sábado, 26 de novembro de 2016

Elle: uma mulher com vinte janelas


Este texto contém spoilers. Veja o filme e depois leia a crítica.

Paul Verhoeven ficou famoso em Hollywood no final dos anos 80 e começo de 90 por sucessos comerciais como Robocop: O Policial do Futuro (1987), O Vingador do Futuro (1990) e Instinto Selvagem (1992), e fracassos retumbantes como Showgirls (1995) e Tropas Estelares (1997) que, hoje, distanciados no tempo, se transformaram em cults. Fora do universo dos poderosos produtores americanos encontrou dificuldades pra filmar. Suas temáticas favoritas, a violência e o sexo, evidentemente, encontraram grandes entraves para a realização de suas ideias. A Espiã, uma produção belga-alemã de 2006, foi sua última produção com relevância. Eis que agora, o cineasta, nascido na Holanda, encontrou em território francês a oportunidade perfeita (leia-se: liberdade criativa) para realizar o seu novo trabalho. Assim, Elle surge no cinema marcado pelo rótulo de “filme polêmico”. Exibido no encerramento do Festival de Cannes 2016, o longa-metragem foi ovacionado pela crítica, mas não demorou muito para as plateias mais sensíveis começarem a tachá-lo como “filme machista” ou “filme misógino”. A explicação para a divergência de opiniões segue adiante.

Michèle Leblanc é uma executiva poderosa e criativa da indústria de videogames. Comanda sua equipe, e sua vida pessoal, com mãos de ferro e uma frieza assustadora. Mas essa informação somente chegará a nós, plateia, depois da abertura quando, subsequente ao término dos créditos iniciais, escutamos os gritos de uma mulher em desespero. Sem preâmbulos ou concessões, o diretor abre a imagem com uma brutal cena de estupro, assim mesmo, sem pedir licença, tanto quanto é o ato violento ali praticado. O que poderia seguir numa denúncia na delegacia, inesperadamente resvala para outros caminhos. Ainda machucada, Michèle se levanta, recolhe os cacos da destruição resultante da luta com seu agressor, toma um banho e finge que nada aconteceu. Esse início, por si só, gera um grande estranhamento. A partir de então, a projeção nos apresenta a uma numerosa quantidade de personagens que circundam a figura feminina principal: o filho passivo-agressivo, Vincent (Jonas Bloquet), e a raivosa e interesseira esposa dele, Josie (Alice Isaaz). A mãe idosa, Irène (Judith Magre), que paga um garoto de programa, Ralf (Raphäel Lengret), para não se sentir sozinha. O ex-marido, Richard (Charles Berling), que se sente fracassado na carreira de escritor mas, ainda assim, tenta conquistar mulheres com seu suposto talento. A melhor amiga e sócia, Anna (Anne Consigny), cujo marido Robert (Christian Berkel) a está traindo às escondidas e, por fim, o vizinho boa gente, Patrick (Laurent Lafitte), que desperta o interesse sexual de Michèle e, aparentemente, está feliz e bem realizado com a esposa católica Rebecca (Virginie Efira). Cada um desses indivíduos, por menor que seja a participação, tem a sua relevância no enredo e estão todos muito bem conectados ao longo das 2 horas e 10 minutos de duração do filme. 

O pai da protagonista, que surge como um passado do qual ela quer se esquecer, acrescenta tanto à trama que, por um momento, até acreditamos que o sangrento episódio ficcional, ocorrido nos anos 70, de fato, aconteceu. Aliás, fazia tempo que eu não via um filme que utilizasse tão bem o recurso do flashback. A própria cena do estupro é resgatada em dois outros momentos da projeção, sendo uma de rememoração, por meio de um elemento bastante marcante, o miado do gato; e a outra, de imaginação, quando a personagem tenta refazer na memória como ela gostaria que a situação terminasse, caso vencesse a luta contra o seu violador. Desse jeito, vislumbramos o funcionamento da mente diante de um trauma em um constante processo de repetição. Verhoeven, em nenhum momento, julga suas criações, pelo contrário, sem pudores, revela suas facetas mais detestáveis, trazendo à tona a mediocridade, a arrogância, a ignorância, a covardia e a vaidade humanas. Um das sequências mais importantes é quando todos estão reunidos à mesa durante uma cerimônia de Natal. Até ali, já conhecemos um pouco de cada um deles e reconhecemos suas fraquezas e seus fingimentos. A crítica que se deseja fazer, de forma bastante irônica, fica ainda mais contundente quando a encenação ocorre sob a fachada cristã. Não há como negar, trata-se de uma reflexão sobre a hipocrisia e a moralidade excessiva de nossos tempos que, tomando a decisão de jogar para debaixo do tapete aquilo que não compreende, acaba por gerar desvios de comportamentos bastante agressivos.

Adaptado por David Birke do romance “Oh...” de Philippe Djian, que também escreve o roteiro, Elle faz um inventário de seres humanos cujo desejo é a maior força motora da existência. Não é à toa que o mundo animal surja à espreita ou, repentinamente, em vários momentos da história: zebras correm numa imagem da televisão, um pássaro se fere ao se chocar contra uma vidraça, um cervo cruza o caminho de um automóvel em movimento, animais mortos são mencionados pela protagonista numa conversa quando ela conta a tragédia que viveu na infância, e não podemos nos esquecer do belíssimo gato que é tão personagem quanto os humanos. É ele, por sinal, que assiste, impassível (antes mesmo do espectador), a cena do estupro. A animalidade humana revela-se latente, pronta a se materializar quando menos se espera. Lembremos que uma das fotografias de divulgação da produção é da protagonista confrontando um gato (foto acima), numa espécie de cotejo entre mundos distintos nos quais ambos possuem seus afetos e monstruosidades. E o miado do gato, já mencionado nesse texto, serve como dispositivo de conexão entre esses dois universos. 

Isabelle Huppert, num papel que poucas atrizes aceitariam fazer, confere à sua interpretação camadas profundas cujo alcance é intangível. Não sabemos ao certo o quanto ela seduz ou é seduzida no perigoso embate que realiza com seu algoz. Também temos dúvidas sobre o quanto de psicopatia ela herdou do pai. A cena final com o filho adiciona ainda mais incertezas sobre a sua conduta. Nesse sentido, é de grande simbolismo quando o vizinho Patrick, durante uma tempestade, oferece ajuda à empresária para fechar as janelas da residência, e ela responde que na casa devem haver mais de vinte janelas. Trata-se de uma sutil metáfora da complexidade humana: Michèle Leblanc é uma mulher com vinte janelas abertas e algumas, evidentemente, fechadas. Por mais que a investiguemos, pouco a decifraremos. Assim, é mais que acertada a escolha do título construído apenas com um pronome. (Elle, em francês, significa Ela). Dessa forma,  ao associar a casa com a personagem, não me furtei de fazer comparações: a Michèle, de Isabelle Huppert, se alinha à Clara, de Sônia Braga, em Aquarius. São mulheres que, longe de serem vítimas, assumem uma postura de perscrutação de si mesmas, sondando os seus desejos e os seus medos. São duas mulheres que não recorrem à polícia para resolverem seus problemas, que não são nada fáceis de serem resolvidos sozinhos. Aqui, não se trata apenas de orgulho, mas sim de tentar compreender por meios menos maniqueístas, o mundo cheio de ambiguidades com o qual interagem. É maravilhoso que a arte cinematográfica, em 2016, tenha nos presenteado com essas obras, grandes exercícios de observação do mundo feminino por lentes nada convencionais.

Cinematograficamente, Elle é estupendo. A fotografia com palheta em tons de marrom, aproveita muito bem as luzes e as sombras dos cenários, conferindo uma ar de conforto contraditório às perversidades presenciadas. (A elite sabe esconder seus podres como ninguém). Os enquadramentos sugerem claustrofobia aos espaços filmados nos dando a impressão de se estar sempre na iminência de um novo ataque. A montagem rápida e pontual conduz a trama com bastante movimentação de cena. A direção, segura do que quer, desconstrói os clichês dos filmes de suspense. Estão lá, o gato que dá o susto proposital, o homem mascarado cuja identidade precisa ser descoberta, os suspeitos e as pistas falsas. Na intenção de contar uma história que nunca pretende ser mais do mesmo, o roteiro é um exercício de gênero cinematográfico, ao mesmo tempo em que entrega algo para além do suspense proposto. Diálogos rápidos e precisos, cheios de intenções que revelam mais do que aquilo que é dito, permeiam toda a narrativa. Como, por exemplo, a frase genial “A vergonha não é um sentimento forte o suficiente a ponto de te impedir de fazer nada”, que pode ser entendida como a tônica de toda a trama. Também é bom ficar atento ao final quando Rebecca diz “a gente acumula coisas”, cujo sentido não é só falar de ajuntamento de objetos e coisas, mas também sobre nossos acúmulos emocionais que podem promover atitudes incompreensíveis. Assim sendo, o estupro, no filme, surge como o mais alto nível dessas insanidades. 

Por isso é compreensível que muitas pessoas tenham agido com estardalhaço diante de um longa-metragem tão diferente e dúbio quanto este. Elle poderia ser um filme de crime, de vingança, de culpados, de vítimas e vilões, mas não é. É uma obra de provocação que vira do avesso algumas convenções, e Verhoeven faz isso com maestria. Um dos papéis primevos da arte é o de balançar o senso comum e fazer com que o apreciador - no caso do cinema, o espectador - consiga se colocar noutras posições distintas das que estão dadas/impostas. Em um mundo no qual a indústria cultural transformou a mentalidade do público a ponto de fazê-lo acreditar que o papel majoritário da arte é o entretenimento e o escapismo, o estranhamento provocado por Elle é mais que bem-vindo. É preciso senso crítico apurado para perceber que, o que está em exibição na tela, não se trata de misoginia e nem de machismo, ainda que fale desses temas. É como arte que Elle deve ser julgado, não como panfleto contra ou favor de causas humanas. E se a arte incomoda é porque disse mais do que deveria dizer e, na minha opinião, é melhor que se diga. Anotem: Elle é a obra-prima de Paul Verhoeven e será um daqueles filmes discutidos, estudados e revisitados ad infinitum.

 Paul Verhoeven dirige Isabelle Huppert


quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Aquarius: o cabelo, o amor e o câncer


Este texto contém spoilers. Veja o filme e depois leia a crítica.

Ovacionado no último festival de Cannes, Aquarius, de Kleber Mendonça Filho, ganhou as páginas dos jornais por causa de um protesto oportuno no tapete vermelho da Riviera Francesa. No dia da sessão, o governo Temer (interino e golpista) tomava a disparatada decisão de extinguir o Ministério da Cultura, um retrocesso sem precedentes desde o fim da ditadura militar brasileira. Porém, é bom que se esclareça: para além do viés político, o filme foi aplaudido pelos seus méritos audiovisuais. A história de Clara, interpretada magistralmente por Sonia Braga, é composta por três partes, aparentemente sem conexão entre si. (Mas não se enganem, no roteiro escrito pelo cineasta, nenhum elemento surge em vão). “O cabelo de Clara”, “O amor de Clara” e “O câncer de Clara” são os três momentos os quais, aos poucos, a narrativa vai se sustentando. Após um prólogo nos anos 80 no qual a protagonista, ainda jovem, aparece recuperada de um tratamento de câncer, o tempo salta para os dias atuais quando somos apresentados à sua versão mais madura. Dona de cinco apartamentos no edifício homônimo ao título, viúva, com três filhos e aposentada, ela precisa lidar com a insistência de uma empreiteira que deseja derrubar a antiga construção, na qual é a única moradora remanescente, para dar lugar a um empreendimento mais moderno e luxuoso. Sem nenhum interesse na proposta de compra e venda, os idealizadores do novo projeto arquitetônico incitam-a de diversas maneiras no intuito de fazê-la desistir da ideia de continuar morando no prédio. Essa é a coluna vertebral do roteiro, o entorno da trama é preenchido com a vida da jornalista, sua solidão, seu envelhecimento, sua relação com os filhos e com a empregada, sua rotina como aposentada, suas amizades, seus flertes e, principalmente, suas memórias.

No apartamento de Clara, tudo parece ter vida própria. Seja na vitrola que toca clássicos da MPB - resgatados inteligentemente para a composição da trilha sonora – nos livros na estante, no pôster de filme antigo que orna a parede, no piano no canto da sala, na rede na qual ela adormece, na panela que fumega no fogão ou na cômoda que faz a Tia Lúcia relembrar suas experiências sexuais nos minutos iniciais da história. Coisas simples, mas que transcendem o objeto em si. Trata-se de um longa-metragem sensorial alicerçado em emoções orgânicas e intensas que faz crítica aos tempos líquidos modernos nos quais as relações interpessoais são medidas pelo valor do dinheiro e à arte é conferida a característica do descarte. Dessa forma, a juventude século XXI é retratada em sua alienação, como no caso da entrevista em que a protagonista comenta sobre a descoberta de um vinil com um recorte de jornal sobre a morte de John Lennon para, logo em seguida, ouvir uma fala que deixa a entender que a jovem ouvinte nada compreendeu do que a ex-crítica de música acabara de dizer. A arrogância do engenheiro Diego (Humberto Carrão) também reflete esses tempos de relações dissimuladas e sorrisinhos falsos. Mas se, por um lado, o retrato dessa juventude é desgostoso, por outro, o filme abre uma brecha esperançosa ao colocar em cena um casal de namorados. O reconhecimento da sensibilidade através do olhar, entre Clara e Júlia, a namorada de seu sobrinho, durante a audição de uma música, escolhida a dedo da farta coleção de vinis da dona da casa, é uma das mais belas cenas deste trabalho.

Para criar a ideia de tensão vivida pela moradora do cobiçado prédio, o diretor recorre à linguagem do terror utilizando-se de clichês que, longe de empobrecer a trama, auxiliam na representação do clima de inseguranças e incertezas vividas pela proprietária do Aquarius. Assim, fantasmas surgem durante os sonhos, portas batem violentamente com a força do vento, a rede de proteção de uma obra avança misteriosa sobre os carros na calçada como um véu branco, a empregada se assusta com um trabalhador que surge na janela pelo lado de fora, sem contar o clímax construído por meio de ruídos e estalos de madeira. Os cinéfilos poderão se deleitar com sutis homenagens. Como não lembrar do clássico filme Tubarão, de Steven Spielberg, quando a câmera foca na placa que avisa que há tubarões na praia de Boa Viagem e, após um corte, a personagem se prepara para dar um mergulho observada atentamente pelo amigo salva-vidas Roberval (Irandhir Santos). Stanley Kubrick é homenageado com o pôster de Barry Lyndon preso à parede da sala e com os acordes iniciais da célebre trilha sonora do clássico 2001 – Uma odisséia no espaço que são ouvidos de forma brevíssima durante uma cena. Também não há como negar que o filme tenha um delicioso quê hitchcockiniano na forma como o suspense é construído. O cineasta filma como quem investiga sua personagem, ao mesmo tempo em que se espanta junto às descobertas que ela faz, por meio de um zoom abrupto quando, por exemplo, Clara se dá conta, diante de uma vitrine, que um cinema de rua foi transformado numa grande loja de eletrodomésticos. Conjuntamente à memória das coisas, a transformação das coisas no tempo torna-se a grande temática da narrativa. Observe a cena do coveiro que retira a ossada humana de uma cova ou a tensão provocada por automóveis que se locomovem na garagem numa estranha "dança" de quem entra e de quem sai. São cenas eficientes no intuito de refletir o permanente e o efêmero, o que fica e o que vai, uma movimentação intensa de troca e substituição cujas bases são difíceis de compreender na atualidade.

Mesmo que toda a trama esteja situada na capital pernambucana, a história em si poderia se passar em qualquer outra cidade brasileira. A modernização das cidades, a especulação imobiliária, o crescimento urbano que degrada a qualidade da vida humana são entrelinhas que não nos passam despercebidas. Recife se torna emblemática, nesse sentido, por ter ocupado às páginas dos jornais com o movimento Ocupa Estelita cujos manifestantes se colocaram contra o projeto de revitalização Novo Recife na região central da cidade. Não há como negar, Aquarius é um filme político em seu sentido mais amplo, não como querem rotular os detratores da obra. E é triste constatar que tais pessoas com pensamento criticamente distorcido, não reconheçam (ou finjam não reconhecer) as metáforas, as analogias e as reflexões presentes na história e que dão conta de um país cada vez mais empobrecido pela ignorância, pela banalidade da violência e pelo esvaziamento da humanidade. Não à toa, os diálogos dos personagens são permeados de cinismo e são falsamente corteses ou, por vezes, tão verdadeiros a ponto de reconhecerem que também são parte do sistema opressor - como quando a cunhada de Clara fala da ex-empregada negra que roubou as joias da família dizendo "a gente explora eles, eles nos roubam". A violência implícita - sorrateira como o traficante de drogas da orla da praia - torna-se muito mais perigosa do que aquela que presenciamos como espetáculo, todos os dias, nos telejornais, e é capaz de destruir estruturas, silenciosamente, como cupins que acabam por condenar uma construção. Aliás, é genial a metáfora isóptera, que podemos interpretar não só como uma analogia à corrupção brasileira, como também à proliferação religiosa indiscriminada dos tempos atuais.

Portanto, ao criticar o estado atual do nosso país, as três partes que dividem o filme acabam por dizer muito mais do que aquilo que se vê na tela. Se no primeiro ato remete-se ao cabelo como fase de recuperação, é bom lembrarmos que o tempo retratado, nos primeiros minutos de projeção, é o pós-ditadura. "1979 foi um ano difícil", diz um personagem. Retrata-se um período de lembranças, ainda recentes, de restrições dos direitos civis e humanos. Não é à toa que o marido compare a esposa à cantora Elis Regina, um nome artístico forte e contestador dos tempos de chumbo. Aqui, então, o cabelo, além de resistência, também é um forte símbolo da rebeldia e da contestação. O câncer, na terceira parte, surge literalmente no corpo mutilado da personagem. O corpo do indivíduo e o corpo do edifício mesclam-se como uma coisa só, e denotam o histórico pernicioso de saqueamento, roubos e destruição do nosso país. No entanto, o amor, do segundo trecho, vem, propositalmente, no meio. Como uma força de vida, uma forma de lidar com as coisas mesmo que tudo ao redor esteja errado. O cabelo, o amor e o câncer são de Clara, mas também são ótimas metáforas sobre o Brasil. 

A despeito da realidade circundante, a jornalista aposentada goza a vida como ninguém e distribui afetos. Não por acaso, diante das situações complicadas provocadas de forma proposital pelos donos da empreiteira, a personagem não recorra à polícia. Clara é uma personagem de natureza subversiva. Não se alinha ao sistema no qual as forças policiais são o instrumento máximo da opressão. Ela é da geração que vivenciou a ditadura. Diante das insatisfações, faz protesto à sua maneira, com música, com o corpo, com vinho e com o próprio desejo sexual. Não se deixa contagiar pela inocuidade da violência, assim como não se deixa dominar pelos “modismos” tecnológicos dos tempos modernos. A reação final da protagonista, apesar da agressividade contida, é muito mais um protesto contra àqueles que a perturbam, do que um puro e simples gesto violento. Desconfio que os black-blocs que atacaram, preferencialmente, as instituições bancárias nas manifestações de junho 2013, seguiram muito de perto essa linha de pensamento. 

Com seu segundo longa-metragem de ficção, Kleber Mendonça Filho se firma como um dos grandes cineastas brasileiros. Proporcionou à atriz Sônia Braga seu merecido reencontro com as telas e com o público, algo que não acontecia desde Tieta do Agreste, de Cacá Diegues, há 15 anos. Assim como propiciou ao espectador uma obra audiovisual única, de resistência a um cinema de fórmulas fáceis e de valorização da memória como um dos bens mais valiosos do ser humano. Politicamente, Aquarius é um trabalho indispensável. Artisticamente, é um dos melhores do ano. Um filme para cinéfilos e brasileiros com o juízo no lugar.

A foto do protesto em Cannes 2016

terça-feira, 21 de junho de 2016

Agnus Dei: uma reflexão sobre o conservadorismo religioso


Festival Varilux de Cinema Francês 2016

O término da Segunda Guerra Mundial, em 1945, pode ter significado um novo começo de era para muitos indivíduos, depois de longos anos de sofrimento. Mas as feridas deixadas pela barbárie desse período permaneceram muito além na mente e nos corpos das pessoas. Se para muitos sobraram as cicatrizes das torturas e da violência belicista, para outros tantos - especificamente para as mulheres - restou a dor de ter que carregar a gestação de um filho indesejado. Agnus Dei, de Anne Fontaine, - responsável por Coco Antes de Channel estrelado pela atriz Audrey Tautou – é um filme que atrai a atenção do espectador pela narrativa peculiar. Uma médica que atua na cruz vermelha francesa na Polônia é chamada às pressas por uma noviça para ajudar alguém supostamente doente. Chegando ao convento, descobre, não somente uma mulher em processo de parto, como também a história perturbadora das freiras que residem naquele local. Durante uma invasão de soldados, elas foram brutalmente violentadas. Muitas delas acabaram engravidando, o que acabou forçando a madre superiora da instituição a esconder esse segredo por medo do julgamento impiedoso da sociedade e consequente fechamento do convento diante do escândalo, caso ele se tornasse público. A história é baseada em fatos reais e a revelação do estupro das freiras, aqui mencionada, não é nenhuma novidade, a própria propaganda de divulgação do longa-metragem revela isso. O que importa no roteiro, escrito pela própria cineasta em parceria com outras três mãos, é acompanhar a forma como cada uma das celibatárias lida com a gravidez proibida dentro de um ambiente de regras intransponíveis, opondo, o tempo todo, a rigidez dos princípios cristãos com o pragmatismo da médica ateia que passa as auxiliá-las em sigilo.

A diretora conduz tudo de forma bastante elegante recorrendo a um trabalho de direção de fotografia muito bonito que remete à arte barroca. Dessa forma, os corredores do convento surgem soturnos como se, realmente, escondessem algum mistério macabro e desconcertante. É interessante notar o contraste da escuridão da arquitetura do local com a neve do lado de fora, algo que também reforça o teor de sombras do recinto representado. Nesse jogo de dualidades, cabe notar a forma como muitas das personagens surgem na tela. A médica, muitas vezes, é posta sentada junto a alguma religiosa, ora em primeiro plano, ora num contracampo, que evidenciam a divergência de dois mundos. Respeitando os dois lados apresentados - não se trata de um filme ateu e e muito menos religioso - Fontaine realiza uma obra interessante na qual a ponderação dos argumentos afirma o respeito, sem nunca abrir mão do viés crítico. "O que é simples para você, não é simples para nós", diz uma freira quando confrontada pelas ideias objetivas da protagonista. A abordagem realizada permite que o espectador pense questões como a alienação religiosa por um viés mais empático e menos radical. Porém, o ponto nevrálgico de toda a trama é retratar os traumas subsequentes da guerra em mulheres, cujo o estupro foi um dos piores pesadelos e um dos meios de demonstração de poder mais desumanos.

Agnus Dei é um filme de atuações femininas. O ator Vincent Macaigne, que interpreta o médico Samuel, integrante da missão francesa, na maioria das vezes em que aparece funciona como alívio cômico. Entretanto, é em uma tríade de mulheres que o roteiro se constrói. Lou de Laâge, que interpreta a cética médica Mathilde Beaulieu, confere a densidade e a emoção que o papel exige, mas é na relação com as outras atrizes que a protagonista cresce. Ela representa o lado racional do ateu, porém sempre muito humana. Ágata Kulesza que faz o papel da madre que dirige o convento, é o oposto de Mathilde. Retratada como uma mulher de atitudes severas e extremistas que, para se manter fiel aos seus princípios religiosos, é capaz de atitudes bastante questionáveis. Por fim, temos Maria, a freira que, no caminho do meio, tece críticas a sua fé, apesar de seguir acreditando em Deus. Ela compreende a vida por meio de um olhar mais amplo sobre as coisas, seguindo aquilo em que acredita e contestando aquilo que julga necessário. As performances, em alguns momentos, soam um tanto maniqueístas, mas acabam, satisfatoriamente, se desdobrando para uma reflexão sobre o fundamentalismo religioso e sobre o comportamento das grandes instituições religiosas que tendem a abafar situações quando diante de escândalos, principalmente, os de ordem sexual.

O longa-metragem se alonga um pouco mais do que o necessário ao final, e se concentra demais nos partos de cada uma das freiras grávidas. Mesmo assim, é um trabalho pertinente e que deve ser visto, principalmente, pela mensagem humana que carrega em si: diante dos imprevisíveis caminhos da vida, sempre há atitudes que podem surgir como alternativas às escolhas fundamentadas na austeridade das ideias conservadoras. Para isso, há que se ter empatia para que compreendamos o mundo do outro com suas escolhas e decisões, desde que estas não interfiram nas escolhas de outros indivíduos. Parece-me uma bela mensagem para os dias de hoje tão fustigado pela violência da ignorância humana. Em tempo: o título original da produção é Les Innocents (As Inocentes), no entanto, Agnus Dei - expressão latina que significa Cordeiro de Deus - é uma escolha bastante sagaz e que condiz perfeitamente com a trama apresentada. Um daqueles raros casos em que o título nacional é mais criativo do que o original.


sexta-feira, 17 de junho de 2016

Meu Rei: atuações viscerais conduzem o drama


Festival Varilux de Cinema Francês 2016

Esqueça o amor romântico. No longa-metragem Meu Rei (Mon Roi), a faceta do amor que mais interessa é a que revela sua complexidade e densidade. O amor, como uma das temáticas mais recorrentes no cinema, parece inesgotável em suas possibilidades de exploração, no entanto, é mais fácil assistirmos a filmes que enveredem por clichês da temática do que vermos algo que consiga ir além na proposta da abordagem amorosa entre dois indivíduos. Felizmente, a cineasta Maïwenn Le Besco (Polissia, 2011 e O Baile das Atrizes, 2009) conseguiu, com muita inteligência, construir uma história de amor única e emocional. Para quem não sabe, Maïwenn foi a cantora de ópera de cor azul do filme O Quinto Elemento (1997) de Luc Besson, seu ex-marido.

Meu Rei conta a história de Tony, uma mulher que acabou rompendo gravemente um ligamento do joelho após um incidente enquanto esquiava nas montanhas, cena que abre os eventos da narrativa. De cara, percebemos que estamos diante de uma pessoa angustiada por um mero detalhe: uma inquietante e profunda respiração da esquiadora. Esta sutil ação ainda deixa implícito que a personagem tinha outras intenções ao se lançar no desfiladeiro. A partir de então, acompanhamos sua recuperação num centro de terapia intensiva, ao mesmo tempo em que a observamos recordando a relação amorosa - intensa e conturbada - que viveu com o seu segundo marido, Georgio Milevski. Do encontro ao acaso, à paixão fulminante, do casamento à gravidez e às brigas, a câmera da diretora leva o espectador a acompanhar esse relacionamento como um verdadeiro voyeur, adentrando os labirínticos caminhos da mente humana quando diante de uma grande paixão. A narrativa do tratamento ortopédico se costura perfeitamente com os flashbacks que vão sendo revelados de forma bastante arguta - um trabalho de montagem impecável que nos faz sentir o peso de 10 anos em pouco mais de 2 horas de projeção.

Emmanuelle Bercot e Vincent Cassel demonstram uma química explosiva na tela. As inseguranças, as brigas, os desentendimentos, os ciúmes vão sendo revelados em camadas de interpretação que chegam a assustar de tão realistas. Por esta performance, Bercot ganhou o Prix de atuação feminina em Cannes, em 2015. A atriz constrói uma personagem de nuances tão complexas que sua angústia acaba transcendendo a tela do cinema. Cassel, não fica atrás, construindo um personagem masculino ambíguo, egoísta e humano em proporções muito bem equilibradas. O bom resultado da dupla, além do talento, corresponde a uma ótima direção de atores focada na intimidade do casal que a diretora explora em enquadramentos sem pudores, fixando sua câmera, preferencialmente, na protagonista feminina, como se quisesse investigá-la em seus sentimentos mais profundos. A atuação de Bercot e Cassel é tão visceral que o restante do elenco acaba desaparecendo. Assim, Louis Garrel, que interpreta o irmão da protagonista, torna-se um coadjuvante de luxo, sem nunca ter o personagem aprofundado. Entretanto, é dele os momentos mais divertidos do filme.

Observando atentamente a narrativa, podemos perceber que há diversas sequências que se passam numa piscina, o que nos induz a pensar numa analogia ao nascimento. No caso do filme, fica claro o "renascimento" da personagem que sempre surge com os cabelos molhados, em ambientes muito úmidos, os olhos marejados e "reaprendendo a andar". No tempo da convalescença, ela repassa a vida e descobre a si mesma. De posse dessas informações, o tratamento de Tony torna-se uma metáfora de sua própria vida. Pela medicina, o joelho é considerado a maior e mais complexa articulação do corpo humano. Assim como o amor, talvez, seja a emoção humana mais difícil de lidar. Portanto, no roteiro, o joelho ganha status de coração. Pode parecer estranho, mas faz muito sentido se entendermos que a dor que a personagem sente na alma materializa-se na dor do ligamento rompido. Sem querer estragar as surpresas, apenas digo que há um cena proposital, inserida durante os acontecimentos do enredo, que vai fazer você pular da poltrona de tanta aflição. Os sentidos denotativos da palavra "articular", inferindo a ideia de comunicar, pronunciar ou proferir algo, também não podem ser esquecidos. Dessa forma, os personagens surgem como seres que se comunicam, mas não o fazem por completo porque, na realidade, não há comunicação completa entre os indivíduos. Sempre há algo a ser dito, e na impossibilidade do dizer, despontam-se os desentendimentos, as brigas e as ofensas, muitas delas resultantes da inabilidade do ser humano de lidar com aquilo que não compreende em si mesmo e no outro. Não é em vão que, depois de anos juntos, Tony conclua não conhecer mais o marido.

Não há sentimentos fáceis neste quarto trabalho de direção de Maïwenn. É, portanto, com ironia que, longo nos primeiros minutos, quando o casal está se conhecendo numa festa, a música Easy do Son Lux surja com seu refrão repetitivo como se nos provocasse: afinal, o que no amor é fácil? Há que se lembrar que os joelhos dobrados remete a posição de submissão a algo ou alguém e isso esclarece o título da produção. Ao se colocar tão reverente ao seu objeto de desejo, como se ele fosse um rei, a personagem acaba por anular parte de sua própria vida em nome de uma relação permeada de ideais românticos. Os caprichos do marido, na maior parte do tempo, conduzem a vida da protagonista. Observe como é ele quem decide ter um filho, sem levar em conta se ela quer ou não enveredar pela maternidade. Abre-se, aqui, uma discussão sobre relacionamentos abusivos, mas a direção escolhe caminhos menos lugares-comuns e menos sexistas para abordar o tema, fugindo do maniqueísmo homem canalha X mulher vítima, ao colocar os dois como parte intrínseca do processo mutuamente.

Amar pode ser um veneno para algumas pessoas. No entanto, não há como aprender a lidar com as emoções humanas sem nunca tê-las experimentado. Às vezes, é preciso atirar-se no precipício (a cena literal da abertura não está lá por acaso) para podermos amadurecer, aprender ou entender certas coisas sobre a vida e sobre nós mesmos. “O amor nada é, enquanto novo, honesto e puro. O amor antes da tempestade, não é escolha: é decreto”, diz a personagem feminina em determinado momento da projeção. Meu Rei é um retrato dos relacionamentos contemporâneos cujos indivíduos, sem o exercício salutar do diálogo, acabam amargurados, destroçados e mergulhados em todo tipo de entorpecente com o intuito de dar conta das emoções mal resolvidas que, invariavelmente, se desdobram em imensas frustrações. (Maldito amor romântico que gerou neuras para serem trabalhadas num consultório por séculos). Quando amamos, há o medo de falhar, o medo de ser rejeitado, o medo de perder, o medo de não ser amado, o medo da solidão e tudo isso surge nas entrelinhas do longa-metragem. O diálogo do eletrocardiograma do personagem de Cassel, que diz que a vida não pode ser uma linha reta, pois isso significaria a morte, é a chave de entendimento de toda a trama deste belíssimo trabalho audiovisual. Um dos melhores do ano.


segunda-feira, 13 de junho de 2016

Chocolate: o Otelo circense


Festival Varilux de Cinema Francês 2016

As origens do circo remontam ao desenvolvimento das civilizações antes de Cristo mas, como espetáculo de variedades para entreter o público, tem incipiência durante o Império Romano com a luta de gladiadores, as corridas de carruagens e a exibição de animais selvagens. A forma do circo moderno, como conhecemos atualmente, começa a ganhar força a partir do crescimento das cidades e da vida urbana. As atrações tinham como objetivo causar assombro e encantamento, além de fazer o público gargalhar com as estripulias do palhaço, o carro-chefe da arena de apresentações. No intuito de provocar a curiosidade das multidões, os empresários do circo recorriam a diversos números apelativos, sempre com um viés de exotismo, que tinham o intuito, ora de provocar o riso, com a exibição da mulher mais gorda do mundo, por exemplo; ora de provocar o espanto, com o homem negro canibal vindo da África. Era o século XIX e, nessa época, o pensamento burguês branco era o que ditava as regras e o conceito da palavra preconceito ficava muito mais recôndita do que expressa. Além disso, muitos profissionais do circo se submetiam ao escárnio das elites, principal público do picadeiro, por motivos de sobrevivência. É neste cenário que se desenvolve o excelente Chocolate, filme francês dirigido por Roschdy Zem que narra a trajetória do primeiro artista circense negro da França.

No roteiro de Cyril Gely, o famoso palhaço Footit precisa reinventar suas ideias para manter o seu emprego no circo Delvaux. Quando ele assiste a um homem negro apresentando-se como Kananga, o canibal rei da África, decide chamá-lo para fazer uma parceria inédita na história, na qual se apresentariam como uma dupla de palhaços. A característica fenotípica de ser um branco e um negro seria o diferencial. Kananga é rebatizado como Chocolat e sai da condição de "shows de bizarrices" para adentrar no mundo dos palhaços, muito mais bem remunerado e com maior fama entre o público, principalmente, entre as crianças. O sucesso é arrebatador. A dupla cresce e acaba recebendo um grande contrato para se apresentar em Paris, cidade-sede dos grandes espetáculos circenses na transição do século XIX para o XX. O grande mote desse enredo, baseado na história real de Rafael Padilla, é colocar o protagonista consciente do preconceito que sofria. Apesar da promoção recebida, que o tira da condição de ser visto como uma besta-fera para se tornar um célebre palhaço, os números apresentados com o seu parceiro branco, na maioria das vezes, o colocava em posição de humilhação. Uma vez em Paris, e no auge de seu sucesso, o protagonista começa a despertar a ira das elites brancas que não conseguiam aceitar que um negro fizesse tanto sucesso. Não é preciso dizer que Chocolat sentirá na pele, literalmente, o peso violento do racismo da época.

O cineasta nos coloca para dentro do mundo colorido e encantado de um circo, recorrendo a um impecável trabalho de direção de fotografia, figurinos e cenografia. A reconstituição de época no filme é primorosa e elegante. Porém, é por detrás das cortinas que Roschdy direciona as lentes de sua câmera desnudando a ignorância humana da época. Os donos do negócio apelavam para todo o tipo de apresentação que pudesse dar retorno financeiro e com o argumento de que estavam lidando com artistas, submetiam seus contratados as mais profundas formas de desrespeito. Chocolat, nome que por si só focava na cor da pele como forma de atração, acreditava estar inserido neste universo artístico cuja função maior era entreter acima de qualquer outra coisa. Com fama e dinheiro, pôde satisfazer seus prazeres mais miúdos, como o interesse por belas mulheres e o vício em jogos que acaba o levando à ruína. No entanto, é a realidade do preconceito que lhe revela os caminhos mais desgostos da vida em sociedade. Sua decadência se dá quando começa a contestar a condição de alienação na qual se encontrava no palco. Uma cena demonstra essa tomada de consciência quando ele se vê diante de um pôster de divulgação do espetáculo sendo retratado açoitado por Footit e com feições de um animal. 

Há no filme um paralelo com a tragédia shakespeariana Otelo, cujo personagem negro  - naquela época, sempre interpretado por atores brancos com o rosto pintado - desperta o interesse de Rafael Padilla. Na interpretação dele, Otelo foi vencido pela ingenuidade de querer ser igual ao outro, ou seja, foi derrotado por querer ser igual ao branco numa sociedade hipócrita que jamais permitiria que isso acontecesse. Entra aqui uma breve e interessante reflexão do poder da literatura na transformação do homem, pois é a partir dela que o palhaço negro começa a ter compreensão da falsa cordialidade que o cercava e da forma preconceituosa como era tratado. É útil lembrar do filme O Homem Elefante de David Lynch, cujo protagonista portador de uma anomalia acaba “adestrado” para fazer graça e horror às plateias de um circo. Tanto em Chocolate quanto em O homem Elefante o cerne da questão é a forma estúpida como o homem lida com as diferenças. 

A amizade afetiva e conflituosa dos dois palhaços se torna algo quase palpável pela plateia, resultado da desenvoltura dos brilhantes intérpretes. James Thiérrée, ator suíço - neto de Charlie Chaplin - que também é artista de circo na vida real, conduz seu Footit com precisão, contrastando o amor à arte com a solidão da vida privada. Porém, é de Omar Sy a grande performance do longa-metragem, o ator de filmes como Intocáveis (disponível no Netflix) e Samba dá um show na pele de Chocolat numa atuação que revela a entrega,  o carisma, a incorreção e o sofrimento do personagem retratado. Sem dúvidas, Omar Sy é um dos grandes atores franceses do momento. A produção ainda resgata os preciosos registros do artista negro circense na obra de Toulouse-Lautrec (ver foto ao final do texto) e na câmera dos irmãos Lumière, os precursores do cinema, em imagem rara exibida ao final da projeção.

Chocolate é uma cinebiografia de primeira que nos faz pensar sobre os limites do humor, sobre a consciência da própria alienação perante o mercado de trabalho, a desumanização de indivíduos, e ainda provoca uma reflexão sobre a condição do que é ser artista. Nos tempos atuais, na cultura circense, felizmente, já não são permitidos números com tamanho rebaixamento de seres humanos. Isso prova que a humanidade tem evoluído - às duras penas, não há como negar – porém, olhada em retrospecto, é difícil ficar indiferente as feridas incicatrizáveis deixadas como registro em um passado não tão distante. No entanto, a tragédia maior, ao assistir este trabalho cinematográfico, é perceber que esse tipo de comportamento, de fazer espetáculo de gosto duvidoso com as diferenças, ainda seja recorrente em pleno século XXI como, por exemplo, nos linchamentos de ladrões (sempre negros) amarrados à postes de luz para exibição pública, ou nos terríveis bullyings sofridos por muitas crianças e adolescentes nas escolas, por divergirem do padrão socialmente aceito, ou mesmo num estupro coletivo de uma mulher indefesa que é postado nas redes sociais com ares de diversão. Não há como negar, na contemporaneidade, o “circo” da ignorância, infelizmente, ainda existe e, parte dele, está na Internet.

obras de Toulouse-Lautrec registrando o palhaço Chocolat

sexta-feira, 10 de junho de 2016

A viagem de meu pai: um exercício quase proustiano


Festival Varilux de Cinema Francês 2016

Há vários filmes no cinema sobre a perda da memória, talvez, uma das mais cruéis formas de terminar a vida, justamente, por nos tirar o direito de lembrar da nossa trajetória até o momento derradeiro. Em Flórida, novo filme de Philippe Le Guay, Claude Lherminier é um senhor octogenário que precisa lidar, cotidianamente, com os seus esquecimentos cada vez mais agravados pela passagem da idade. No passado, liderava com mão de ferro uma fábrica de papéis cujo comando a filha mais velha, Carole, assumiu após a incapacidade declarada do pai para o trabalho. É na relação delicada e conturbada entre pai e filha que toda a narrativa se alicerça. O cineasta conduz seu longa-metragem com sensibilidade e elegância e, pouco a pouco, vai nos revelando os fatos do passado de seu protagonista, marcado por tragédias indeléveis, que inclui a infância durante a II Guerra Mundial, a perda da segunda esposa de forma abrupta e a morte repentina da filha mais nova, da qual ele vive esperando uma visita que, obviamente, nunca acontecerá.

O filme de Le Guay é de uma leveza incrível, mas carrega como pano de fundo dramas pesadíssimos. Enquanto alguns momentos nos provocam risos - as tentativas de Claude de se livrar das ajudantes contratadas pela filha são hilárias - , outros são de dar um nó dorido na garganta, impossível ficar indiferente. Parte dos bons resultados da produção são provenientes da atuação da dupla de protagonistas. Jean Rochefort interpreta o velho rabugento, implicante, orgulhoso e manipulador de forma adorável e humana. Já Sandrine Kiberlain, que interpretou Simone de Beauvoir em Violette (2013), confere a sua personagem um balanço de sentimentos confusos permeados pela angústia,  pelo desespero contido e pelo afeto imenso que sente pelo pai. A cena que mais resume esse embate de atuações, segundo o próprio diretor, é o momento em que Carole precisa despir o pai após ele se urinar por inteiro. Reside ali a descoberta de duas pessoas que, ditas familiares, percebem-se estranhas diante da nudez revelada. O desconforto, a desconfiança, o medo travam as relações diante da intimidade inesperada.

Ao abordar a questão da memória como principal temática de seu trabalho, o cineasta utilizou-se de recursos fílmicos bastante eficientes para conduzir a história que desejava contar. Nesse sentido, destaca-se a belíssima fotografia, que valoriza as paisagens de Avenay - pequena cidade francesa que faz fronteira com a Suíça - e que atribui ao antigo casarão da família, no qual Lherminier reside, ares de grande conforto que, confrontado com os tons frios que as cenas assumem quando ele precisa morar com a filha no pequeno apartamento dela, dá uma ideia de deslocamento e estranheza próprios de quem se encontra em estado amnésico. A montagem também se aproveita muito bem das falhas de memória para construir um enredo que acaba por confundir o espectador, no bom sentido. Durante toda a projeção, ao mesmo tempo em que é mostrada a rotina do personagem, a trama é entrecortada por uma viagem de avião que, ao final, nos faz indagar se ela foi fruto da imaginação ou da realidade do homem. Num filme que fala sobre emoções perdidas, reminiscências do passado e da tentativa de resgate do que se perdeu - ou da manutenção do que ainda resta - é interessante observar que o diretor tenha escolhido elementos cujo o sentido do paladar parece se destacar. Assim, temos o suco de laranja favorito, proveniente da Flórida, que reporta à cidade onde a filha falecida residia; a rejeição ao vinho com o qual ele diz estar “brigado”, que lembra o rompimento de uma grande amizade do passado e a ojeriza ao arroz-doce, que remete aos tempos de guerra pela semelhança que ele associou com o vômito de um soldado morto. É quase um exercício proustiano no qual a madeleine (biscoito tradicional francês), levada à boca, acaba por evocar emoções pretéritas.

Assisti ao filme no Festival Varilux de Cinema Francês 2016 e, logo após a projeção, o simpático diretor conversou com o público. Revelou que o longa foi filmado em 8 semanas, após uma extensa pré-produção. Admitiu cuidados especiais para não extenuar seu ator principal que tem 85 anos, mas que Rochefort se prontificou a fazer tudo o que lhe fosse pedido, inclusive, se colocou a disposição para aparecer nu, caso fosse preciso. Ideia que o diretor, aos risos, disse ter rejeitado por não ver necessidade para a trama. Em uma de suas falas, também revelou que seu primeiro curta-metragem era sobre um garoto que tinha um prego no pé e, mesmo assim, seguia para a escola. Refletindo sobre o longa-metragem, aqui resenhado, pensei que essa história daria uma ótima metáfora para este novo trabalho do cineasta. Assim sendo, o "prego no pé" seria aquela dor - física ou emocional - que todos nós temos que carregar em algum momento de nossas jornadas ou a vida inteira. Porém, mesmo diante do incômodo, precisamos seguir em frente. Em Flórida isso se configuraria na filha que precisa lidar com a doença do pai ao mesmo tempo em que precisa manter os negócios da família, cuidar do filho adolescente e manter a sua vida particular.


quarta-feira, 9 de março de 2016

Tangerine: o futuro do cinema


Se não me engano, foi Jean Renoir quem disse que o cinema só se tornaria arte, de fato, quando os instrumentos para realizá-lo fossem tão fáceis de manusear quanto lápis e papel. A sentença visionária do cineasta francês parece estar ganhando vida pela primeira vez na história. Tangerine, do americano Sean Baker, é um daqueles filmes que nasceram para ser cult. Após ser exibido no festival de Sundance, o longa-metragem ganhou projeção no mundo todo e conquistou a atenção do público e, principalmente, da crítica. Sua maior inovação: ser realizado com aparelhos de celular Iphone 5S. No total, foram três celulares usados para as filmagens, somando a eles adaptadores, aplicativos e técnicas próprias do cinema para que o produto final fosse satisfatório. É incrível observar o quanto a ideia de Baker deu certo. Muito certo, por sinal. Com pouco mais de 100 mil dólares, ele conseguiu criar uma obra que não deixa nada a desejar aos grandes filmes. Porém, toda essa inovação - ele não foi o primeiro a fazer um filme em celular, mas foi o que rendeu melhores resultados e repercussão – poderia passar despercebida se não tivesse a seu favor uma boa e cativante história.

O roteiro conta a história de duas prostitutas transgêneros. Sin Dee (Kitana Kiki Rodriguez) acabou de sair da prisão e descobre, sem querer, pela melhor amiga Alexandra (Mya Taylor. Primeira atriz trans a ganhar o prêmio de melhor atriz coadjuvante no Spirit Awards, considerado o Oscar dos filmes independentes), que seu namorado e cafetão, Chester, está saindo com uma “mulher de verdade”, uma “rachada” em seu vocabulário próprio. Enfurecida, a protagonista percorre as ruas da cidade de Los Angeles em busca do namorado e da mulher com a qual ele está saindo para fazer um ajuste de contas. Ao mesmo tempo, somos apresentados ao taxista Razmik, de origem armênia, que mantém seu desejo por transsexuais pagando por programas, e que acaba despertando a desconfiança da sogra quando sai no meio da ceia de Natal para supostamente trabalhar. O clímax desse enredo é o encontro de todos esses personagens em um dado momento da projeção. A grande realização de Sean Baker é conseguir lançar a plateia para dentro de um Sunset Boulevard de travestis, prostituição, drogas e estrangeiros, descortinando uma L.A de esquinas perigosas e nada glamourosas que destoa totalmente daquele imaginário romântico que Uma Linda Mulher (1992) perpetuou por tantas décadas. O que vemos é um mundo real e cru, cujo o humor é a mais poderosa ferramenta para atenuar a realidade dos que vivem ali. Esse humor, um tanto depreciativo, pode ser observado em alguns momentos da projeção quando, por exemplo, Alexandra diz à amiga: “Deus às vezes é cruel” e Sin Dee responde de imediato: “Ele me deu um pinto”. Com um roteiro simples e com boas sacadas, escrito pelo próprio diretor em parceria com Chris Bergoch, eles conseguiram não só um feito técnico no que diz respeito à criatividade das filmagens, como também conseguiram fazer um obra relevante em muitos outros aspectos.

Toda a trama se desenrola às vésperas do Natal durante parte de um dia. A família do taxista surge em cena, durante uma ceia natalina, para fazer um contraponto com a dura realidade das meninas que nas calçadas vivem seus dramas, conflitos e buscam a sobrevivência. A nossa zona de conforto, na maioria das vezes, não nos deixa ver além daquilo que estamos acostumados, e esse filme tem o valoroso papel de levar às plateias a esse universo violento, solitário, de desejos reprimidos, histriônico e fora dos padrões convencionais, mas que, ainda assim, é mais verdadeiro, autêntico e humano do que a aparente plasticidade das famílias conservadoras. Nesse sentido, é preciso destacar uma cena específica quando Razmik faz sexo oral em Alexandra dentro de um carro enquanto o veículo entra num daqueles tubos de limpeza típicos dos lava-jatos americanos. Qualquer gemido de prazer é abafado pelo barulho que tiras de pano, jatos d´água e rolos de espuma fazem durante o ruidoso processo. É como se a vida lá fora quisesse, a todo custo, “limpar”/“arrumar” o externo, sufocando o interior que se revela imperfeito, complexo e, por isso mesmo, mais palpável. A cena da lavanderia, ao final, (mais uma com referência à limpeza), confirma o que aqui tento explicar: a “sujeira” da qual o mundo tenta se livrar é o resultado de comportamentos hipócritas, alienados, limitados e preconceituosos que acabam por marginalizar pessoas que não são muito diferentes de nós. São seres humanos com vontades, desejos, sonhos, tristezas e alegrias. Assim como eu, assim como você que me lê.

Dentro das possibilidades de um módico orçamento, merecem destaques o uso da trilha sonora e o trabalho fotográfico do filme. Música clássica e, principalmente, eletrônica são utilizadas de forma explosiva e constante. Quando Coriolan Overture de Beethoven toca, enquanto Sin Dee pensa na vida, diante de um ônibus que se esvazia, cria-se uma atmosfera dramática e irônica para, logo em seguida, ela pronunciar um “Foda-se!” e seguir em frente com seus intentos ao som do bate-estaca que volta a estourar novamente na tela. A situação nos dá a dimensão da inquietação da personagem e nas entrelinhas nos revela o choque de dois mundos: um que se quer sério, dramático e organizado (a imagem das pessoas saindo do ônibus de forma cadenciada mostra isso) e outro que se revela difuso, irrequieto e em franca transformação. O diretor de fotografia Radium Cheung aproveita de forma inteligente a luz do sol da própria cidade realizando um trabalho impecável que confere à imagem uma elegância solar ao mesmo tempo que melancólica. Luz estourada, reflexos, luzes de letreiros, pisca-piscas natalinos dão um toque todo especial à estética da produção. 

E de onde vem o título do filme? O tangerine que intitula a produção não é mencionado em nenhum momento e a fruta aparece, rapidamente, na forma de um ornamento para o retrovisor interior do carro, objeto com o qual Alexandra presenteia o taxista em um gesto de afeto. Esclarecendo a dúvida, o diretor, em entrevistas, disse que o título faz referência a cor tangerina que o céu adquiri nos finais de tarde da Califórnia e que traz  aos céus um ar lúgubre ao princípio da noite. Lendo essa explicação, acabei me lembrando de uma música do Led Zeppelin homônima ao título, cujos versos iniciais “Measuring a summer´s day / I only finds it slips away to grey / The hours, they bring me pain”* caem como uma luva nesse enredo composto de luzes e sombras. Não faz parte da trilha sonora, mas se fizesse não seria nada mal. No entanto, se a imagem da fruta também surge durante a narrativa, mesmo que de forma breve, creio que haja mais sentidos envolvidos. Buscando informações sobre a simbologia da tangerina na Internet, eis que me deparo com uma explicação que diz que a fruta era utilizada em séculos passados para restabelecer mulheres após partos e menstruações. Assim sendo, a tangerina é uma fruta relacionada à saúde feminina. Pensando nas meninas trans do filme, talvez o diretor tenha escolhido o título de seu trabalho pensando em possibilidades mais amplas de reflexão que vão além do simplório tom alaranjado de um fim de tarde. Talvez, tangerine torne-se referência a um tipo de mulher em transformação, como a mudança do dia para a noite que, antes de se efetivar, promove o crepúsculo; Uma mulher que ainda está além da compreensão do nosso limitado olhar, como as tonalidades incertas que colorem o céu num pôr-do-sol. Uma mulher que, imperfeita, revela-se inteira. Tangerine é arte como imaginou Renoir e com seus prolíficos resultados parece abrir as portas do futuro do cinema e da mentalidade humana.

Sean Baker filmando com um Iphone

*Refletindo sobre um dia de verão
Eu só o vejo se tornar cinza
As horas me trazem dor

terça-feira, 26 de janeiro de 2016

Carol: elegante, sensível e, acima de tudo, humano

Indicações ao Oscar 2016:
Melhor atriz: Cate Blanchett
Melhor atriz coadjuvante: Rooney Mara
Melhor roteiro adaptado
Melhor fotografia
Melhor trilha sonora
Melhor figurino

Therese Belivet trabalha em uma loja de brinquedos. É véspera de Natal e o local está repleto de mães em busca do presente ideal para seus filhos. De repente, surge uma bela mulher, de elegância impecável, que entra no estabelecimento e, sem querer, esbarra num dispositivo que mantém um trenzinho em funcionamento dentro de uma redoma de vidro. Imediatamente, o brinquedo deixa de fazer seu incansável e ruidoso percurso circular que tanto encanta as crianças. É uma cena aparentemente simples - que dará conta do primeiro encontro entre Therese e Carol – mas que dirá muito sobre o universo dessas duas poderosas personagens femininas.

O diretor Todd Haynes construiu sua adaptação do livro de Patrícia Highsmith, - autora de sucessos como Pacto Sinistro e O Talentoso Ripley, todos já transpostos para o cinema - de forma extremamente sutil e delicada, sem resvalar em nenhum momento para exageros ou apelações. A título de curiosidade, a obra literária se chamava The prince of salt e foi publicada, em 1953, sob o pseudônimo de Claire Morgan. Atualmente, o livro também é reconhecido pelo nome que batiza o filme. Desde o início, quando vemos as duas protagonistas conversando em uma mesa de restaurante e um personagem masculino surge para cumprimentá-las, podemos observar a sutileza com a qual o diretor nos apresenta às moças. Carol se levanta, cumprimenta o rapaz com um aperto de mão breve e firme e, antes de partir, toca o ombro de Therese. Na sequência, o homem faz o mesmo. Filmada de costas, Therese - tocada dos dois lados dos ombros - revela-se uma mulher dividida, em dúvida, e confusa em seus pensamentos. É o que basta para o espectador entender o comportamento da personagem em questão. Tudo em Carol é conduzido com o maior cuidado e o resultado é uma obra de arte cinematográfica de qualidade ímpar.

Apesar de Carol ser o nome que intitula a produção, é sob o olhar de Therese que a história de amor é conduzida. Acompanhamos a evolução da jovem vendedora de brinquedos, que sonha em ser fotógrafa, pela brilhante atuação da atriz Rooney Mara (performance premiada em Cannes) que imprime à sua caracterização timidez, curiosidade, melancolia e estranheza em doses bastante equilibradas, o que a torna crível e apaixonante diante de nossos olhos. O momento da projeção em que ela vai passar um fim de semana na residência da nova amiga e a observa num conturbado relacionamento familiar com o marido e, logo em seguida, retorna para casa, não sem antes, desabar em um choro contido e dorido, é de uma beleza e tristeza incríveis. Nessa passagem, percebemos o quanto Therese está apaixonada e, diante disso, não é preciso dizer muita coisa. A emoção revelada é a perfeita tradução do momento. Quem, na vida, viveu uma grande paixão, aqui, compreenderá a natureza da dor que emerge diante da possibilidade de um amor que corre o risco de não se concretizar.

Cate Blanchett está irritantemente elegante em sua composição (e isso é um elogio) e empresta à sua personagem suas próprias marcas de expressão que, sem vaidades, são expostas no rosto da atriz que sabiamente envelhece. Blanchett é, sem dúvidas, um dos maiores talentos do cinema mundial. Sua Carol Aird é uma mulher independente para os padrões conservadores dos anos 50, tem opinião própria e vive sua sexualidade de uma forma muito natural dentro do possível para a época. Mantém um casamento de fachada com o marido (Kyle Chandler) que, durante algum tempo, fingiu aceitar sua bissexualidade em nome de uma imagem familiar idealmente organizada e feliz e, socialmente, legitimada. O problema vem à tona quando ele resolve pedir na justiça a guarda da filha, alegando a imoralidade do comportamento da esposa. Assim, Haynes nos leva a um debate bastante contemporâneo que diz respeito à condição de homossexuais na criação de filhos. Se hoje em dia, ainda vemos situações absurdas de indivíduos que julgam pessoas do mesmo sexo incapazes de cuidar de crianças, imagine como era em décadas passadas. É numa frase de Carol que se introduz a crítica quando, aviltada, ela questiona: “tirar a filha de uma mãe, não seria imoral também?”.

Aliás, Cate Blanchett profere muitos bons diálogos, por vezes, permeado de um leve humor irônico, por exemplo, quando questiona o porquê das pessoas acharem que receber notícias ruins será menos pior quando estão sentadas, ou quando, irritada, após uma discussão, arremata: “Quando mais nada pode piorar, o cigarro acaba”. O roteiro adaptado, muito bem urdido, foi devidamente indicado ao Oscar 2016, assim como as atuações da dupla de protagonistas. O filme também figura entre outras categorias dada a excelência do produto final que se exibe ao público. Fotografia, direção de arte e figurino foram concebidos com esmero, e juntos, ajudam a reconstruir os belos cenários de uma Nova York dos anos 50 onde se passam os acontecimentos narrativos. Apesar das indicações que recebeu, é uma pena que a produção não tenha conquistado um espaço entre os melhores filmes. Porém, isso não diminui, de maneira nenhuma, a potência desse trabalho. Pequenos detalhes dão um toque especial ao longa-metragem. Observe com atenção como vidros embaçados e foscos aparecem o tempo todo, ao longo da narrativa, fazendo evidente referência à vida daquelas mulheres que se amam, mas precisam viver em segredo aquilo que sentem. Em uma passagem específica, as duas estão dentro de um carro em movimento, o automóvel adentra um túnel e os vidros das janelas, cobertos de vapor condensado provocado pelo frio, pela chuva e pela respiração de ambas, fundem-se a uma música distorcida que as fazem mergulhar no meio da escuridão. Eis uma bela metáfora erótica realizada para demarcar a tensão sexual que começa a aflorar entre elas.

A trilha-sonora colabora de forma eficaz para a nosso processo de imersão e traz em sua partitura notas melancólicas que refletem ora a força, ora a fragilidade do amor. A cena do trenzinho, supracitada, torna-se uma analogia da própria vida que circula incessantemente por caminhos muito iguais e repetitivos e que, por algum motivo, de repente, para. Pode parar por causa de uma tragédia, de um arrependimento, de uma perda. E ao parar, nos faz ver o mundo com outros olhos, sair da zona de conforto. No caso do filme, a paixão é o que faz o “trem da vida” parar. E assim, torna-se inevitável o resgate da expressão “fora dos trilhos” tão comumente pronunciada quando o sentido e os rumos da vida tornam-se confusos e complexos demais. A paixão entre Carol e Therese acontece durante um período de rigoroso inverno e, não é por acaso, que quando viajam para o oeste do país, as cenas ganhem nuances mais solares, refletindo o momento de realização do amor. Mas a neve e o frio insistem em se fazer presentes e, logo, Carol terá que enfrentar seus demônios.

Muito mais que receber o rótulo de “filme lésbico”, Carol é, acima de tudo, uma grande obra de cinema e não deve ser reduzida a um rótulo tão limitador. É uma história de amor avassaladora, vivida em uma época de muitos preconceitos, e que Todd Haynes - assim como fez em Longe do paraíso (2002), outro belíssimo trabalho do diretor, também ambientado nos anos 50 - coloca a disposição do espectador para que ele pense e reflita. É em um diálogo no qual Therese, acostumada a fotografar objetos, diz que precisa se interessar mais por humanos que podemos assimilar o recado que o diretor parece estar dando ao mundo. Decerto, todos nós temos que nos interessar mais pelos humanos e o momento atual urge por isso. Mas se o frio do mundo insiste em nos sabotar, é no calor dos corpos que parece existir uma força inabalável que se traduz em amor, sexo, paixão e vida.