sábado, 28 de fevereiro de 2015

Birdman: ou a grande farsa do cinema americano


Este texto contém spoiler.

A pergunta que não quer calar: como um filme que critica o sistema de produção hollywoodiano pode ganhar o maior prêmio do cinema americano se ele está preso a esse mesmo conjunto de regras que mantém a grande indústria cinematográfica funcionando? Imagine uma pessoa que trabalha numa grande empresa e resolve, de um hora para a outra, apontar os erros, falhas e comportamentos execráveis do modo de agir dessa firma. Como você acha que o patrão vai se comportar? Ele daria um prêmio de melhor funcionário do ano ao sujeito? Diante de inquietações cinéfilas, tentei refletir sobre o feito realizado por Birdman: Ou a inesperada virtude da ignorância. Eis as minhas observações.

Antes de tudo, é preciso abordar os aspectos relevantes da obra em questão. Filmado pelo cineasta mexicano Alejandro González Iñarritú, o filme foi considerado um divisor de águas na carreira do diretor. Responsável por dramas densos como Amores Brutos, 21 gramas e Babel, a comédia dramática surge como um trabalho atípico no seu currículo. O longa-metragem conta a história de um ator decadente interpretado de forma magistral por Michael Keaton. O projeto de Inãrritú é conduzido como se não houvesse cortes, uma técnica de excelência aplaudida mundo afora, mas que não é nenhuma novidade como bem apontou o crítico do IMS José Geraldo Couto. Alfred Hitchcock, em 1948, realizou Festim Diabólico utilizando a mesma ideia. Porém, o criador de Birdman usou a contento os falsos planos-sequência para dar conta do percurso labiríntico dos corredores do grande teatro e realizar uma sagaz analogia com a própria mente perturbada do protagonista. A trilha-sonora composta por solos de bateria também reflete o turbilhão de sentimentos e sensações que se passam no interior do personagem.

Birdman é criativo e sua força motora é a atuação de Michael Keaton. Ele interpreta Riggan Thomson que teve um passado glorioso como ator de Hollywood encarnando, por três vezes, o super-herói Birdman. O personagem foi tão forte em sua carreira que acabou por se tornar um alter-ego que o persegue o tempo todo como uma voz que clama para que ele faça a quarta sequência da famigerada produção. Entretanto, Riggan está disposto a retomar sua carreira como um grande ator dos palcos e não das telas. Por isso, esforça-se para montar uma peça baseada num conto de Raymond Carven, mas o que de fato entra em cena é o seu desejo de ser amado e respeitado pelo público, por suas mulheres e pela filha. Outrora um ator de grande sucesso (ele fez os dois Batmans de Tim Burton em 1989 e 1992), Michael Keaton há anos não emplacava um sucesso, muito menos um filme relevante. O ator, como poucos, soube tirar proveito dessa situação e fez piada da própria condição colocando-se como objeto de análise. Qual ator de Hollywood conseguiria processar, frente ao público, seus fracassos, decadência e vaidades? Pouquíssimos, seria a minha resposta com certa convicção. Uma pena que o ex-Batman do cinema tenha sido preterido com a perda do Oscar de melhor ator para Eddie Redmayne, que interpretou Stephen Hawking no sentimental A teoria de tudo. Redmayne é bom ator e se beneficiou pela transformação, mas Keaton, ao contrário, é pura atuação. Intensa, desesperada e insana.

Mas e a pergunta feita no início deste texto, como se responde? Ora, Birdman pode ser genial pelas atuações e por suas técnicas de filmagem, porém, o premiado longa-metragem é uma verdadeira farsa no que concerne ao seu conteúdo crítico. Conduzido com humor duvidoso e certo histrionismo, o filme parece nunca chegar ao cerne da questão que pretensamente quer apontar ou denunciar. A cena em que Riggan fica preso do lado de fora do teatro e precisa andar, apenas de cueca, entre os frequentadores de uma Times Square movimentadíssima pode ser engraçada, mas nada mais é do que aquele humor rasteiro que o cinema americano sabe fazer muito bem. O que assistimos com essa cena? Bem, alguns poderão acreditar que estão vendo uma crítica à decadência de Riggan. Porém, o que se vê, é muito mais a ideia da humilhação de ser velho, de estar fora de forma e de passar vexame no meio da multidão. Ou seja, é gratuito demais. Essa mesma graça que supostamente torna o filme divertido, acaba por enfraquecer o seu potencial de meter o dedo na ferida. Se num determinado momento da projeção ousa fazer alguma crítica, no outro momento anula tudo o que disse recorrendo a alguma piada ou clichê estapafúrdios. É um verdadeiro morde e assopra que não chega a lugar nenhum.

A cena final, no entanto, parece-me a chave para o entendimento da questão que aqui saliento. Sem coragem para finalizar mais incisivamente o seu trabalho, Inãrritú recorre ao fantástico. Ao se lançar pela janela de um hospital e se transformar literalmente no personagem que o perseguia, Riggan encontra a liberdade naquilo que mais o atormentava. Perceba: fica subentendido que a filha ao ver o pai morto também enlouquece e, daí em diante, passa a vê-lo como o Birdman. Tudo fica muito óbvio nesse desfecho: o que vence no final das contas é o sistema. É Hollywood e seus personagens exagerados, suas narrativas vazias e mirabolantes e seus efeitos especiais de ponta, que seduzem e alienam, que permanecem no imaginário e que se perpetuam mesmo depois da morte.  O que triunfa é o super-herói, não o homem. Essa é a mensagem incutida na obra com ares de respeitosa crítica inteligente, mas que não faz nada mais do que manter aquilo que torna Hollywood o que ela é. Birdman é a ilusão da crítica. Não há humor incisivo como, por exemplo, fazia Charles Chaplin ou como faz Woddy Allen. Não há provocação, não há incômodo, não há estranhamento, não há subversão. O filme apenas mantém a indústria cinematográfica perfeitamente intacta, sem arranhões. Iñarritú é perspicaz e sabe que para se manter no jogo precisa jogar com as cartas certas.

A indústria do cinema norte-americano é a mais agressiva do mundo e não deixaria passar em branco um filme forte e expressivo que abalasse suas estruturas. Algo mais vigoroso correria o risco de afastamento do cineasta dos grandes estúdios de produção. A meu ver, uma verdadeira crítica amplia o olhar sobre aquilo que observa, vira do avesso, sacode...Isso é tudo o que Birdman não faz. Criticar para manter o status quo é o mesmo que falar da boca pra fora, o resultado será sempre inócuo. Alejandro González Iñarritú é um cineasta espetacular, isso é inegável. Mas também é muito esperto. Se ganhou o Oscar foi puramente por enaltecer nas suas entrelinhas mais distraídas, o sistema que paga o seu valoroso cachê. Anote: no teste do tempo, Birdman será lembrado apenas como o filme que ganhou o Oscar ou que foi injustiçado pela ausência de uma estatueta dourada para a atuação de Keaton, mas seu conteúdo crítico será tão somente esquecido como os astros e estrelas que envelhecem na indústria e são postos fora de cena.


Michael Keaton sendo dirigido por Iñarritú

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