Eunice Waymon foi uma garota pobre do sul dos Estados
Unidos que sonhava em ser a primeira pianista clássica negra da história
americana. Por força do racismo avassalador dos E.U.A, acabou sendo rejeitada
pelo conservatório de música. Seu sonho se manteve, no entanto, mesmo diante de
todos os empecilhos. Com a ajuda de uma professora aprendeu a tocar piano com
perfeição, amava Bach. Para se sustentar e continuar estudando música clássica,
começou a cantar - e não somente a tocar - em bares. Algo inimaginável para
quem sonhava em se apresentar em salões classudos e teatros pomposos. De
família religiosa, precisou driblar as reprimendas que surgiriam caso sua mãe
soubesse que ela cantava “músicas do demônio”. Então, para não chamar a atenção,
mudou o nome e, assim, surgiu Nina Simone. Numa boate, acabou conhecendo o
homem que viria a se tornar o seu marido, o sargento de polícia Andrew Stroud
que, encantado com a voz da moça, prometeu transformá-la numa das maiores
cantoras dos Estados Unidos. Conseguiu, a custo de muito controle e exploração.
A biografia de Eunice/Nina é uma das mais interessantes e importantes no que
concerne ao universo da música norte-americana.
O documentário dirigido por Liz Garbus, disponibilizado
para os assinantes do Netflix e que passou por vários festivais de cinema, faz
um apanhado da carreira da cantora Nina Simone que fez de sua música uma
mistura de jazz, blues, soul e música clássica e, mais tarde, acabou sendo reconhecida
como uma das mais poderosas vozes contra o racismo inflexível que se espalhava
por seu país. Por meio de gravações de shows, fotografias, depoimentos de pessoas
próximas, entrevistas gravadas em áudio e trechos de cartas e de um diário,
conhecemos um pouco mais sobre esta mulher forte, combativa, de opiniões
polêmicas, um pouco melancólica e bastante controversa. Agenciada pelo marido, a autora
de Felling Good e Misunderstood se transformou num sucesso
absoluto. Vendeu muitos discos e fez amizade com os principais artistas e
intelectuais da época, mas ainda assim sentia que algo estava lhe faltando.
Queria mais, e sua condição de artista famosa a empurrou para o engajamento
político na luta pelos direitos civis dos negros americanos. Queria ser uma voz
que incomodava. E foi. Engajou-se com tanta veemência, que chegou a convocar os
negros para um combate armado contra os brancos, num protesto com claro viés
terrorista. “Vocês estão dispostos a esmagar coisas brancas”, proferia com fúria.
Sua atitude radical, contudo, afetou sua
carreira e ela acabou perdendo contratos. Os shows tornaram-se escassos, os
programas de televisão não a convidaram mais e os empresários a abandonaram. Um
verdadeiro boicote à cantora, que nos induz a pensar no poder do sistema quando, incomodado com a opinião contrária à norma vigente, decide anular uma pessoa.
Duas
grandes emoções conduziram toda a carreira e vida de Nina Simone, o medo e a
raiva. Não é à toa que o documentário se inicie com uma entrevista da cantora na qual
lhe perguntavam o que é ser livre, e ela respondeu com convicção que "ser livre é não ter medo". Sabia o que estava dizendo e falava com conhecimento de causa. À
sua época, o recrudescimento do racismo foi violento. O atentado a uma igreja do Alabama foi um dos episódios mais chocantes
e tristes culminando com a morte de quatro crianças. O fato fez com que a
artista compusesse uma música chamada Mississipi
Goddam, que provocou rebuliço quando lançada, sendo rejeitada por muitas
gravadoras e rádios. Nina Simone foi uma das primeiras artistas da música americana a colocar palavrões em suas músicas. Ela esteve presente em momentos históricos importantíssimos dos Estados Unidos como o funeral de Martin Luther King e a perigosa marcha de Selma. (Este
último episódio, recentemente, tornou-se um bom filme e foi até indicado ao Oscar
2015 de melhor longa-metragem. Recomendo.). A cantora viveu todo o medo da violência do preconceito
fruto da ignorância do homem. Viveu também o medo da violência doméstica ao ser
surrada pelo marido, como deixou registrado em desesperados desabafos em páginas
de seu diário. Sabia, como nos versos do poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade, que "a dor era inevitável, mas o sofrimento opcional", assim sendo, em vez de se fazer vítima, transformou todo o medo em raiva e canalizou toda a dor para sua arte. “A raiva a sustentava”, explicou sua filha em depoimento registrado no filme. Sugiro que se coloquem fones
nos ouvidos e ouçam as canções de Nina Simone. É impossível ficar imune à dor
que ela exasperava de seu timbre vocal, ela foi a voz das feridas sangrentas
do racismo de seu tempo, infeliz e aterradoramente, ainda abertas, até hoje.
O documentário é linear, sem inovações ao gênero. É
fácil acompanhar a história dividindo-a em cinco partes. O início, pela
dedicação da menina no intuito de realizar o sonho de se tornar uma grande
pianista clássica, o auge do sucesso e do reconhecimento, a fase política, o
ostracismo na África e o ressurgimento na França onde viveu até a morte. Porém,
“What Happened, Miss Simone?” nos mostra uma artista como poucas. Artistas que
fazem de sua arte algo além da performance de palco, que pensam o papel do
artista no mundo em que vivem. “Como ser artista e não refletir a época?”,
questionava-se Nina em uma entrevista. Hoje em dia, é tão raro uma concepção
genuína do ser artista que não esteja relacionada somente à imagem de ser uma
celebridade, que é emocionante ver o quanto Nina Simone respeitava seu ofício.
É fascinante ver a postura de reverência que ela tinha ao entrar no palco se
inclinando durante longos segundos enquanto o público a ovacionava. Como também
era instigante o olhar com o qual fitava a plateia assumindo a seriedade de
quem sabia o significado de estar ali. A severidade de seu rosto, no entanto, se dissipava várias vezes durante os shows e as câmeras flagraram e registraram o
sorriso contente de Nina Simone, que, em comunhão com o público, revelava a
menina que insertou no nome artístico.
Já no final da vida, foi diagnosticada com bipolaridade o que explicava, em partes, sua agressividade, algo que lhe causou muitos problemas, principalmente, quando, ressentida da América, embarcou para a África e, posteriormente, para a Europa. Suas últimas entrevistas antes de falecer ganharam um tom amargurado e desesperançoso, dizia que sua obra fora irrelevante para o
mundo. Compreensível que pensasse assim, afinal, ela cantou a dor de ser
artista num mundo no qual a violência, a banalidade e o preconceito estavam sendo mais fortes que a força da arte. (Qualquer semelhança com a contemporaneidade não é
mera coincidência). Sua voz, de fato, incomodou muita gente, como bem queria.
Mas, muito mais que provocar, ela emocionou milhões de pessoas ao redor do mundo
e fez pensar. Portanto, torna-se imperioso assistir este documentário,
principalmente em tempos como o nosso em que o racismo se banaliza de forma tão
absurda no Brasil e no mundo. Assistir “What Happened, miss Simone?” é atestar
o quanto uma voz como a de Nina Simone - seja pela qualidade artística ou pela
mensagem transmitida - faz falta, muita falta.
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