica criada com alta tecnologia pode ser prazerosa sem ser enfadonha e que entretenimento pode ser sinônimo de produto de qualidade. Parece óbvio, mas nessa indústria que aqui vos falo, poucos parecem saber disso.

Roteiro simples, filme arrebatador. Feito para ser apreciado numa tela grande. Após a sessão,  creio que não haverá dúvidas: nasce um clássico.



*Como eu havia dito, "Gravidade" tornou-se o grande premiado da noite do Oscar 2014, o filme recebeu 7 Oscars, incluindo melhor direção para Alfonso Cuáron e melhor fotografia para Emmanuel Lubezki. Apesar de não ter levado prêmios importantes como melhor atriz para Sandra Bullock e melhor filme, o longa-metragem foi a grande sensação da noite e reforçou sua fama de grande filme de entretenimento, que agora se eterniza com os prêmios recebidos. Atualização em 07 de março de 2014.