quarta-feira, 5 de março de 2014

A fotografia mais famosa dos últimos anos: programada ou espontânea?


          Tive um professor de literatura na faculdade que entrava na sala de aula bradando: “Tudo é ficção”. Ele não dava bom dia e nem cumprimentava ninguém, já entrava dizendo, em alto e bom som, “Meus queridos alunos, tudo é ficção”. Era quase um bordão. E logo em seguida, após proferir a sentença, iniciava suas aulas, que geralmente levavam a turma a pensar na frase que ficava ecoando nas mentes. O motivo desta introdução, já, já, explicarei. Antes, quero falar da selfie do Oscar 2014.

 Selfie é uma expressão americana utilizada quando uma pessoa tira fotos de si mesma, como num autorretrato. A prática tornou-se frequente com o uso de celulares com câmeras. Não é nada difícil encontrar alguma selfie pelo Facebook com gente afastando a câmera e tirando uma fotografia com o namorado(a) ao lado, com os amigos numa festa, com o cachorro no colo ou mesmo sozinha. Enfim, uma infinidade de possibilidades. A expressão tornou-se famosa e rompeu os limites do mundo norte-americano, chegando ao vocabulário das línguas de outros países. Basta dar uma olhada em textos de revistas e jornais de nosso país para rapidamente encontrá-la. A nova palavrinha do século XXI, ainda não está em nossos dicionários, o que gerou em mim uma dúvida de concordância: seria a selfie ou o selfie? Quando escrevi o texto sobre o Oscar e intitulei “O Oscar além da festa, dos luxos, dos egos inflados e do selfie”, usei a expressão no masculino porque achava que se referia ao movimento, ao gesto de virar a câmera do celular na própria direção. Mas, dando uma circulada pelos textos on line de nossos principais veículos de comunicação, observei que a maioria está utilizando no feminino. Certamente em analogia à palavra feminina “fotografia”. Então, fui lá e corrigi o meu título.

            Dúvidas de gêneros à parte, a selfie tirada no Oscar (foto acima) do último domingo vem dando o que falar. A foto, logo após ser tweetada, rapidamente gerou 1 milhão de retweets, prova de que a audiência estava ligada na apresentação, que de fato teve índices recordes e bateu até mesmo a audiência fenomenal - histórica que cabia ao último episódio do seriado “Friends”. Em menos de dois dias, somando mais de 3 milhões de replicagens, a selfie do Oscar tornou-se a mais retweetada da história do Twitter. Com tanta gente curiosa e interessada na fotinho de celular, rapidamente ela ganhou status de fotografia mais emblemática da história do cinema e da premiação.

            Vejo dois motivos para esse prestígio todo sobre a selfie oscarizada. Primeiro, a fotografia representou uma quebra de protocolo. A cerimônia do Oscar sempre foi permeada por uma fama de seriedade. Afinal, os americanos estão premiando aquilo que fizeram de melhor ao longo do ano. (O que se formos pensar bem, não tem sido muita coisa). Toda a pompa das roupas dos astros e estrelas de Hollywood demonstra que aquela não é uma festinha qualquer. É mais que isso. É cerimônia de gala, de reverenciamento de grandes talentos, homenagens a quem faleceu e a grandes lendas do cinema que ainda estão vivas, portanto, todos devem se comportar com deferência. Todos devem se levar a sério, todos devem se fazer sérios. Tanto é que muitas macacadas (Vide Roberto Benigni quando ganhou o Oscar de melhor filme estrangeiro por “A vida é Bela” em 1999. Se não se lembra do momento, procure no YouTube), sempre são vistas com maus olhos. Mas o Oscar, nas décadas recentes, tem se levado a sério demais, o que tem tornado a festa bastante chata. Ao realizar um gesto comum e recorrente das massas, o Oscar aproximou-se muito mais do público e tirou até mesmo de suas estrelas aquela aura de intocáveis. A condução do programa pela apresentadora Ellen DeGeneres, popular na televisão americana, e a presença de entregadores de pizza no palco reforçaram ainda mais esse lado menos formal da festa.

            O segundo motivo é que a selfie reuniu atores e atrizes de diferentes gerações. Estavam lá, a nova geração encabeçada por Jennifer Lawrence (Jogos Vorazes) e Bradley Cooper (Se Beber, não case) ao lado de figuras símbolo do cinemão americano: Julia Roberts, Meryl Streep, Kevin Spacey e o casal mais famoso Brad Pitt e Angelina Jolie. Ainda figurava na fotografia, a artista referência da noite em que o filme “12 anos de escravidão” venceu o Oscar de melhor filme, o primeiro da história da premiação escrito, dirigido e interpretado por negros: a atriz queniana/mexicana Lupita Nyong`o, vencedora do Oscar de melhor atriz coadjuvante. A fórmula era perfeita: quebra de protocolo, reunião de artistas de diferentes gerações e um comportamento bastante atual e popular. Resultado: repercussão no mundo todo. A foto circulou por todos os jornais on line e é uma das mais comentadas nas redes sociais. Uma fama que não deixará a selfie ser esquecida tão cedo, se é que será esquecida, e que lhe deu ares cult.

            No entanto, lendo as notícias recentes, vi a denúncia de que a selfie foi um golpe de marketing. A Samsung, empresa que patrocinou a transmissão do Oscar, tinha feito um contrato com a apresentadora do programa, o que incluiu um treinamento para que a foto fosse feita. A anfitriã da festa negou que tudo tenha sido forjado. Mas não é muito difícil suspeitar que isso realmente tenha acontecido. Com uma audiência altíssima, as empresas, principalmente as de comunicação, saem no tapa para terem um espaço durante a exibição do programa e assim exibirem seus produtos. O celular usado para a famosa selfie era o lançamento mais recente da Samsung. São os tempos modernos, uma fábrica de momentos fabricados. Se até os nossos sentimentos estão cada vez menos orgânicos, não dá para duvidar que uma simples selfie tenha sido pensada antes de ser executada.

            Mesmo assim, toda essa polêmica em torno da selfie não diminui seu caráter de fotografia emblemática dos últimos tempos no mundo do cinema. Pelo contrário, só aumentou ainda mais a sua fama. E é isso mesmo que a Samsung quer, que O Oscar quer, que o mundo das celebridades quer, que o público em geral quer: polêmica. Fico pensando: quem sabe a selfie realmente não tenha sido espontânea e a informação que denuncia a armação do momento, essa sim, seja falsa. Num mundo no qual o jogo de aparências é cada vez mais intenso, no que podemos acreditar? Pois é, talvez nunca saberemos se a selfie foi ou não espontânea. O que a torna ainda mais célebre.

            Toda essa história em torno da selfie me fez lembrar de uma renomada fotografia, também envolta por polêmicas. Se voltarmos no tempo, lá em 23 de fevereiro de 1945, lembraremos que uma grande fotografia foi tirada em meio a Segunda Guerra Mundial. Era a conquista dos americanos na batalha de Iwo Jima. A foto de Joe Rosenthal (foto abaixo) registrou cinco fuzileiros e um médico no momento em que içavam a bandeira americana. A fotografia ganhou o prêmio Pulitzer, percorreu o mundo inteiro e entrou para a história. Porém, a fama de que aquele momento não tinha sido natural, mas fruto de uma armação, sempre assombrou a fotografia. Pessoas que estavam presentes no momento do içamento da bandeira, disseram que Rosenthal chegou atrasado no monte Suribachi e pediu para que repetissem o gesto, conduzindo os soldados novamente a levantar a bandeira, por várias vezes, até que conseguisse o clique perfeito, aquele que entraria para a história. A pergunta que não quer calar: o que de fato nessa vida é espontâneo, natural ou sincero?

            Só para lembrar do meu professor de literatura com o qual comecei esse texto, ele foi apenas um gesto de escrita. Algo elaborado por mim apenas para iniciar o meu texto. Ele nunca existiu. A vida é assim, meus caros... tudo é ficção.



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