terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Ida: o sacrifício da clausura e do viver.



Vencedor do Oscar 2015 de Melhor Filme Estrangeiro.

Em poucos minutos da projeção de Ida, percebemos sem muita dificuldade que estamos diante de uma grande obra de arte do cinema europeu. A fotografia em preto e branco, bem explorada em suas nuances, causa impacto no espectador e é um dos pontos altos da produção polonesa candidata ao Oscar 2015 de melhor filme estrangeiro. O impecável trabalho de luzes e sombras realça ainda mais o universo proposto pelo cineasta Pawel Pawlikowski. A história gira em torno de Anna que está prestes a fazer seus votos de castidade, pobreza e solidariedade para se tornar freira. Inicialmente, observamos a disciplina rígida do convento. O silêncio dos ambientes é quase tangível, quebrado apenas pelos pequenos ruídos dos movimentos metódicos das religiosas ou quando alguma oração é realizada. Órfã, a protagonista recebe a informação da existência de uma tia - seu único vínculo familiar - da qual ela não tinha conhecimento até então. Liberada das obrigações para conhecer a parente, a noviça sai da clausura por uns dias e muito mais que descobrir sobre o trágico passado de seus pais, ela também irá descortinar uma vida plena de emoções e desejos jamais experimentados.

O filme se alicerça na tese de que uma pessoa somente estará se sacrificando em nome de alguma santidade se a priori tiver conhecido o pecado. Ou seja, não há santa que não tenha sido profana e devassa que não tenha sido um pouco virtuosa ao longo da vida. Essa ideia surge no enredo no momento em que Wanda Gruz - uma mullher que carrega o peso da experiência da vida e de um passado marcado por arrependimentos e dor -  conhece a sobrinha. Ao mesmo tempo em que busca compreender a morte de seus pais, Anna, que fora batizada como Ida, sente o desejo surgir pela primeira vez quando conhece um saxofonista. É após uma tragédia marcante que a garota se arriscará a experimentar o mundo do qual ficou alheia por tantos anos. Dessa forma, passa a reconhecer a si mesma como um ser humano complexo; assim como todos nós somos. Não é em vão que a personagem que intitula a produção tenha dois nomes, um de batismo e um recebido posteriormente. Anna é a certeza e as verdades impostas pelo mundo religioso. Ida é a dúvida e a descoberta de um universo cheio de possibilidades. Seja pelo passado marcado pela dor da Segunda Guerra Mundial ou pelas escolhas ainda incertas do futuro vindouro, a construção de Anna/Ida se mantém nessa perspectiva contrastante do que foi e do que pode ser, do que foi ensinado e do que está por aprender. A jovem vai da silenciosa observação às delicadas descobertas da vida sem nunca perder a ternura, uma eficaz interpretação da atriz Agata Trzebuchowska. É bonita a cena em que alcoolizada a moça se envolve numa cortina e, rodopiando, acaba por arrebentar o pano do trilho. Uma metáfora de como a moça se sente no mundo.

Ida é um trabalho belo e sofisticado. A temática do holocausto surge de forma sutil, mas é ponto-chave para compreensão da narrativa. A estética visual da obra é de uma composição quase barroca, soturna e melancólica, impactantes. Os enquadramentos são diferenciados colocando os atores sempre às margens da cena representando o desejo de fuga da vida que se leva, no caso da noviça, ou do passado que assombra, no caso de Wanda. Por vezes, as personagens surgem com as faces divididas fugindo da quadratura da câmera, o que reforça as ambiguidades existentes. Na maior parte do tempo, os personagens são focados no canto inferior da tela potencializando a opressão do mundo em que vivem e das questões internas que processam. A qualidade da direção e a constância do silêncio como meio de provocar reflexão nos remetem às grandes obras clássicas do sueco Ingmar Bergman. 

No entanto, é na música de John Coltrane, soprada pelo saxofonista do filme, que a quietude se rompe por completo. O som invade cenas pontuais com uma sonoridade sensual e aprazível, algo que se relaciona perfeitamente com a ebulição dos desejos recém-descobertos pela religiosa. Quando a música toca, por breves momentos, é como se a frieza do que vimos até o momento ficasse em suspenso e a vida se revelasse deliciosamente hipnótica em seus sons, cheiros e sabores. Assim, Ida, com seus grandes olhos inquietos e assustados, começa a perceber que viver - apesar de toda dor que possa causar - é contagiante. E evitar tudo isso depois de ter experimentado, agora sim, se configurará num autêntico sacrifício.


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