domingo, 12 de abril de 2015

Acima das nuvens: a implacável força do tempo


Duas mulheres são apresentadas ao público durante uma viagem de trem. Uma delas é uma célebre atriz que está se preparando para prestar uma homenagem a um grande dramaturgo, que foi uma espécie de mentor em seu início de carreira no cinema. A outra, é sua jovem assistente que resolve por seus vários telefones celulares os pormenores da vida da famosa estrela. Antes mesmo da chegada ao destino, as duas mulheres são surpreendidas com a notícia da morte inesperada do homenageado. A seqüência serve como prólogo do filme Acima das nuvens, novo trabalho de Olivier Assayas (Depois de maio), um dos melhores cineastas da França atual.

Após a seqüência que abre o filme, a conceituada atriz Maria Enders (Juliette Binoche) chega ao seu destino e acaba recebendo o convite de um importante diretor para realizar uma nova montagem de uma peça baseada no texto Maloja Snake de Wilhelm Melchior, o dramaturgo/diretor de cinema que seria homenageado. Enders participou da primeira montagem da peça como Sigrid, uma jovem impetuosa que seduziu uma mulher mais velha levando-a à beira da loucura e, posteriormente, à morte. Agora, na nova versão, ela interpretaria Helena, a personagem mais velha da narrativa. Maria Enders, no entanto, se sente insegura, pois, ainda em sua memória há a interpretação marcante que fez de Sigrid quando era jovem. Enquanto Maria passa o texto com sua assistente, Valentine - interpretada por Kristen Stewart - Maria e Valentine vão se tornando uma espécie de espelho de Sigrid e Helena. Em dado momento da projeção, o espectador já não sabe mais se os diálogos são parte da ficção ou da vida real das duas mulheres. É mais um trabalho incrível de direção de atores realizado por Olivier Assayas.

As atrizes foram corajosas ao aceitarem a proposta evidente do cineasta de trazerem um pouco (ou muito) de si mesmas para compor suas personagens no longa-metragem. A performance de Valentine realizada por Kristen Stewart acaba satirizando sua própria carreira como atriz em Hollywood e Juliette Binoche também se utiliza de sua imagem de atriz respeitada, que fez filmes com importantes diretores de cinema, mas que também enveredou pelo cinema de entretenimento. A química entre as duas atrizes é ímpar e a narrativa torna-se ainda mais complexa quando Maria conhece Jo-Ann Ellis (Chloe Grace Moretz), a atriz que assumirá o papel de Sigrid na nova versão teatral e que é famosa por estrelar filmes de super-heróis americanos e também por seus escândalos na mídia, o que inclui um vídeo íntimo vazado na Internet e cenas de agressividade. Olivier Assayas faz de Acima das nuvens um estudo do comportamento de artistas e celebridades, mas vai além ao dar conta de nuances do comportamento humano que são universais. Solidão, desejo e envelhecimento compõem a narrativa.O receio da personagem interpretada brilhantemente por Juliette Binoche é ambíguo demais e não sabemos o quanto disso provem de seu passado mal resolvido ou da cultura superficial que fortemente circunda o mundo em que vive. O universo efêmero e raso das celebridades é discutido no enredo desse filme. Basta observar a cena quando Maria conhece Jo-Ann e percebe que ela é uma pessoa muito diferente da imagem que a Internet atribuiu à garota ou então quando a atriz conversa com a assistente sobre a "psicologia" dos filmes de super-heróis, caindo numa gargalhada descontrolada. São passagens pontuais que deixam transparecer um pouco da opinião crítica do cineasta, mas que nunca chegam a julgar as condutas de suas personagens.

Há ao longo de toda a história, um verdadeiro embate de gerações revelado no interessante jogo de metalinguagem entre a peça que está sendo ensaiada, o filme que estamos assistindo e a vida real das atrizes que dão corpo às personagens do longa-metragem. Maria e Valentine estão sempre próxima do conflito; Uma não consegue entender muito bem o universo da outra, são vivências diferentes, mundos diversos, pensamentos distintos. É desses “mundos” que fala o diretor e isso explica, em partes, o título desta obra. Clouds of Sils Maria foi traduzido para o português como Acima das nuvens. Numa tradução mais ao pé da letra teríamos As nuvens de Sils Maria, menção ao local onde a atriz e a assistente se refugiam para ensaiar o texto e também residência do dramaturgo morto no início do filme. As nuvens do título faz evidente referência a implacável passagem do tempo, mas também podem ser compreendidas como sutis metáforas de mundos à parte, podendo estar relacionadas tanto ao mundo da criação do artista, quanto ao mundo das celebridades, ou ao mundo particular de cada pessoa, permeado de segredos íntimos inconfessáveis e situações difíceis de lidar. Acho que não seria inútil, e nem forçado, também pensarmos nas "nuvens virtuais" dos tempos atuais em que armazenamos milhões de informações particulares desde músicas, fotos e filmes preferidos até informações de trabalho e estudo que dizem muito sobre nós. Lembram quando dados sigilosos do governo e de artistas foram roubados e caíram na mídia causando um estardalhaço no mundo todo? A imagem da nuvem é uma simbologia poderosa do século XXI. 

Acima das nuvens é um filme lacunar, que requer atenção do espectador e que apela para sua capacidade interpretativa o tempo todo. Personagens surgem e desaparecem de cena sem que se deem muitas explicações. Isso ocorre com o ator Henryk, rival e provável amante de Enders. Com Rosa, esposa do falecido dramaturgo. E até mesmo com Valentine, a fiel escudeira de Maria Enders. O longa-metragem é construído com base em referências da linguagem teatral. Por isso, além de ser dividido em capítulos, a produção se utiliza de uma transição lenta, de uma seqüência para outra, que vai escurecendo pouco a pouco a tela, emulando as cortinas que descem e encerram um ato de uma peça. A fotografia também é executada com primor.

Os bastidores da fama e da criação artística, o jogo de aparências, os duplos e espelhamentos humanos, os desejos e motivações contidas, a crítica à Hollywood, o conflito de gerações, a força da interpretação, a juventude em contraponto à velhice, identidade e alteridade, tudo isso se converte em arcabouço desta obra complexa, sofisticada, inteligente e extremamente envolvente. A questão do tempo, aliás, é a chave para se entender a narrativa proposta pelo cineasta. A relutância de Maria Enders para interpretar Helena é a síntese de um comportamento bastante atual no qual é cada vez mais difícil aceitar a passagem do tempo como algo natural. No mundo das estrelas e astros do cinema isso se torna um fator de complexidade ainda maior, pois eles cultuam a juventude como um elemento de poder que parece conferir uma aura de eternidade às suas personas tornando-as, de algum modo, especiais. No entanto, como todos nós, artistas/celebridades são criaturas humanas e frágeis, passíveis de envelhecer, adoecer e morrer. Não há nada de imortal, nada de sobre-humano. As belas locações nos Alpes Suíços, que numa grande tela de cinema são impactantes, são o contraponto perfeito entre a grandeza do mundo e a pequenez do ser humano. Ao final, a solidão de Maria Enders encontra a solidão de Helena. Quando ela está se preparando para entrar em cena num teatro lotado, já não nos importa mais assistir a peça em questão, pois o que vimos até ali foi a força tragadora do tempo, as perdas, os embates, os amores, as vitórias, as derrotas, as ambiguidades, as inseguranças, as inquietações e o trabalho na arte transformando de forma inexorável a vida desta mulher. Assim como a vida transforma a todos nós.



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