sexta-feira, 3 de maio de 2013

"Depois de maio": cinema, música, artes plásticas, drogas, sexo e...política.


Um professor de literatura do ensino médio lê um trecho de um  livro de Pascal que diz: “Entre o céu e o inferno só existe vida, que é a coisa mais frágil do mundo”. A cena se encerra e somos levados a uma outra na qual presenciamos um grupo de jovens anarquistas que movidos por um intenso desejo de liberdade e revolução vão às ruas brigar por seus ideais. A violência toma conta da tela em impressionante sequência. A polícia opressora manifesta-se como bem conhecemos: tiros, bombas de gás lacrimogênio, chutes e espancamentos. A barbárie está instalada e o que é humano, racional e sensível vai por água abaixo em segundos. Ali, não há vida, não há humanidade, não há respeito. Assim, inicia-se o filme “Depois de maio” do diretor francês Olivier Assayas. Uma produção que lança um olhar sobre a juventude revolucionária depois de maio de 68, um dos momentos mais importantes do movimento estudantil francês.

O longa-metragem acompanha o jovem idealista e politicamente engajado, Gilles. Como todo jovem de sua idade (e que viveu na França entre os anos 70 e 60) ele se preocupa com questões relacionadas à coletividade ao mesmo tempo em que precisa definir os rumos de sua própria vida. Não diferente dos amigos passa por diversas descobertas concernentes à idade, o que inclui sexo, drogas e rock n´roll. O olhar do protagonista é um olhar perdido e ao mesmo tempo curioso em relação à vida. Ele tem o desejo ardente de mudar o mundo e por isso não titubeia na missão de enfrentar o repressor sistema mesmo que para isso arrisque várias vezes a própria vida. Mas no íntimo, é um jovem como outro qualquer com vontades próprias e sonhos que são somente dele. Seus desejos pessoais se refletem em seu talento para a pintura, o objetivo de ser cineasta e o gosto pela música. Tudo misturado ao viés político que dominava os tempos de outrora. 

O grande dilema do filme é exatamente esse: coletividade versus individualidade. Como equilibrar as duas coisas? Nos dias atuais, é fácil observar o quanto a questão da coletividade tem perdido espaço para os interesses particulares. Muito disso, certamente, é fruto de um capitalismo selvagem que cada vez mais deteriora as relações humanas. Mas, como mostra o filme, houve um tempo em que as pessoas, principalmente os jovens, eram engajadíssimos. Eles acreditavam e lutavam por um mundo melhor. No entanto, esse projeto revelou-se uma utopia e a frustração veio logo a reboque. Talvez isso explique a geração pós-moderna apática que temos hoje. Somos frutos de uma geração frustrada e isso acarreta conseqüências complexas e difíceis de entender numa simples análise.

Um dos pontos fortes da produção é que em momento algum ela é saudosista. Não se pretende imaginar aquele momento como um tempo melhor do que o atual. Aquele pensamento idealista de que no passado tudo era perfeito apesar dos problemas vividos. Numa passagem do filme, o jovem protagonista lê uma poesia para a namorada que diz: “Eu odeio os velhos poetas murmurando sua juventude passada”. Esse é exatamente o espírito desse filme. Não há espaço para lamentos. O intuito é lançar um olhar sobre esse passado, acompanhando, por meios de seus personagens, um período no qual se acreditava realmente em mudanças mesmo que no fundo esses mesmos jovens engajados não soubessem ao certo quem de fato era o inimigo. Lutava-se contra o sistema, mas não se tinha um foco específico, um alvo. Tudo que era contrário aos ideais revolucionários era o inimigo. Pregava-se a liberdade, mas a rebeldia se atestava em subversão, abuso de drogas pesadas, vandalismo. Onde se pretendia chegar? Qual o objetivo claro dessas atitudes? Quantas vidas custam o preço de ser livre? Por que esse espírito libertador enfraqueceu-se com o tempo? Até que ponto a opção pela violência é o caminho para o tal "mundo melhor"? E até que ponto esse fervor jovem não era produto de uma ingenuidade? São perguntas que ficam propositadamente no ar.

Os elementos fílmicos só colaboram para o bom andamento da história. Temos aqui, uma fotografia sóbria, de cores frias, meio foscas, trazendo um ar constante de melancolia. Um trabalho excelente de Eric Gautier, que fez semelhante exercício fotográfico no filme “Na natureza selvagem” no qual também imprimiu a mesma melancolia através da imagem. A trilha-sonora é composta de músicas como “Why are we sleeping?” do Soft Machine,  “Know” de Nick Drake, “Decadence” de Kevin Ayers entre outros títulos bem sugestivos para o momento histórico vivido. A construção histórica, os cenários e o figurino também são um deleite a parte. Tudo executado milimetricamente com charme, elegância e uma certa sensualidade.

No entanto, na minha opinião, a grande sacada do cineasta foi a relação feita entre o roteiro do filme e o próprio cinema como arte coletiva. Em diversos momentos, o filme se detém na arte cinematográfica como apoio da história que se deseja contar. Por exemplo, o protagonista da história tem como objetivo de vida fazer cinema, uma arte conhecidamente construtora de sonhos. Até que ponto o diretor do filme não estaria relacionando o mundo desejado pelos jovens daquela época a um sonho quase cinematográfico? O embate de um cinema feito para o entretenimento e um cinema feito para a revolução revela-se em uma cena na Itália na qual os revolucionários questionam a validade do cinema como arma utilizada a favor do movimento e não a favor da burguesia. A construção narrativa tem uma abordagem genial. No começo, o longa-metragem é mais movimentado com a seqüência do choque da polícia com os manifestantes e em seguida com o momento eletrizante dos jovens pichando e colando cartazes nas paredes de uma universidade durante uma madrugada, o que acaba gerando uma perseguição e um grave acidente. No decorrer da exibição, o ritmo torna-se mais lento. Acompanhamos os personagens em suas idas e vindas. Em suas buscas pela continuidade do movimento idealista e a dedicação às suas necessidades de âmbito pessoal, que muitas vezes não estavam ligadas aos ideais defendidos. Assim, pela própria estrutura do roteiro, o filme revela essa frustração dos sonhos que vai dominando pouco a pouco o ideal dessa juventude. O que era intenso, vibrante e elétrico no começo vai se tornando apático, lento e desacreditado no final.

As interpretações ao filme de Olivier Assayas podem ser muitas e uma boa obra é sempre assim, vasta de possibilidades. Num exercício interpretativo, é possível observar o papel entusiasmático da juventude como motor propulsor de mudanças. Não é à toa que as gerações mais velhas, a partir de determinada idade, passam a responsabilidade de melhorias do mundo para a geração vindoura. Até que ponto podemos lançar nas mãos da juventude a responsabilidade de transformação do mundo? O poder da juventude é contagiante, corajoso e urgente, mas bastante efêmero. Essa é talvez a faceta mais perigosa do ser jovem, sintetizada numa fala do protagonista que com certo ar de tristeza profere: “Tenho medo que minha juventude acabe”.

Assayas fez um filme em que misturou um pouco de tudo. Cinema, música, artes plásticas, política, drogas...Tudo poderia se tornar confuso, mas ao contrário, revela-se solo fértil para uma obra criativa e imperdível. O bom filme, para mim, deveria ser sempre assim: político sem ser partidário, religioso sem ser fundamentalista, gay sem ser panfletário, histórico sem ser didático. Convidaria toda a juventude contemporânea a assistir esse trabalho e assim quem sabe observar, de um modo geral, que a principal revolução que podemos fazer é primeiramente a revolução interna. No equilíbrio da transformação interna e posteriormente externa quiçá não encontraremos a paz tão almejada pela humanidade.

Depois de maio (Après Mai)
Direção: Olivier Assayas
Elenco: Clément Métayer, Lola Créton, Carole Combes, Felix Armand e India Menuez.
Roteiro: Olivier Assayas
França, 2013
Duração: 122 min




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