domingo, 1 de fevereiro de 2015

Boyhood: um exercício cinematográfico sobre o tempo

Indicação ao Oscar de Melhor Filme
Outras indicações: diretor, edição, ator coadjuvante (Ethan Hawke), atriz coadjuvante (Rosana Arquette) e roteiro original (Richard Linklater).

Transições de tempo são importantíssimas para contar histórias no cinema. Por exemplo, não dá para imaginar filmes como O curioso caso de Benjamim Button (2008) de David Fincher sem a utilização de recursos para fazer a passagem dos anos, pois, obviamente, o que está sendo narrado é a sequência dos dias. Mas se a maioria dos cineastas utilizam efeitos visuais para conseguirem o que desejam, o diretor Richard Linklater utilizou o tempo em si mesmo como elemento de sua obra. Boyhood: da infância à juventude é um exercício cinematográfico singelo sobre o decorrer da vida, sobre o inexplicável que é viver e, interposto a tudo isso, sobre a efemeridade. 

A câmera do diretor observou minúcias do crescimento do menino Mason interpretado pelo até então desconhecido ator Ellar Coltrane. Ao acompanharmos a trajetória do personagem até o seu ingresso na universidade de 2002 a 2014, observamos como ele precisa lidar com as mudanças decorrentes das separações amorosas da mãe e o que entra em cena são as perdas inerentes à vida as quais, inevitavelmente, todos nós precisamos nos adaptar. Ao construir a narrativa ao longo de doze anos filmando pouco a pouco o processo de amadurecimento e envelhecimento de seus atores, o cineasta rompeu com a tênue linha que separa vida real e arte. Ao mesmo tempo em que muito intimamente seguimos o percurso de vida do protagonista, a câmera também nos faz acompanhar a passagem de tempo no ator que o interpreta, gerando uma obra curiosa e importante para o cinema mundial.

É na transição da criança para o adolescente, e daí para a fase adulta, que vemos a vida passar de forma mais nítida. A partir dos trinta anos, mudamos pouco ou mal nos damos conta de que estamos “passando”. São crianças e jovens que nos revelam, através de suas mudanças físicas e comportamentais, que o tempo urge. Por isso o foco da trama se concentra em crianças e não em adultos. Mas isso não nos exclui de assistir a decorrência dos anos nos pais do protagonista, o que torna a obra ainda mais dinâmica. Rosana Arquette e Ethan Hawke, atores sem vaidades, abriram mão de bons salários e contribuíram com boa parte de suas vidas em nome do fazer artístico. Trata-se de uma entrega genuína, rara de ser apreciada na sétima arte, ainda mais no que concerne ao cinema norteamericano. É intrigante observar também que o menino protagonista concedeu à sua carreira uma estranha unicidade ao interpretar apenas um personagem ao longo dos últimos doze anos. Dessa forma, ele foi criança numa tela de cinema apenas uma única vez e nunca mais será porque hoje, aos 19 anos, encontra-se adulto. Para os atores envolvidos no projeto, o registro realizado deve ter sido motivo de orgulho e estranhamento.

A simplicidade é a base de todo o filme. Roteiro e atuações estão corretos, se pensarmos nas infinitas possibilidades que essa ideia tinha para dar errado. Não há grandes reviravoltas na trama e o maior acontecimento do roteiro incide no dia-a-dia, no viver. Não muito diferente do que é a vida da maior parte das pessoas. A despeito dos sonhos que acalentamos, a maioria de nós viverá de maneira trivial e nossas maiores conquistas serão as que todos desejam: um bom trabalho que nos sustente e nos conceda alguns prazeres na vida, um grande amor, algumas viagens inesquecíveis, ter filhos, comprar uma casa, um carro e ponto final. Todo o resto são coisas de ordem pessoal que, em geral, serve apenas para preencher os dias até o nosso momento derradeiro. O cinema, principalmente o sediado nos Estados Unidos, sempre foi um catalisador de narrativas heroicas, grandes feitos e histórias incríveis. Boyhood, no entanto, é o contrário de tudo isso. É uma película que fala de pessoas comuns, gente como a gente, nada extraordinárias, sem grandes perspectivas de fama e sucesso desenfreado que a mídia tanto incute em nosso pensamento. É uma obra que tem temporalidade própria e se distancia do famigerado imediatismo contemporâneo. Não é à toa que possua quase 3 horas de duração. 

Richard Linklater é um dos cineastas americanos mais geniais da atualidade e o tempo é um de seus instrumentos de trabalho mais profícuo. Utilizou-o de forma exemplar na trilogia romântica Antes do amanhecer (1995), Antes do pôr-do-sol (2004) e Antes da meia-noite (2013) que acompanhou um casal da juventude à vida adulta, configurando-se em um de seus melhores projetos cinematográficos. Em tempos nos quais a velocidade dita o ritmo da vida e consequentemente da arte, Linklater faz de seus trabalhos algo que desperta a atenção, sem que para isso precise se render aos exageros típicos da moda. Registrar o tempo não é trabalho fácil, requer paciência que respeite a própria gestação da obra com seus prováveis imprevistos. É como esperar um filho nascer. E isso é belo, mágico, sensível, mas também assustador. Bem no finalzinho do filme, o roteiro ainda abre uma pequena discussão filosófica: aproveitamos o momento ou é o momento que se aproveita da gente? A resposta pode levar uma existência inteira.

As etapas do crescimento do ator Ellar Coltrane

2 comentários:

  1. Parabéns, Flávio, pelo blog!
    Gostei muito do seu texto e Boyhood inegavelmente dialoga com uma nova corrente, um mundo novo que, apesar das resistências e contra elas, está nascendo. O filme ainda se prende a aspectos que nos são ferozmente servidos pela grande mídia e pela industria cultural hegemônica, mas não podia ser diferente, pois esse filme - como você diz muito bem - mantém seu foco na historicidade que parte de vivências que têm suas raízes muito marcadas pela cultura de massas, mas também pelo sonho - que ainda não acabou - de uma contracultura que ainda encanta e que de uma certa forma nos prometia e nos promete um mundo muito diferente do que vemos e vivemos hoje.

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    1. Ceila, obrigado pelo elogio e pelo comentário. Suas palavras contribuem muito para que eu amplie ainda mais o meu olhar e escreva melhores textos. Concordo plenamente quando diz sobre os aspectos da indústria cultural de massa ainda existentes no filme. Atenho-me também para o foco que o longa-metragem dá à cultura norteamericana sulista. Culto às armas, conservadorismo e religiosidade arraigados. No entanto, não vi isso como crítica, mas como um registro do comportamento dos indivíduos dessa região dos E.U.A.

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