quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Leviatã: quando a fé não move mais montanhas


Indicado ao Oscar 2015: Melhor Filme Estrangeiro

Na mitologia bíblica, Leviatã é um poderoso monstro marinho que causa devastação por onde passa. Afrontá-lo, significa perder a vida. A criatura surge no livro de Jó, capítulo 41. O filme de Andrey Zvyagintsev pode ser visto como uma atualização da história do personagem da Bíblia que, desafiado por Deus, precisou passar por diversas provações até conseguir suas recompensas. No entanto, no longa-metragem, o monstro é outro e as recompensas são inexistentes. Essas informações são importantes para podermos entender melhor a obra aqui resenhada.

Kolya, um homem comum, vive numa casa próxima ao mar de Barents, norte da Rússia, com a mulher e o filho. Com os bens confiscados pela prefeitura, ele pede ajuda ao amigo Dimitri, um advogado de Moscou. Enquanto acompanhamos todas as tentativas do russo de reaver sua propriedade, somos apresentados a indivíduos corrompidos e corruptos. O prefeito Vadim é o símbolo máximo dessa corrupção. Arrogante e violento, o político utiliza o poder, que lhe foi outorgado, a seu bel-prazer e sem nenhum escrúpulo destrói a vida de quem atrapalha seus projetos gananciosos.

Pelos personagens que compõem a pequena família - pai, mãe e filho - podemos observar três vertentes de um país decadente. A Rússia dos homens: machista e violenta. A Rússia das mulheres: silenciosa e passiva. E a Rússia dos jovens: assustada e perdida. Todos bebem vodca em excesso e vivem a maior parte do tempo alcoolizados criando uma atmosfera ébria que parece antecipar a inevitável tragédia que está por vir e que precisará ser enfrentada. Nesse caso, estar sóbrio não parece ser uma boa opção. A câmera de Zvyagintsev mira em dois alvos: o estado e a igreja. Articulados, ainda em pleno século XXI, as duas instituições são responsáveis por perpetuar o poderio de políticos corruptos e a ignorância de um povo que espera por uma intervenção divina que, um dia, os salve de todos os males. A crítica é corajosa e direta ao governo de Vladimir Putin e isso fica evidente quando vemos a fotografia do presidente russo ornando o gabinete do prefeito Vadim.

O diretor recorre a uma fotografia bem executada que reforça o tom melancólico do enredo. Cenários lúgubres tornam a narrativa ainda mais intensa. Cenas de ondas quebrando sobre rochedos surgem desde o início da projeção. A fluidez das águas do mar contraposta a rigidez das pedras é um bela metáfora do homem que acredita ser possível mudar alguma coisa pela força da insistência, da paciência e da fé. Porém, diante de um governo leviano que nada faz para a humanidade e que governa como se fossem deuses para benefício próprio, não basta crer em Deus para fazer mudanças. No universo severo criado pelo diretor, a fé não move mais montanhas. E quando o desespero se instala, rezar não faz mais sentido. Imagens de barcos abandonados irrompem em diversas passagens da história para representar o estado de espírito dos personagens nos quais a inocência é nula. Em Leviatã todos são barcaças meio afundadas, meio destruídas e totalmente perdidas. Amizade e traição entram no bojo como elementos que dão conta das questões humanas mais internas. Porém, a cena com simbologia mais incisiva é a do menino que, desesperado, chora próximo a um imenso esqueleto de baleia. O leviatã, como besta dos mares, aqui, se revela morto para dar lugar a outro monstro muito pior: o homem. 

Sem muitas explicações, o cineasta constrói uma obra vigorosa e triste. A cena da traição da mulher com o amigo do marido não é revelada, apenas os assistimos voltando para casa com os rostos marcados pela violência do esposo traído. Não são visíveis também as armações do prefeito para incriminar Kolya, bem ao final do filme. Simplesmente percebemos o que está acontecendo, sem que para isso precisemos ver qualquer coisa que seja. Leviatã é uma produção russa da melhor qualidade que, sem mostrar muito, diz bastante. É um retrato desolador da Rússia, e a experiência vivida pelo protagonista muito se assemelha a de um personagem kafkiano. Kolya é lançado em um mundo no qual as leis não fazem justiça e encontrar saída é impossível. Por mais que Dimitri se esforce para defender o amigo, ele acaba por se deparar com um sistema judiciário obscuro e burocrático que mais prejudica do que ajuda o seu cliente.

No momento derradeiro, não há novidades quando descobrimos que Kolya perderá a sua casa. Afinal, o próprio trailer mostrava um trator derrubando uma residência; uma cena pungente que nos provoca grande indignação. Agora, a grande surpresa é descobrir o que é erguido nas terras que a prefeitura toma tão violentamente do pai de família. Dado o exposto até aqui, acho que não é difícil imaginar. Adivinhou? Ao final, quando os créditos sobem, será impossível não percebermos que a realidade retratada no filme russo é assustadoramente semelhante a que vivemos no Brasil e que o homem nunca foi tão lobo do homem como em tempos atuais.


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