sábado, 15 de julho de 2017

Neve Negra: os esconderijos da alma humana


O cinema argentino contemporâneo é conhecido mundialmente por sua qualidade. Filme após filme, nossos hermanos vêm surpreendendo o público. Neve Negra (coprodução com a Espanha) não é diferente. O segundo longa-metragem de Martin Hodara é um suspense dramático que se transformou em um grande sucesso de bilheteria em seu país de origem. Para as plateias que buscam uma boa trama de mistério, Hodara recorre a todos os elementos do gênero, no entanto, subverte cada recurso. Em nome de um trabalho enxuto e autoral, para além da provocação da expectativa do público de forma sádica, como tão bem fazem os norte-americanos, observamos uma trama sutil cuja intenção é mergulhar e desvendar os esconderijos da alma humana. Nesse sentido, há uma cena emblemática quando a câmera acompanha um automóvel por uma longa estrada sinuosa; cortada em meio a neve branca, abre-se como ferida. É simples, eficaz e belíssima por se converter na ideia desse labirinto existente dentro de cada um de nós, dos percursos inimagináveis que uma pessoa pode traçar em uma vida. Aliás, a câmera do diretor percorre a tela com elegância, nos fazendo acompanhar pouco a pouco a vida de dois irmãos rivais, marcados por uma tragédia do passado: a perda do mais novo em um acidente com uma arma de fogo. Sem preâmbulos, essa informação surge no início da projeção. Um garoto caminha na neve. Percebemos que ele está caçando, pelos trajes e pelo rifle na mão. Alguém vem em seu encalço. Uma voz o chama. Vem o corte brusco, e o título toma a tela por inteiro.

No decorrer da trama, acompanhamos as memórias dessa família, em boa parte, por meio das lembranças de Marcos, interpretado pelo ótimo Leonardo Sbaraglia. Muitas vezes, essas rememorações aparecem como fantasmas que se materializam da consciência dos personagem para a vida real. O protagonista quer enterrar as cinzas do pai recém-falecido no mesmo local do irmão morto, ao mesmo tempo em que precisa negociar questões relacionadas à herança com o introspectivo irmão mais velho Salvador, papel menor de Ricardo Darín, mas de grande importância para a história. No entanto, é em Laura (Laia Costa), a esposa grávida de Marcos, que o roteiro acaba por se alicerçar. Como um quebra-cabeça, mentiras e verdades vão vindo à tona, modificando todos e tudo ao redor. A montagem de Neve Negra é feita de forma eficiente, nunca nos deixando perdidos, e se isso acontece é por decisão arbitrária do diretor. Há também, inicialmente, um ritmo propositalmente lento, cuja função é fazer uma imersão sem pressa e gerar um clima propício à narrativa. Há algo que se arrasta naquele mundo permeado de sentimentos amargurados e culpados. A fotografia se aproveita bem dos claros e escuros, que conferem um ar ainda mais soturno ao enredo. No interior das casas, a claustrofobia. Do lado de fora, a melancolia da neve que castiga a pele sem dó. É essencial acompanhar a história numa boa sala de cinema, pois é no som que o longa-metragem tem a sua maior força ao configurar-se numa sagaz construção sonora que permeia toda a narrativa. Numa cena específica, por exemplo, Marcos está sonolento diante de uma lareira cuja madeira crepita no fogo ardente, paulatinamente, os estalidos vão tomando conta do ambiente e, de repente, se transforma no som de um cinto que surra um garoto. O que vai sendo exposto ali é brutal e doloroso.

Não há nada muito inovador em Neve Negra. Seu charme reside na forma nada trivial em que tudo é conduzido e na presença firme dos atores que compõem o elenco. O que vai sendo desenhado a cada minuto na projeção, está relacionado com o lado mais perverso do ser humano, aquilo que gera verdadeiros monstros socializados sob a fachada de bons moços. Não é à toa que, vez ou outra, surjam lobos - imagem da astúcia - passeando pelos bosques gelados, observando e sendo observados por nós, como se fôssemos ora presas, ora caçadores. A neve, por sinal, também é um personagem, tornando-se metáfora incisiva da natureza humana. Impulsionado por desejos obscuros e congelado em seus interesses particulares, o homem, muitas vezes, é incapaz de atos generosos, compreensivos e humanos. O olhar de um personagem direcionado aos espectadores, ao final, nos fazem cúmplices dessa incapacidade.