domingo, 3 de novembro de 2013

Gravidade: roteiro simples, filme arrebatador


 (Este texto contém spoilers)

-“Não é lindo?”. Pergunta o astronauta à sua parceira de trabalho que, distraída, indaga: - “O quê?”. E, logo em seguida, obtém como resposta: - “O nascer do sol”. O diálogo parece banal, mas revela uma das mais poderosas ferramentas do filme "Gravidade": a simplicidade de seu roteiro.

O longa-metragem do cineasta mexicano Alfonso Cuáron, realizador dos excelentes "Filhos da esperança" e "E sua mãe também", é uma bem-vinda realização do cinema norte-americano tão fustigado pela precariedade de seus roteiros em benefício de superficialidades. O problema é que, tratando-se de uma indústria, os executivos dos grandes estúdios estão mais interessados em fazer dinheiro do que necessariamente preocupados com a qualidade de seus projetos. Mas como toda regra tem suas exceções. Eis uma bela exceção.

De autoria do próprio cineasta junto ao filho Jonas Cuáron, o roteiro, de início, nos apresenta os personagens e a situação em que se encontram. A equipe de astronautas capitaneada pela missão da doutora Ryan Stone (Sandra Bullock), surge fazendo um pequeno ajuste numa placa de comunicação do telescópio Hubble. Logo são avisados de que destroços de um satélite, abatido pela Rússia, estão vindo na direção deles. Rapidamente são atingidos e o caos se instala. A partir daí, precisam lidar com o desespero, a iminente falta de oxigênio e a sobrevivência na vastidão do espaço.

A produção poderia facilmente incorrer às tentações típicas do cinema hollywoodiano preenchendo cada seqüência com efeitos especiais estonteantes e cenas de ação ininterruptas a cada minuto de sua projeção. Mas o cineasta, empossado de um grande talento, acabou por entregar uma obra acima da média que foge dos habituais cacoetes cinematográficos. Sua estratégia foi não deixar de lado a adrenalina e a ação tão desejadas pelas grandes plateias do mundo, mas permear tudo isso com sensibilidade e argúcia, elementos que traçam a linha divisória que define um filme medíocre de um filme expressivo.

O roteiro de “Gravidade” é de poucas palavras, cenas bem construídas e muita contemplação. Quando o personagem de George Clooney chama a atenção da personagem de Sandra Bullock para ver o sol, não se trata de fugaz admiração. Trata-se de um chamado para a vida. Imersa em uma grande tristeza pela perda da filha, a doutora Ryan, mergulha na imensidão do espaço como quem mergulha em seu próprio vazio existencial deixando de apreciar o esplendor da vida ao redor. Em diversas passagens da película, contrasta-se a magnificência do espaço com a nossa pequenez. Assim, o filme abarca questões como a fragilidade humana, o desejo de sobrevivência em situações adversas e a solidão. Não importa a condição em que vivemos ou as perdas e danos que sofremos ao longo da nossa trajetória de vida, enquanto houver um fiapo de esperança, todos nós, desejaremos continuar vivos. Isso pode parecer trágico, mas antes de tudo é humano.

E num filme que fala sobre a possibilidade da morte, metáforas relacionadas à vida enchem a tela. A imagem dos astronautas presos por uma corda, numa analogia ao cordão umbilical, pode ser vista claramente como uma alusão à necessidade do outro como condição para existirmos. A mensagem é evidente: viver na mais extrema solidão é impossível. No momento em que a astronauta de passado trágico entra na nave e se despe das pesadas roupas descansando em posição fetal, temos aí uma das mais belas cenas do cinema norte-americano contemporâneo. E a sequência final, não poderia encerrar o filme de forma mais coerente ao fazer referência ao nascimento. Assim, brilhantemente, o que estava no papel de forma bastante modesta se potencializa em belíssimas imagens. É isso que faz deste filme um grande feito.

A influência do cinema independente se faz presente no enredo: apenas dois personagens, sem histórias paralelas e poucos diálogos. Todas características não pertencentes ao cinema mainstream,  mas das quais o olhar sagaz de um mexicano se apropria a serviço do cinemão. Tecnicamente falando, o filme tem tudo em seu devido lugar. Trilha-sonora executada nos momentos-chave da projeção e intercalada com momentos de silêncio que intensifica a sensação de desespero. A fotografia de Emmanuel Lubezki (A árvore da vida) é um desbunde. Realiza perfeitamente um exercício de contraste entre luz e escuridão que aumenta a sensação de insegurança no espaço. E o 3D é um dos melhores já realizados no cinema que se aviva ainda mais numa tela IMAX. Somos o tempo todo levados a um jogo de percepções, ora subjetivas, ora objetivas que nos faz compartilhar a experiência sufocante vivida pelos personagens. Raros foram os momentos que presenciei grande comunhão do público com a tela grande.

No elenco, temos um George Clooney como coadjuvante de luxo que, numa atuação mais leve, equilibra a atuação mais densa de Sandra Bullock que, de fato, carrega todo o filme nas costas. A atuação dela é muito bem dosada, equilibrando momentos de puro desespero e outros de total autocontrole, característica necessária para quem embarca numa viagem rumo ao espaço sideral. Aos 49 anos, a atriz demonstra que está no auge de sua carreira e que em boas mãos pode render bastante como na cena em que uiva dolorosamente explicitando toda a sua fragilidade.

Diante de tantos predicados, “Gravidade” vem sendo ovacionado como o filme do ano, recebendo excelentes elogios tanto da crítica especializada quanto do público e, certamente, será um dos grandes premiados na noite do próximo Oscar. Ao enfatizar o lado humano de seus personagens, deixando que os efeitos especiais apenas ajudem a contar uma história (e não sejam a história em si), Cuáron provou que a experiência cinematográfica criada com alta tecnologia pode ser prazerosa sem ser enfadonha e que entretenimento pode ser sinônimo de produto de qualidade. Parece óbvio, mas nessa indústria que aqui vos falo, poucos parecem saber disso.

Roteiro simples, filme arrebatador. Feito para ser apreciado numa tela grande. Após a sessão,  creio que não haverá dúvidas: nasce um clássico.



*Como eu havia dito, "Gravidade" tornou-se o grande premiado da noite do Oscar 2014, o filme recebeu 7 Oscars, incluindo melhor direção para Alfonso Cuáron e melhor fotografia para Emmanuel Lubezki. Apesar de não ter levado prêmios importantes como melhor atriz para Sandra Bullock e melhor filme, o longa-metragem foi a grande sensação da noite e reforçou sua fama de grande filme de entretenimento, que agora se eterniza com os prêmios recebidos. Atualização em 07 de março de 2014.


sábado, 3 de agosto de 2013

O Homem de Aço: a celebração da destruição e o culto à guerra


Tenho me distanciado cada vez mais do cinemão americano, os chamados blockbusters têm me deixado cada vez mais entediado, seja pela repetição formulaica ou seja pelo excesso e valorização dos efeitos especiais em detrimento do que é humano. O cinema americano, para quem não se deslumbra facilmente, tem sido muito mais fonte de enfado do que de prazer. Mas, de vez em quando, dou um voto de confiança a este cinema de que vos falo. Meu crédito em relação ao cinema de Hollywood é dado da seguinte forma: quando o cinema é de origem independente, ou seja, sem o apoio dos grandes estúdios. Assim cito: Tarantino, Malick, Woody Allen, os irmãos Coen, Martin Scorsese, entre outros. E também quando observo um esforço coletivo de fazer de um programa de entretenimento algo que vá além dos limites de um produto comercial. Neste caso, cito nomes como Christopher Nolan, que transformou o Batman num negócio lucrativo sem deixar que o viés artístico ficasse perdido no meio de tanta arrogância presunçosa que recorrentemente permeia cada frame de um filme que provém das terras do tio Sam. Outros pertencentes a este seleto grupo: Michael Mann e David Fincher. Só para citar alguns.

Como cinéfilo curioso, tenho a mania de acompanhar pelos sites especializados em cinema a produção de filmes que de alguma forma chamam a minha atenção. Este foi o caso do novo filme do Superman, que acabei de assistir recentemente nos cinemas. Depois de uma tentativa frustrada de trazer o personagem novamente às telas em 2006 e diante do sucesso da nova trilogia do Batman, que definitivamente estabeleceu novos padrões para as adaptações de HQs, um novo filme do mais icônico dos super-heróis teria que ser pensado. Foi com esta linha de raciocínio que os executivos de Hollywood resolveram dar sinal verde para uma outra produção do herói de colante azul e sunga vermelha que, desta vez, ao contrário do que já fora feito, deveria estabelecer caminhos alternativos para a história do célebre herói criado há 75 anos atrás pela DC Comics e que até hoje faz parte da cultura pop de forma expressiva.

O longa-metragem dirigido por Zach Snyder, que ficou famoso no mundo pelo sucesso comercial de “300” - estrelado pelo brasileiro Rodrigo Santoro - e também baseado numa história em quadrinhos chamada “Os 300 de Esparta” de Frank Miller, precisava ser diferente de tudo o que já foi feito no cinema em matéria de Superman e para isso recebeu todo o apoio necessário para que fosse, assim como Batman, algo além do famigerado entretenimento fugaz. Assim, encontramos em “O Homem de aço” mudanças bastante significativas. O uniforme é a mais visível das transformações: muito menos bizarro, faz parte da estratégia de fazer do personagem algo mais realista, apesar de todo o cunho fantástico inerente à história, e dessa forma conquistar não somente crianças e jovens, mas também um público mais adulto interessado em nuances mais profundas e menos pueris. A piada da vez, no mundo cinematográfico, é que agora, finalmente, o super homem aprendeu a vestir a cueca por baixo da calça. Brincadeiras à parte, dentre todas as modificações, a mais elogiável, segundo meu ponto de vista, está na personalidade do novo Superman. Agora, muito mais complexa, o herói se permite a atos, digamos, não tão nobres.

O filme definitivamente é um dos melhores do herói. Cumpre seu papel de bom entretenimento a contento. A boa construção narrativa que vai se fragmentando para mostrar a história do personagem criado pelo casal Kent até que ele assuma a identidade secreta de Clark Kent, jornalista do Planeta Diário, foi uma boa sacada do roteiro que dosou em iguais proporções aventura, ficção científica e drama. Não foi sem querer, que chamaram Christopher Nolan para dar um apoio na escrita e fazer algo semelhante ao que realizou em “O cavaleiro das trevas”. Há também as boas atuações: o ator escolhido para fazer o personagem principal, o ex-desconhecido Henry Cavill, dá conta do recado nos momentos mais importantes e de carga dramática mais forte e vem apoiado por um elenco de coadjuvantes de luxo que dão todo um charme a produção. Entre eles: Russell Crowe, Diane Lane, Kevin Coster, Amy Adams e Laurence Fishbourne.

Em “O Homem de aço” tudo é milimetricamente calculado para agradar as grandes massas e fazer do filme uma grande bilheteria mundial. Mas algo me desagrada em filmes como este. O argumento de trazer o personagem para as novas gerações me parece uma desculpa bem esfarrapada para nos iludir com efeitos especiais de primeira linha que, num primeiro olhar, realmente embasbaca, mas num olhar mais imersivo acaba por revelar a superficialidade de produções calcadas neste argumento. Tirando a primeira parte inicial do filme, a película, em geral, se atém muito mais no show pirotécnico, que mais cansa do que encanta. A sensação que tenho é que a todo o momento, a indústria do cinema quer mostrar ao seu público (e ao mundo) a força bélica e destrutiva de seu próprio país. Numa palestra que assisti recentemente, um ilustrador mostrava a evolução do carro do Batman ao longo das décadas. De um simples e engraçado bólido nos moldes de carro de corrida, o batmóvel se transformou em algo semelhante a um tanque de guerra na versão mais recente vista nos cinemas. O mesmo pude observar nesta nova versão do Superman. Antes, o herói simplesmente movia-se no céu e no espaço alimentando um dos sonhos impossíveis mais inerentes ao ser humano: o desejo de voar. Na versão recente, o Superman voa feito um míssil. Numa das cenas é até possível vislumbrar, ante ao voo, algo como se turbinas fossem ser disparadas do corpo do personagem. Nunca a analogia do universo dos super-heróis com o universo de uma guerra ficou tão evidente como nestas épocas em que vivemos. O exagero destrutivo do final do filme comprova isto que aqui escrevo. Cidades inteiras são destruídas num piscar de olhos sem que haja a preocupação com as vidas que são desperdiçadas. Para mim, a mensagem está clara: para conquistarmos a paz, antes é necessária a guerra. Será mesmo? E de que tipo de paz estamos falando?


Na minha humilde opinião, que neste pequeno texto já extrapola seus limites, os Estados Unidos vem utilizando o seu fabuloso cinema para incutir na cabeça, principalmente de seus jovens, a ideia da guerra e a celebração da destruição como algo positivo, e com isso, quando quiserem invadir um país com o intuito de sobrepôr uma cultura sobre a outra, ganharão um séquito admirável que lhes permitirão agir. Como você acha que o ex-presidente George W. Bush invadiu o Afeganistão e gastou bilhões com uma guerra sem resultados? Há algo por trás de tudo isso, engrenagens muito mais ardilosas do que poderíamos supor e talvez e, infelizmente, o cinema faça parte disso tudo. É uma grande discussão. No entanto, deixo para uma próxima ocasião.

Abaixo uma evolução do Superman ao longo das décadas. Versões audiovisuais.


quinta-feira, 25 de julho de 2013

O Escritor Fantasma

O clássico “O bebê de Rosemary” termina com uma cena bastante instigante. A mãe do bebê, depois de comer o pão que o Diabo amassou, se aproxima do carrinho de seu filho em meio aos discursos das pessoas ao seu redor: “Olha as mãozinhas dele”, “Olha o pezinho” e por aí vai. Tudo sugere que aquele bebê dentro do carrinho não é comum, mas algo diabólico. Ao ver o filho que gerou, a protagonista expressa o olhar mais apavorado que uma pessoa pode desenhar no rosto ao ver que seu filho é fruto de algo que vai além da compreensão humana. Em “O bebê de Rosemary”, o cineasta Roman Polanski revelou ao mundo seu grande talento na técnica cinematográfica demonstrando que sugerir muitas vezes pode ser mais interessante do que mostrar. Na condução de um filme de suspense, esta característica revela-se um artifício ainda mais eficiente.

 “O escritor fantasma” é um desses filmes no qual a sugestão é melhor que a exposição. Não foi à toa que o longa-metragem levou o Urso de Prata de direção no Festival de Berlim de 2010, provando que os méritos do cineasta de mais de setenta anos ainda são bastante relevantes ao universo da sétima arte. A película, uma co-produção entre Inglaterra, França e Alemanha, é um desses suspenses de primeira linha, com estilo, boas interpretações e uma forma de contar narrativas que revela o quanto uma boa mão na direção pode levar uma história aparentemente cheia de clichês à patamares mais elevados.

No filme, um ghost writer, interpretado pelo excelente Ewan Mcgregor, é contratado para dar continuidade às memórias de um primeiro-ministro vivido pelo ex-007, Pierce Brosnan. O ghost writer que anteriormente escrevia a biografia foi encontrado morto numa praia, aparentemente suicídio, e agora a editora, de olho nos lucros que o lançamento poderá render, precisa terminar o trabalho o mais rápido possível. Então, contratam um escritor a contragosto. No entanto, antes mesmo de assinar o contrato, ele sofre um estranho assalto o que deixa bem claro que há algo errado naqueles manuscritos deixados pelo antigo escritor. Quando começa a dar forma a seu trabalho, um escândalo mundial estoura na mídia. O político está sendo acusado de crimes de guerra que inclui seqüestro e tortura de supostos terroristas no Iraque. O filme, de forma elegante e gradativa, nos conduz ao universo recluso do trabalho de escritor, exposto muitas vezes como um trabalho tedioso. É na investigação dos fatos e na descoberta de pistas que passo a passo o protagonista vai conhecendo informações ainda mais relevantes e impactantes sobre a trajetória de vida política do primeiro-ministro biografado.

“O escritor fantasma” tem como sua principal temática a manipulação dos fatos. Sabemos que uma biografia nunca é de fato o que realmente aconteceu. Tudo vem escrito em tintas mais românticas e até os fatos mais dramáticos podem ser interpretados como algo incrível e aceitável dependendo da forma que se conta. Logo no início da projeção, os editores se reúnem para entrevistar o novo escritor e durante o papo surge a questão: o que faz uma boa biografia? O ghost-writer sem pestanejar diz: o coração. Não é à toa que até mesmo grandes bandidos, seriais killers e outras figuras subversivas podem ser humanizados numa história. Aqui, o cineasta, com certa ironia, vai nos revelando toda mentira que se esconde por trás de pessoas públicas que têm suas imagens devassadas pela mídia.

É importante observar um elemento fundamental na trama: uma grande janela que há no casarão onde reside a família do primeiro-ministro e onde o escritor fica isolado. Em determinado momento do filme, o protagonista observa um homem que tenta limpar as folhas que se espalham pelo lado de fora da casa, porém, o vento o impede de realizar o serviço. É um cena simples, mas que traz com ela informações importantes para o entendimento da narrativa: por mais que tentemos manter tudo organizado aos olhos do outro, haverá sempre algo, do qual não temos controle, que irá bagunçar tudo revelando o caos existente. Num local isolado, as janelas podem vir representadas de diversas maneiras, por exemplo, na forma da televisão ou da internet que não deixam de ser “janelas” do mundo. Com esse jogo de janelas, o cineasta e o roteirista do filme, expuseram duas realidades, a que acontece dentro da mansão e a que é informada pela mídia através dos meios de comunicação. Fatos e versões, verdades e mentiras, o ser e o parecer permeiam esta trama insidiosa.

Na era da imagem, mostrar é imperativo. No entanto, Polanski fez um trabalho às avessas: escondeu mais do que mostrou. Tudo é meio nebuloso e suspeito, assim como seus personagens. Praias desertas, céus cheios de nuvens cinzas, ventos, neblina, chuva e uma fotografia acinzentada ajudam a contar um enredo no qual nada é o que parece ser. A influência mais rapidamente percebida é a do mestre Alfred Hitchcock que se impõe principalmente na trilha-sonora composta por Alexandre Desplat. O fantasma do título além de revelar o óbvio, alguém que escreve no lugar do outro, também pode ter sentidos mais amplos. O ghost writer, que não tem nome no filme, é um ser anônimo, sem família, sem vida própria. É aquele que está sempre a espreita do outro, sabendo sempre mais do que devia, e que de posse de informações valiosas pode ser sempre uma assombração em volta de seu biografado. Saber demais num universo de grandes interesses é sempre perigoso e numa relação cúmplice na qual verdades e mentiras se debatem, o final, inevitavelmente, não será dos melhores.


domingo, 30 de junho de 2013

Faroeste Caboclo: mais que uma transposição de artes.

            
            Adaptar um romance, uma peça de teatro ou uma música para a linguagem do cinema é sempre uma tarefa difícil. Primeiro porque é preciso lidar com as dificuldades inerentes à própria obra e depois é preciso enfrentar os fãs que geralmente são inflexíveis no que concerne às mudanças feitas no original. O que dizer então de uma adaptação de uma das músicas mais emblemáticas do rock nacional e que foi eternizada pelo grupo Legião Urbana?

      Faroeste Caboclo, a música, sempre teve um viés cinematográfico assim como muitas outras canções da Legião Urbana. Ao ouvi-la, é como se estivéssemos acompanhando um filme que narra a saga de João de Santo Cristo que “deixou para trás todo o marasmo da fazenda” e foi tentar a vida na cidade grande, mas precisamente em Brasília onde “ele ficou bestificado com a cidade”. Lá, ele tenta a vida como carpinteiro “mas o dinheiro não dava para se alimentar”. Então, encontra um parente chamado Pablo, “um peruano que vivia na Bolívia e muitas coisas trazia de lá”. O traficante logo lhe arruma um servicinho e daí em diante João torna-se traficante. É preso “e pro inferno ele foi pela primeira vez” sofrendo “violência e estupro de seu corpo”. Na capital federal conhece Maria Lúcia “uma menina linda” e se apaixona. No entanto, Jeremias “o traficante de renome” decide acabar com João e o embate representado como um faroeste americano é exibido pela mídia “que deu noticia do duelo na tv” e por fim Santo Cristo é santificado pelo povo “porque sabia morrer”. A música fazia críticas sociais e crítica ao governo e mostrava a descida ao inferno do personagem criado por Renato Russo. Escrita em 1979 e lançada em 1987, muitas rádios à época tiveram dificuldade de tocá-la por causa de seu conteúdo polêmico e pela longa duração.

            Faroeste Caboclo, o filme, fez uma conversão não linear e os milhares de fãs podem chiar com esse procedimento não muito fiel. Fabrício Oliveira encarna o João de Santo Cristo. Negro, vindo do sertão onde perdeu a mãe para a seca e o pai foi assassinado por um soldado. Desde cedo, João viveu em um mundo de perdas, dores e sofrimento. Logo no inicio da projeção, a câmera foca nos olhos sofridos do protagonista em close-up na tela. Depois, assistimos a uma cena na qual ele joga um balde num poço para pegar água. Ele puxa a corda e quando tem o recipiente novamente em mãos não há nada. O balde está vazio, seco. A cena é uma excelente metáfora da própria vida daquele homem brutalizado desde criança.

            Uma das grandes modificações feitas pelo roteiro de Victor Atherino e Marcos Bernstein foi em relação ao final da canção. Eles preferiram deixar de lado o espetáculo para dar lugar à tensão trágica. No filme não há registro feito pela televisão durante o duelo do personagem principal e seu grande rival. E isso aconteceu justamente porque Faroeste Caboclo, o longa-metragem, não é a história de um único homem que ganha fama pela sua coragem e sua falta do medo de morrer. Trata-se da história de muitos homens que, tanto quanto João, são tragados pelo sistema, pelas desigualdades sociais e pela desumanidade da violência. A preferência aqui não é morrer como uma celebridade mas como anônimo, assim como todo homem vilipendiado pela vida.

Essas escolhas do roteiro são bastante acertadas e unem-se as atuações visivelmente esforçadas de todo o elenco. Isís Valverde, famosa por suas personagens voluptuosas e exageradas na televisão, encontrou um tom de atuação mais comedido e acertou mais do que errou com sua Maria Lúcia, estudante de arquitetura e filha de um senador de Brasília interpretado por Marcos Paulo em seu último papel antes da morte em 2012. No elenco ainda há as presenças de Flavio Bauraqui como o pai de João e Antônio Calloni caricaturado como um policial corrupto. A direção do estreante René Sampaio é interessante por privilegiar um produto audiovisual mais autoral fugindo da armadilha de ser um videoclipe estendido. O que ficou perceptível durante toda a exibição foi o esforço da produção de fazer algo digno e não apenas mais uma produção para atrair os fãs da Legião Urbana. Decisão que seria mais fácil de ser tomada visando o sucesso do grupo que, depois de décadas, ainda tem muitos fãs e força vital para conquistar as novas gerações. 

A fotografia de Gustavo Hadba é outro elemento bem realizado no filme e que ajuda a contar essa história brutal, verdadeira e cruel de um sujeito que, mesmo tentando seguir por um caminho honesto, acaba se desviando para uma vida de bandido porque simplesmente não consegue sobreviver. Impossível ficar indiferente a todo o sofrimento e violência sofridos pelo herói trágico da película. O incômodo que nós sentimos como espectadores ao vermos a desgraça de Santo Cristo foi muito bem representado numa cena na qual Maria Lúcia vai visitá-lo na cadeia e o encontra surrado. A jovem espanta-se diante da situação, saí calada da delegacia. Na porta de saída, a câmera a filma caminhando para a rua, destorcida e fora de foco sob forte luz do sol como se estivesse se desintegrando, mal conseguimos vê-la. A cena reflete bem o impacto que ela sofrera diante daquilo que acabara de ver. A mensagem é clara: mesmo não sendo a vitima, o mundo nos desintegra o tempo todo.

Faroeste Caboclo não é um filme perfeito. Muitas vezes tem um ritmo irregular. Porém, sem se deixar levar pela necessidade de fazer uma adaptação fiel, acaba por nos mostrar muito mais que uma mera transposição de artes. Mostra-nos um Brasil violento do sertão até às grandes cidades. Uma terra que assim como nos filmes de faroeste a única lei é a da sobrevivência. Não é à toa que o diretor não economiza na violência extremada, nos assassinatos cruéis e nos palavrões. (Isso pode incomodar boa parte da plateia mais conservadora). O clímax, o duelo de João e Jeremias que emula um faroeste, não se esqueceu de utilizar-se de todos os recursos próprios do gênero: os close-ups nos olhos dos oponentes, a caminhada que gera a expectativa do tiro final, a trilha-sonora, a Winchester-22 e o desfecho violento. Ao final, depois de ouvirmos os acordes da música adaptada permeando muitos momentos da produção, o público é presenteado com a música na íntegra que, com seus quase dez minutos, encerra o filme.

terça-feira, 4 de junho de 2013

As séries mais bem escritas de todos os tempos

A associação de roteiristas americanos (Writers Guild of America) elegeu as 100 séries mais bem escritas de todos os tempos. Como em toda lista, ausências são sentidas. No entanto, julgar as séries mais bem escritas é, definitivamente, uma tarefa difícil. Os Estados Unidos vem ao longo de décadas exercitando a escrita de roteiros para seriados e atualmente vive seu auge de talento e criatividade. Não é à toa que muitos críticos especializados andam ovacionando os roteiristas de televisão em detrimento dos roteiristas de cinema alegando haver uma crise de ideias originais na sétima arte enquanto a televisão vive seu momento mais próspero.

De fato, as séries americanas conquistaram seu lugar no mundo e no coração de milhões de espectadores mundo afora. Quem não tem ao menos uma preferida? No Brasil, país essencialmente noveleiro, o formato de seriado vem ganhando nos últimos anos novo fôlego. Muito disso se deve a nova lei que impôs pelo menos 3 horas de programação nacional em horário nobre na tv a cabo. Canais como Multishow e GNT vem produzindo para o horário programas que muitas vezes deixam a desejar mas que têm chamado a atenção do público e da crítica para um filão poderoso junto à audiência. “Sessão de terapia”, dirigida por Selton Mello, mostrou o potencial que nós temos para realizar bons programas episódicos.

O investimento no gênero é algo que a Rede Globo vem fazendo de forma regular há um bocado de anos com destaque para as comédias. É bom lembrar que, apesar da superficialidade da maioria de seus programas, tivemos no mesmo canal programas de qualidade como a série “Mulher” estrelado por Eva Wilma em 1999 e recentemente “A Cura” de João Emanuel Carneiro. Nos dias que correm, há um verdadeiro boom das séries em todo o mundo e muito desse sucesso tem como aporte a internet, arma poderosa para o sucesso ou fracasso de qualquer programa. “Dexter”, “Game of Thrones”, “Walking Dead”, só para ficar com alguns exemplos, têm se transformado em grandes febres mundiais.

Desde muito novo acompanho esse tipo de programa em sequência realizado com dedicação e recorrência pelos roteiristas e diretores americanos e tenho observado como, ao longo do tempo, a técnica foi sendo burilada. É óbvio que não assisti a todas as séries mencionadas na lista e de muitas tenho apenas uma vaga lembrança na memória. Na lista, há alguns seriados que não considero tão bem lapidados no quesito escrita, mas sei que toda lista, por mais imparcial que queira ser, acaba por levar em conta gostos bastante pessoais. Contudo, pensando em texto criativo, narrativa que prenda a atenção e originalidade, que acredito serem alguns dos critérios utilizados para a seleção, eis que listo cinco obras seriadas recentes que considero muito bem escritas:

1-     24 horas
2-     House
3-     À sete palmos
4-     Freeks and Geeks 
5-     Os Simpsons

Listar as séries mais bem escritas antes de mais nada é valorizar o trabalho de quem realmente cria o show, ou seja, o roteirista. Este profissional, por muito tempo relegado a segundo plano, tem recebido cada vez mais atenção por ser ele o responsável pela existência de filmes, séries, novelas e qualquer outra produção que necessite de roteirização. Um filme ou série pode até ter bons atores e uma boa direção, mas sem um bom roteiro dificilmente será um grande programa.

Aqui, a lista das cinco séries selecionadas pela associação de roteiristas e o link para ver a listagem completa.

1- Família Soprano
2- Seinfield
3- Além da imaginação
4- All in the family
5- M.A.S.H


sábado, 11 de maio de 2013

"Amores Imaginários": um exercício visual sobre o olhar do apaixonado.



Até que ponto o amor não seria uma ilusão,  algo inventado pelo homem para ocupar nossas mentes e que no decorrer do tempo foi se entranhando em nossas vidas de forma que mal compreendemos os porquês desse sentimento? Desde o Romantismo, o mundo ocidental foi lançado num emaranhado de situações idílicas e sublimes que nos fez alimentar o desejo de que, em algum momento de nossa existência, amaríamos e seríamos amados. Em tese, essa relação de completude pelo amor estaria relacionada à uma ideia de perfeição. Ao encontrarmos o outro, a tal cara-metade, nos tornaríamos perfeitos, plenamente felizes e realizados. O Romantismo como movimento que dominou as artes no século XIX ficou para trás. No entanto, suas marcas permaneceram indeléveis até hoje. É desse amor romântico desdobrado em uma felicidade pertencente apenas ao plano das idéias, sem relação alguma com a realidade, que  provém os sentimentos mais contraditórios e consternantes. Certa vez, li algo que dizia que a idealização é a irmã siamesa da frustração. Nada mais sábio poderia ser dito sobre o amor romântico.

Depois desse preâmbulo analítico, me atenho ao filme “Amores Imaginários” do jovem cineasta canadense Xavier Dolan. O rapaz de apenas 24 anos é dono de um estilo que vem marcando sua recente filmografia. Ele escreveu seu primeiro roteiro aos 16 anos e aos dezenove filmou seu primeiro trabalho intitulado “Eu matei minha mãe” (recomendadíssimo) laureado com três prêmios do Festival de Cannes. Recentemente, lançou seu terceiro filme chamado “Lawrence Anyways” (Filme que ainda não assisti). Todos os longas-metragens que realizou foram selecionados para festivais e chamou a atenção da critica mundial. Isso só aconteceu porque Dolan é um daqueles diretores que ao modo Tarantino, Almodóvar e Woody Allen faz da tessitura de seus filmes um trabalho bem particular. Dia desses, conversando com uma amiga, ela me perguntou qual dos dois primeiros filmes do Xavier Dolan eu gostava mais. Fiquei num impasse, pois acho os dois filmes muito bons, diferente da crítica especializada que elogiou muito o primeiro filme e dividiu opiniões com o segundo. Eis que vos escrevo sobre a experiência de assistir "Amores Imaginários".

A película tem um roteiro bastante trivial. Trata-se de um triângulo amoroso no qual dois grandes amigos, Marie (Monia Chokri) e Francis (Xavier Dolan) se apaixonam pela mesma pessoa, o jovem Nicolas (Niels Schneider), um rapaz enigmático que não se sabe ao certo sobre sua orientação sexual. Tanto os protagonistas como nós, expectadores, ficamos sem saber se ele corresponde aos interesses da dupla. Também não fica claro se o desejado sabe dos planos dos desejantes e dessa forma estaria jogando com o sentimento alheio a seu bel-prazer. Durante a projeção acompanhamos a jornada dos dois amigos na missão de conquistar a atenção e quem sabe o amor do moço de cabelos loiros encaracolados, que ora parece pender para um lado, ora para o outro, sem nunca deixar clara as suas reais intenções, se é que ele as têm.

A grande sacada desse jovem cineasta/ator/roteirista é justamente tragar o seu expectador para dentro do universo desses amigos enamorados. Por isso, o abuso de cores durante toda a projeção é uma marca constante. Desde as roupas que usam até os cenários tudo vem destacado em cores fortes que dão o tom ora apaixonado, ora dramático que as cenas exigem. A fotografia é belíssima e realça os exageros da busca amorosa. Lembrei-me, com as devidas diferenças, do filme “Moulin Rouge” de Baz Luhrmann que, junto aos seus diretores de fotografia e arte, criou um mundo de cores desmedidas para falar do amor romântico. O Moulin Rouge é todo demasiadamente excessivo. A estilização de “Amores Imaginários” é um trabalho semelhante. O roteiro é essencialmente visual, ou seja, a imagem tem mais poder que a palavra. A narrativa trata do mundo de fantasias no qual os apaixonados chafurdam a alma sem pensar em conseqüências. Todo mundo que já se apaixonou alguma vez na vida sabe do que estou falando aqui. Para um apaixonado, o mundo é outro. Tudo ganha um contorno diferente. Os cinco sentidos ficam apurados de um jeito bastante peculiar. O diretor aproveita-se dessas sensações confusas para nos entregar um filme no qual gestos, silêncios, respirações e intimidades dizem muito sobre nós mesmos e sobre o amor. É nesse estranho mundo, vivido por aqueles que se apaixonam perdidamente, que Xavier Dolan está dando enfoque. Daí, esse universo criado para o longa-metragem ser artificial, idílico, onírico, teatral e colorido. E o comportamento dos dois amigos que brigam pela atenção de Nicolas ser individualista, egoísta, histérico e até meio bobo. 

Boa parte da crítica especializada viu nessa representação dos personagens algo vazio. Para esses críticos, o diretor fez um retrato estúpido da juventude, um trabalho empobrecido de criatividade que se apoiou apenas em referências do cinema para criar um filme estiloso. Outros (incluo-me entre esses), viram justamente o contrário. As referências estão inevitavelmente lá e em boa parte é resultado da mente cinéfila de Xavier Dolan. Cenas que lembram “Jules e Jim” (clássico de Truffaut) e “Os sonhadores” de Bernardo Bertolucci, citações à “Bonequinha de luxo”, referência ao estilo poético de fazer cinema de Wong Kar-Wai, tudo isso permeia a obra. Mas não vejo nisso um sinal de empobrecimento e sim de conhecimento. A construção de um estilo por meio de referências é algo bastante recorrente em jovens cineastas no mundo contemporâneo.

A grande temática do filme é a idealização do amor e por isso a câmera do realizador tenta representar a todo o momento o olhar do apaixonado. Por isso, as disputas da dupla beiram às brigas infantis algo que fica evidente na banal cena em que se engalfinham no campo durante uma viagem que fazem juntos. A obsessão leva o entusiasta do amor a ver a pessoa desejada por um viés de encantamento e perfeição. Daí a comparação feita com a estátua de Davi durante uma sequência do filme na qual se contrapõe a imagem de Nicolas com o reflexo da famosa obra de Michelangelo. O amor tem dessas coisas, trata-se de um arrebatamento inexplicável. Decorrente desses excessos do sentimentalismo amoroso, o exagero torna-se  uma das marcas do longa-metragem assim como é do amor platônico. Assim temos, durante toda a projeção do filme, muita câmera lenta, músicas tocando a todo o momento, abuso de cores, caras e bocas em excesso, cenas repetitivas. Tudo isso pode ser interpretado como algo que colabore para o mau andamento do filme, mas para uma história que aborda a dimensão excessiva do mundo dos apaixonados, a meu ver, tudo se encaixou de forma bastante competente.

Além da história desse triângulo amoroso imaginário que norteia o filme, o enredo é entremeado de momentos em que Marie e Francis se encontram com estranhos. As cenas são apresentadas em cores fortes que tomam toda a tela (vermelho, amarelo, azul e verde) e ao fundo ouvimos a música clássica de Bach. O contraste entre a música pungente e a coloração intensa concede à cena um tom dramático e melancólico resultante da frustração dos protagonistas que procuram no sexo sem compromisso a válvula de escape para o sentimento doloroso da paixão não correspondida.

“Amores Imaginários” tem um viés de comédia romântica e pode ser visto como uma fábula sobre o amor que alimentamos por alguém e que muitas vezes está longe de ser recíproco. Muitas vezes nos apaixonamos por uma ideia de amor e não necessariamente pela pessoa objeto dessa adoração. É aí que reside o perigo das relações amorosas. O filme é uma experiência visual cinematográfica, que pode ser boa para alguns ou entediante para outras. Tudo vai depender da forma como cada um captará as mensagens que ali estão presentes. A produção ainda vem permeada por declarações de estranhos que em tom documental falam sobre suas decepções amorosas. Nessas cenas que interrompem a narrativa, frustração, dor, decepção, humilhação e vergonha são sentimentos que tomam conta dos ex-apaixonados, assim como será inevitavelmente para os nossos dois protagonistas que numa bela cena final dividem o mesmo guarda-chuvas.

Amores Imaginários
(Les Amours Imaginaires - Canadá / 2010)
Direção: Xavier Dolan
Roteiro: Xavier Dolan
Elenco: Xavier Dolan, Monia Chokri, Niels Schneider e Anne Dorval.
Duração: 95 minutos




sexta-feira, 3 de maio de 2013

"Depois de maio": cinema, música, artes plásticas, drogas, sexo e...política.


Um professor de literatura do ensino médio lê um trecho de um  livro de Pascal que diz: “Entre o céu e o inferno só existe vida, que é a coisa mais frágil do mundo”. A cena se encerra e somos levados a uma outra na qual presenciamos um grupo de jovens anarquistas que movidos por um intenso desejo de liberdade e revolução vão às ruas brigar por seus ideais. A violência toma conta da tela em impressionante sequência. A polícia opressora manifesta-se como bem conhecemos: tiros, bombas de gás lacrimogênio, chutes e espancamentos. A barbárie está instalada e o que é humano, racional e sensível vai por água abaixo em segundos. Ali, não há vida, não há humanidade, não há respeito. Assim, inicia-se o filme “Depois de maio” do diretor francês Olivier Assayas. Uma produção que lança um olhar sobre a juventude revolucionária depois de maio de 68, um dos momentos mais importantes do movimento estudantil francês.

O longa-metragem acompanha o jovem idealista e politicamente engajado, Gilles. Como todo jovem de sua idade (e que viveu na França entre os anos 70 e 60) ele se preocupa com questões relacionadas à coletividade ao mesmo tempo em que precisa definir os rumos de sua própria vida. Não diferente dos amigos passa por diversas descobertas concernentes à idade, o que inclui sexo, drogas e rock n´roll. O olhar do protagonista é um olhar perdido e ao mesmo tempo curioso em relação à vida. Ele tem o desejo ardente de mudar o mundo e por isso não titubeia na missão de enfrentar o repressor sistema mesmo que para isso arrisque várias vezes a própria vida. Mas no íntimo, é um jovem como outro qualquer com vontades próprias e sonhos que são somente dele. Seus desejos pessoais se refletem em seu talento para a pintura, o objetivo de ser cineasta e o gosto pela música. Tudo misturado ao viés político que dominava os tempos de outrora. 

O grande dilema do filme é exatamente esse: coletividade versus individualidade. Como equilibrar as duas coisas? Nos dias atuais, é fácil observar o quanto a questão da coletividade tem perdido espaço para os interesses particulares. Muito disso, certamente, é fruto de um capitalismo selvagem que cada vez mais deteriora as relações humanas. Mas, como mostra o filme, houve um tempo em que as pessoas, principalmente os jovens, eram engajadíssimos. Eles acreditavam e lutavam por um mundo melhor. No entanto, esse projeto revelou-se uma utopia e a frustração veio logo a reboque. Talvez isso explique a geração pós-moderna apática que temos hoje. Somos frutos de uma geração frustrada e isso acarreta conseqüências complexas e difíceis de entender numa simples análise.

Um dos pontos fortes da produção é que em momento algum ela é saudosista. Não se pretende imaginar aquele momento como um tempo melhor do que o atual. Aquele pensamento idealista de que no passado tudo era perfeito apesar dos problemas vividos. Numa passagem do filme, o jovem protagonista lê uma poesia para a namorada que diz: “Eu odeio os velhos poetas murmurando sua juventude passada”. Esse é exatamente o espírito desse filme. Não há espaço para lamentos. O intuito é lançar um olhar sobre esse passado, acompanhando, por meios de seus personagens, um período no qual se acreditava realmente em mudanças mesmo que no fundo esses mesmos jovens engajados não soubessem ao certo quem de fato era o inimigo. Lutava-se contra o sistema, mas não se tinha um foco específico, um alvo. Tudo que era contrário aos ideais revolucionários era o inimigo. Pregava-se a liberdade, mas a rebeldia se atestava em subversão, abuso de drogas pesadas, vandalismo. Onde se pretendia chegar? Qual o objetivo claro dessas atitudes? Quantas vidas custam o preço de ser livre? Por que esse espírito libertador enfraqueceu-se com o tempo? Até que ponto a opção pela violência é o caminho para o tal "mundo melhor"? E até que ponto esse fervor jovem não era produto de uma ingenuidade? São perguntas que ficam propositadamente no ar.

Os elementos fílmicos só colaboram para o bom andamento da história. Temos aqui, uma fotografia sóbria, de cores frias, meio foscas, trazendo um ar constante de melancolia. Um trabalho excelente de Eric Gautier, que fez semelhante exercício fotográfico no filme “Na natureza selvagem” no qual também imprimiu a mesma melancolia através da imagem. A trilha-sonora é composta de músicas como “Why are we sleeping?” do Soft Machine,  “Know” de Nick Drake, “Decadence” de Kevin Ayers entre outros títulos bem sugestivos para o momento histórico vivido. A construção histórica, os cenários e o figurino também são um deleite a parte. Tudo executado milimetricamente com charme, elegância e uma certa sensualidade.

No entanto, na minha opinião, a grande sacada do cineasta foi a relação feita entre o roteiro do filme e o próprio cinema como arte coletiva. Em diversos momentos, o filme se detém na arte cinematográfica como apoio da história que se deseja contar. Por exemplo, o protagonista da história tem como objetivo de vida fazer cinema, uma arte conhecidamente construtora de sonhos. Até que ponto o diretor do filme não estaria relacionando o mundo desejado pelos jovens daquela época a um sonho quase cinematográfico? O embate de um cinema feito para o entretenimento e um cinema feito para a revolução revela-se em uma cena na Itália na qual os revolucionários questionam a validade do cinema como arma utilizada a favor do movimento e não a favor da burguesia. A construção narrativa tem uma abordagem genial. No começo, o longa-metragem é mais movimentado com a seqüência do choque da polícia com os manifestantes e em seguida com o momento eletrizante dos jovens pichando e colando cartazes nas paredes de uma universidade durante uma madrugada, o que acaba gerando uma perseguição e um grave acidente. No decorrer da exibição, o ritmo torna-se mais lento. Acompanhamos os personagens em suas idas e vindas. Em suas buscas pela continuidade do movimento idealista e a dedicação às suas necessidades de âmbito pessoal, que muitas vezes não estavam ligadas aos ideais defendidos. Assim, pela própria estrutura do roteiro, o filme revela essa frustração dos sonhos que vai dominando pouco a pouco o ideal dessa juventude. O que era intenso, vibrante e elétrico no começo vai se tornando apático, lento e desacreditado no final.

As interpretações ao filme de Olivier Assayas podem ser muitas e uma boa obra é sempre assim, vasta de possibilidades. Num exercício interpretativo, é possível observar o papel entusiasmático da juventude como motor propulsor de mudanças. Não é à toa que as gerações mais velhas, a partir de determinada idade, passam a responsabilidade de melhorias do mundo para a geração vindoura. Até que ponto podemos lançar nas mãos da juventude a responsabilidade de transformação do mundo? O poder da juventude é contagiante, corajoso e urgente, mas bastante efêmero. Essa é talvez a faceta mais perigosa do ser jovem, sintetizada numa fala do protagonista que com certo ar de tristeza profere: “Tenho medo que minha juventude acabe”.

Assayas fez um filme em que misturou um pouco de tudo. Cinema, música, artes plásticas, política, drogas...Tudo poderia se tornar confuso, mas ao contrário, revela-se solo fértil para uma obra criativa e imperdível. O bom filme, para mim, deveria ser sempre assim: político sem ser partidário, religioso sem ser fundamentalista, gay sem ser panfletário, histórico sem ser didático. Convidaria toda a juventude contemporânea a assistir esse trabalho e assim quem sabe observar, de um modo geral, que a principal revolução que podemos fazer é primeiramente a revolução interna. No equilíbrio da transformação interna e posteriormente externa quiçá não encontraremos a paz tão almejada pela humanidade.

Depois de maio (Après Mai)
Direção: Olivier Assayas
Elenco: Clément Métayer, Lola Créton, Carole Combes, Felix Armand e India Menuez.
Roteiro: Olivier Assayas
França, 2013
Duração: 122 min




Gostou? Veja também: "Os Sonhadores" de Bernardo Bertolucci.