quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Missão Impossível: Nação Secreta - A ilusão do cinema


A capacidade que Hollywood tem de se reinventar, contando sempre a mesma história, é, de certa forma, admirável. Missão Impossível: Nação Secreta nos dá uma boa ideia deste poder de reinvenção, ou, melhor dizendo, “recontação”. Nesta quinta parte da série protagonizada por Tom Cruise, tudo o que foi visto nos filmes anteriores retorna. Para requentar a fórmula de sucesso: cenas mais exageradas e mirabolantes, situações mais conflituosas, acréscimo de locações paradisíacas e exóticas, e novos personagens coadjuvantes passam a fazer parte do arcabouço do novo longa-metragem do agente Ethan Hunt, que há 19 anos se mantém no imaginário cinéfilo. A direção é sempre modificada para que seja conferida uma marca autoral nos projetos, e é nesse ponto que os filmes da série ganham destaque. No primeiro, Bryan De Palma imprimiu charme e elegância à condução da história, baseada num célebre seriado de televisão dos anos 60. No segundo, o exagero descerebrado de John Woo fez da produção um engodo, que a marcou como a pior sequência. A inteligência e criatividade de J.J.Abrams foi a bola da vez na subestimada terceira aventura. No quarto trabalho, surpreendentemente, a trama se elevou em qualidade com a direção impecável de Brad Bird, um cineasta proveniente dos filmes de animação. Dessa vez, quem assume o leme é Christopher McQuarrie, que escreveu o roteiro do excelente Os suspeitos (The Usual Suspects), em 1995, e que, agora, realiza seu quarto filme roteirizado para Tom Cruise exercitar seus dotes de herói salvador do mundo. Talvez, por McQuarrie ser roteirista, acabamos acompanhando uma narrativa que tem grande importância para o decorrer do que assistimos, não sendo apenas um mero fiapo de ideia para engambelar o público.

Sobre a história, não há muito o que falar se você viu, ao menos, um dos filmes já produzidos até agora. Resumidamente, temos o agente secreto Ethan Hunt que trabalha para a IMF (Impossible Mission Force). Ele vê sua agência ser dissolvida (mais uma vez) e, para tentar salvar o mundo (mais uma vez) de um psicopata-terrorista-maluco (mais uma vez), que lidera uma agência extraoficial do governo chamada Sindicato, passa a agir praticamente sozinho, contando apenas com seus parceiros mais fiéis (mais uma vez). Entre um diálogo e outro, muita correria, suspense, pirotecnia, lutas e perseguição automobilística, bem ao gosto do freguês. Para os fãs do gênero, M.I é um prato cheio, pois, diferente de outros produtos hollywoodianos (Velozes e furiosos e Transformers), o filme investe na inteligência para nos trazer algo a mais, tornando a nossa experiência cinematográfica mais virtuosa e não apenas um enfadonho jogo de efeitos digitais desnecessários. Quem disse que diversão tem que ser algo desmiolado? E quando falo de inteligência aqui, não estou focando em filosofias e teorias herméticas, mas sim em criatividade na condução dos eventos de um roteiro. A confirmação do que aqui vos escrevo está numa bem construída cena dentro do imponente Viena State Opera, localizado na Áustria, na qual me detenho um pouco mais detalhadamente.

Aos olhos menos atentos, tudo pode parecer apenas uma bela locação para a criação de um momento eletrizante, no entanto, vai muito além disso. Observe: vários personagens entram em cena, cada um motivado por um interesse, sendo o principal deles, assassinar o chanceler do país. Todo o desdobramento acontece, na maior parte do tempo, na coxia do teatro - por trás das cortinas - enquanto uma ópera é executada para uma plateia lotada de figuras ilustres. A situação reflete muito bem a condição do agente Hunt, que age na clandestinidade, como se fosse um fantasma. A opera que está sendo executada no palco é a italiana Turandot de Puccini. Basta uma rápida pesquisa para conhecermos um pouquinho da composição e entendermos que ela não está ali à toa. Turandot, em linhas gerais, conta a história de uma princesa que, obrigada a casar, propõe três enigmas para os seus pretendentes decifrarem, caso contrário, perderão a cabeça. Ela faz isso com requintes de crueldade. Mas, um dos candidatos a mão da moça vence os enigmas, simplesmente, por ele ser o único que se identifica com o lado sádico da princesa. Entre Ethan Hunt e Isla Faunt - personagem feminina de grande importância para a trama e interpretada de forma competente pela atriz sueca Rebecca Ferguson - há uma relação dúbia de natureza bastante sádica. Ora eles estão jogando do mesmo lado, ora rivalizando. Ela é sedutora e, apesar de se revelar uma ameaça em potencial, Hunt, muitas vezes, se deixa seduzir, colocando a própria vida (ou a cabeça) em risco. O enigma no filme, às avessas, ocorre quando Hunt precisa saber quem de fato é Isla Faunt e a identificação ocorre pelo gosto que ambos tem pelo perigo.

Há mais elementos interessantes na cena aqui analisada. As armas, por exemplo, chamam a atenção por estarem disfarçadas de instrumentos musicais. Precisão no manuseio de ferramentas de trabalho é algo necessário tanto para o músico (Quem assistiu Whiplash, sabe do que estou falando) quanto para o atirador que não pode errar o alvo. A associação do mundo da arte com o mundo obscuro dos agentes secretos, refletido nessa ideia da exatidão, ganha destaque no momento em que a partitura musical surge com um ponto marcado em vermelho sobre uma nota, que será o exato momento em que a mulher terá que atirar no chanceler. Interessante observar também que, apesar de estarmos falando de precisão, tudo o que acontece nos bastidores tem um forte viés de farsa, um gênero tipicamente teatral. O arremate da longa cena, sem querer entregar tudo, não poderia fugir à ideia de uma encenação. Completando tudo isso, ainda ouvimos a trilha-sonora eletrizante de Joe Kraemer que é executada durante todo o filme, como se um maestro estivesse conduzindo o enredo de uma grande ópera, tal qual é a que está sendo executada no palco da ficção fílmica. O clássico tema instrumental de Missão Impossível é usado de forma genial, misturando-se a outras sonoridades até que, nos momentos certos, de mais intensidade, a música-tema explode com os seus famosos acordes já tão conhecidos.

Missão Impossível é pura diversão, e não espere nada além disso. No entanto, eu também não esperava e acabei me surpreendendo. Surpreender-se ou não, depende da forma como cada um assistirá ao filme. Como cinéfilo, é um deleite tentar descobrir as referências, os jogos propostos pelos diretores, as entrelinhas do roteiro e as mensagens subliminares utilizadas para a criação dos universos artísticos. Indo além da superfície de um roteiro de filme de ação, o que está incutido neste quinto episódio, é a ilusão que o cinema nos proporciona e Nação Secreta brinca com isso. O poder de iludir plateias que os cineastas possuem hoje em dia, é o mesmo que, outrora, os mágicos possuíam. A diferença é que enquanto a mágica clássica usava uma cartola e um coelho, os mágicos-cineastas contemporâneos usam computadores potentes e muita criatividade. Acreditamos no inverossímil porque diversos elementos (montagem, fotografia, narrativa, elenco, etc), nos conduzem a uma imersão num mundo à parte da realidade. Por isso, os exageros são perdoados quando assistimos a um filme como este, afinal, estamos sendo seduzidos por um encantamento toda vez que estamos diante de uma tela. Se isso não acontece é porque estamos diante de uma obra muito, muito, muito ruim. A piada com a máscara humana, que os agentes tanto usaram nos filmes anteriores - um recurso exagerado bastante gasto na franquia - surge agora para que sejamos, de fato, enganados. Assim, o artifício acaba sendo utilizado mais adiante de forma surpreendente - e mais inteligente - num momento pontual da história. A cena da caixa de vidro surge, bem ao final, como metáfora dessa ideia de iludir plateias para divertir, da mesma forma que faria um habilidoso ilusionista.

O grande "mágico" de Missão Impossível, entretanto, atende pelo nome de Tom Cruise que, aos 53 anos de idade, demonstra uma vitalidade de garoto. Porém, sua faceta mais elogiosa, aqui, é a de produtor. Por trás de todas as cenas bem filmadas, pensadas e urdidas está a mente esperta do ator/produtor, que soube escolher com precisão (a repetição da palavra é proposital) um diretor talentoso e bons atores coadjuvantes para manter o nível de seu show. Ele também não mediu esforços para entregar um produto de fôlego para as plateias mais jovens - afeitas ao escapismo - mas também ao público mais exigente e adulto, que quer se divertir sem ser feito de idiota. Missão Impossível é um acerto do cinema comercial num ano que teve Mad Max – Estrada da Fúria como melhor filme de entretenimento vindo das terras do tio Sam, segundo a minha opinião, é claro.


segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Uma nova amiga: a vida que vivemos e a vida que escondemos dos outros


A etimologia do vocábulo travesti vem do francês e significa disfarçado. A palavra está relacionada ao ato de uma pessoa se vestir com roupas do sexo oposto. A questão do travestismo, no entanto, pode ser levada a outras proposições se pensarmos na atitude de se vestir como um exercício do disfarce. Homens e mulheres dissimulam-se, todos os dias, no intuito de passar uma ideia daquilo que, aparentemente, são ou dizem ser. Nas roupas que se veste, sucesso, status, beleza, sedução e poder são alguns códigos inseridos. Estas informações são importantes quando nos deparamos com a projeção de um filme como Uma nova amiga que está em cartaz em pouquíssimas salas de cinema. 

O longa-metragem é baseado num conto da inglesa Ruth Rendell - a mesma que escreveu Carne Trêmula, adaptado para o cinema por Almodóvar - e conta a história de Claire, uma mulher que perde de forma extemporânea a amiga de infância, Laura. Abalada, promete ajudar, por toda a sua vida, David - o marido da amiga morta - e o filho recém-nascido do casal. A moça é bem-sucedida financeiramente e tem um amoroso casamento com Gilles, mas tudo começa a ruir quando ela descobre, acidentalmente, que David se veste de mulher dentro de casa. O argumento inicial usado para se defender, é de que ele faz isso para que o bebê não sinta falta da mãe. Mas, com o decorrer dos acontecimentos percebemos que há questões muito mais profundas relacionadas ao comportamento do protagonista.

François Ozon - um importante cineasta francês que aborda temáticas fortes e transgressoras e, geralmente, tende a criticar a superficialidade do comportamento humano, expondo seus fetiches, anseios, desejos, medos e hipocrisias - construiu seu 16° longa-metragem de forma tão sutil que é quase impossível não se envolver com tudo o que se assiste. O que vemos na tela, aos poucos, vai nos seduzindo de forma que não só adentramos às vestes dos personagens, mas também nos embrenhamos em seus domínios psicológicos. A questão da identidade de gênero é a tônica da obra, mas passa longe da categorização inevitável e limitante de "filme gay". O que, de fato, importa é o desnudamento do comportamento conservador que permeia toda a sociedade ocidental, muitas vezes, gerando a necessidade desesperada de dissimularmos aquilo que somos. E a forma como nos vestimos tem muito a ver com essas máscaras sociais que utilizamos para sobreviver no mundo. Não é à toa que uma das cenas se passe dentro de um shopping center, local no qual a maioria das pessoas alimentam seus ideários de “travestismos” num sentido mais amplo que essa palavra pode ter. Nesse enredo, as categorias de homem e mulher se embaralham nos revelando facetas mais complexas do ser humano, fugindo, felizmente, de visões preconceituosas socialmente defendidas e impostas.

Seguindo a cartilha de cineastas como Pedro Almodóvar e Alfred Hitchcock (o momento da revelação do travestismo me lembrou bastante da famosa cena final de Psicose, quando a irmã de Marion Crane descobre Norman Bates vestido como a mãe), Ozon - com linguagem própria - adentra à dualidade existente em nossas vidas: a vida a qual vivemos socialmente e a vida que escondemos dos outros. O embate entre conservadorismo e transgressão segura a trama até o final sem nunca deixar de ser interessante. Quando Claire descobre que David se traveste, ela profere: “Você é um pervertido”. Em outra cena, quando precisa sustentar uma mentira, David diz “Seria mais sincero se eu fosse de Virgínia”. São pequenas falas assim que dão conta da preferência que a maioria dos homens tem pela mentira descabida em detrimento da compreensão da complexidade do comportamento humano. O que delineia toda a trama é o fato de que aquilo que chamamos de perversão ou bizarrice, muitas vezes, tem a ver com uma visão de mundo bastante restrita e Ozon conduz tudo isso muito bem. Tanto a direção como o roteiro são excelentes e encontram nas atuações impecáveis de Anais Desmoustier e Romain Duris a confirmação de um excepcional trabalho cinematográfico. Ela, interpreta Claire de forma meio perdida e insegura em suas próprias emoções, desejos e convicções. Ele, confere fragilidade, sensibilidade e vitalidade ao seu David/Virgínia. Ainda há uma mescla de suspense, comédia e drama realizada de forma bastante coesa, sem nunca tender mais a um ou a outro gênero.

A cena que abre o filme é contundente na medida em que insere a plateia no universo inquietante o qual o diretor propõe nos apresentar. A cena mostra David vestindo e maquiando a esposa para o enterro, ao mesmo tempo a marcha nupcial toca como trilha-sonora. Há, nessa rápida introdução, elementos importantes para compreendermos e refletirmos sobre o que assistiremos. Pensando, além da visão rasteira defendida comumente sobre o casamento heterossexual, podemos ver a união matrimonial, tão celebrada no mundo, não apenas como um viver a dois, mas como uma intersecção de um universo masculino com um universo feminino no qual ambos os elementos distintos de cada grupo, muitas vezes, se confundem de forma inconsciente. Quem nunca escutou o comentário que diz que casais que convivem longos anos juntos tornam-se muito semelhantes um ao outro, inclusive no jeito de falar. Feminino e masculino, inevitavelmente, se confundem. Quando David perde Laura, não está perdendo apenas um corpo, ele está perdendo também algo do seu lado feminino, que ele acaba canalizando para seu comportamento ao se vestir de mulher. François Ozon problematiza vida e morte, começo e fim, junção e cisão, descoberta e repressão, e eleva tudo isso a patamares psicanalíticos com graça, intensidade e delicadeza, nunca deixando resvalar para o senso-comum.

Uma nova amiga, muito mais que se debruçar sobre a temática que abarca, fala do ato de se vestir como um mascaramento social originador de preconceitos e hipocrisias. E, encerrando o que aqui escrevo, recorro a uma frase cunhada pelo cineasta Pedro Almodóvar, já citado nessa resenha, que diz: “Os homens mentem, as mulheres dissimulam”. E nesse palco que é a vida somos todos atores, sejamos homens, mulheres, travestis, transexuais ou qualquer outra nomenclatura social que nos seja incutida. Certamente, um dos melhores filmes do ano.