segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Uma nova amiga: a vida que vivemos e a vida que escondemos dos outros


A etimologia do vocábulo travesti vem do francês e significa disfarçado. A palavra está relacionada ao ato de uma pessoa se vestir com roupas do sexo oposto. A questão do travestismo, no entanto, pode ser levada a outras proposições se pensarmos na atitude de se vestir como um exercício do disfarce. Homens e mulheres dissimulam-se, todos os dias, no intuito de passar uma ideia daquilo que, aparentemente, são ou dizem ser. Nas roupas que se veste, sucesso, status, beleza, sedução e poder são alguns códigos inseridos. Estas informações são importantes quando nos deparamos com a projeção de um filme como Uma nova amiga que está em cartaz em pouquíssimas salas de cinema. 

O longa-metragem é baseado num conto da inglesa Ruth Rendell - a mesma que escreveu Carne Trêmula, adaptado para o cinema por Almodóvar - e conta a história de Claire, uma mulher que perde de forma extemporânea a amiga de infância, Laura. Abalada, promete ajudar, por toda a sua vida, David - o marido da amiga morta - e o filho recém-nascido do casal. A moça é bem-sucedida financeiramente e tem um amoroso casamento com Gilles, mas tudo começa a ruir quando ela descobre, acidentalmente, que David se veste de mulher dentro de casa. O argumento inicial usado para se defender, é de que ele faz isso para que o bebê não sinta falta da mãe. Mas, com o decorrer dos acontecimentos percebemos que há questões muito mais profundas relacionadas ao comportamento do protagonista.

François Ozon - um importante cineasta francês que aborda temáticas fortes e transgressoras e, geralmente, tende a criticar a superficialidade do comportamento humano, expondo seus fetiches, anseios, desejos, medos e hipocrisias - construiu seu 16° longa-metragem de forma tão sutil que é quase impossível não se envolver com tudo o que se assiste. O que vemos na tela, aos poucos, vai nos seduzindo de forma que não só adentramos às vestes dos personagens, mas também nos embrenhamos em seus domínios psicológicos. A questão da identidade de gênero é a tônica da obra, mas passa longe da categorização inevitável e limitante de "filme gay". O que, de fato, importa é o desnudamento do comportamento conservador que permeia toda a sociedade ocidental, muitas vezes, gerando a necessidade desesperada de dissimularmos aquilo que somos. E a forma como nos vestimos tem muito a ver com essas máscaras sociais que utilizamos para sobreviver no mundo. Não é à toa que uma das cenas se passe dentro de um shopping center, local no qual a maioria das pessoas alimentam seus ideários de “travestismos” num sentido mais amplo que essa palavra pode ter. Nesse enredo, as categorias de homem e mulher se embaralham nos revelando facetas mais complexas do ser humano, fugindo, felizmente, de visões preconceituosas socialmente defendidas e impostas.

Seguindo a cartilha de cineastas como Pedro Almodóvar e Alfred Hitchcock (o momento da revelação do travestismo me lembrou bastante da famosa cena final de Psicose, quando a irmã de Marion Crane descobre Norman Bates vestido como a mãe), Ozon - com linguagem própria - adentra à dualidade existente em nossas vidas: a vida a qual vivemos socialmente e a vida que escondemos dos outros. O embate entre conservadorismo e transgressão segura a trama até o final sem nunca deixar de ser interessante. Quando Claire descobre que David se traveste, ela profere: “Você é um pervertido”. Em outra cena, quando precisa sustentar uma mentira, David diz “Seria mais sincero se eu fosse de Virgínia”. São pequenas falas assim que dão conta da preferência que a maioria dos homens tem pela mentira descabida em detrimento da compreensão da complexidade do comportamento humano. O que delineia toda a trama é o fato de que aquilo que chamamos de perversão ou bizarrice, muitas vezes, tem a ver com uma visão de mundo bastante restrita e Ozon conduz tudo isso muito bem. Tanto a direção como o roteiro são excelentes e encontram nas atuações impecáveis de Anais Desmoustier e Romain Duris a confirmação de um excepcional trabalho cinematográfico. Ela, interpreta Claire de forma meio perdida e insegura em suas próprias emoções, desejos e convicções. Ele, confere fragilidade, sensibilidade e vitalidade ao seu David/Virgínia. Ainda há uma mescla de suspense, comédia e drama realizada de forma bastante coesa, sem nunca tender mais a um ou a outro gênero.

A cena que abre o filme é contundente na medida em que insere a plateia no universo inquietante o qual o diretor propõe nos apresentar. A cena mostra David vestindo e maquiando a esposa para o enterro, ao mesmo tempo a marcha nupcial toca como trilha-sonora. Há, nessa rápida introdução, elementos importantes para compreendermos e refletirmos sobre o que assistiremos. Pensando, além da visão rasteira defendida comumente sobre o casamento heterossexual, podemos ver a união matrimonial, tão celebrada no mundo, não apenas como um viver a dois, mas como uma intersecção de um universo masculino com um universo feminino no qual ambos os elementos distintos de cada grupo, muitas vezes, se confundem de forma inconsciente. Quem nunca escutou o comentário que diz que casais que convivem longos anos juntos tornam-se muito semelhantes um ao outro, inclusive no jeito de falar. Feminino e masculino, inevitavelmente, se confundem. Quando David perde Laura, não está perdendo apenas um corpo, ele está perdendo também algo do seu lado feminino, que ele acaba canalizando para seu comportamento ao se vestir de mulher. François Ozon problematiza vida e morte, começo e fim, junção e cisão, descoberta e repressão, e eleva tudo isso a patamares psicanalíticos com graça, intensidade e delicadeza, nunca deixando resvalar para o senso-comum.

Uma nova amiga, muito mais que se debruçar sobre a temática que abarca, fala do ato de se vestir como um mascaramento social originador de preconceitos e hipocrisias. E, encerrando o que aqui escrevo, recorro a uma frase cunhada pelo cineasta Pedro Almodóvar, já citado nessa resenha, que diz: “Os homens mentem, as mulheres dissimulam”. E nesse palco que é a vida somos todos atores, sejamos homens, mulheres, travestis, transexuais ou qualquer outra nomenclatura social que nos seja incutida. Certamente, um dos melhores filmes do ano.


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