Todos os
dias, quando abrimos os jornais ou a Internet, lemos um punhado de tragédias
familiares. Maridos traídos matando suas esposas, mulheres vingativas
assassinando seus amantes, mães ou madrastas eliminando crianças com requintes
de crueldade e por aí vai. São tantos casos, que a nós cabe uma única certeza:
algo está errado no mundo. Vivemos em tempos de relações humanas degradadas e é
com base nessa premissa que o diretor estreante Fernando Coimbra escreveu o
roteiro de seu primeiro longa-metragem.
O filme é uma interessante mistura de gêneros
cinematográficos, suspense, drama e policial, que, a princípio, parece revelar
mais do mesmo, mas, felizmente, não é o que acontece. Tudo começa quando uma
mãe desesperada procura pela filha desaparecida. Numa delegacia, somos
apresentados aos personagens. A mãe em questão, o marido dela, a amante dele e
a responsável pela creche na qual a criança tinha sido vista pela última vez.
Todos dão informações confusas e incertas e o policial que conduz a
investigação, pouco a pouco, vai adentrado numa trama que esmiúça a mentira, a
vingança, o ódio e a traição. Aparentemente, todos são inocentes, todos estão
assustados, ninguém sabe de nada. Mas a partir do momento em que a verdade vem à
tona, percebemos o quanto estamos diante de seres humanos travestidos de
pessoas de bem, mas capazes das mais desumanas crueldades.
Há um jogo de aparências
muito bem construído pelo diretor. Sorrisos falsos, meias verdades, desejos
lascivos, falsas amizades e gentilezas vazias permeiam cada minuto do filme. Os
nomes curtos de mulheres parecem propositalmente gerar confusão. Rosa, Dália,
Rita, Silvia, Clara, Beth, outra Silvia, são alguns dos nomes que aparecem em
cena. Este detalhe é exposto durante a investigação quando, indagado pelo
delegado, o marido tenta lembrar o nome de uma mulher que, dias antes, havia
passado um trote e se identificado como Beth. Ele não tem certeza do nome, mas a informação que fica para o espectador é que, dentro dessa falta de clareza de nomes femininos, também há a indistinção do perigo que, muitas vezes, vem da forma mais simples e rotineira. Está ali, diante dos nossos olhos ou do nosso lado. Pode ser nosso
vizinho, a pessoa que amamos ou um amigo. No longa-metragem, a violência surge do
dia-a-dia, das relações mal resolvidas, do desejo incontrolável, do mundo adulto que não se dá conta de seus próprios atos e que tem na criança um de seus alvos mais fáceis no descarrego de suas maldades. É um retrato assustador de uma realidade comum no Brasil.
Todo filmado na zona norte do Rio de Janeiro, há em O
Lobo atrás da porta cenas muito bem construídas. O trem que passa pela
Estação de Marechal Hermes deslizando sempre pesado e ruidoso sobre os trilhos, os
trovões e a chuva forte que cai durante uma cena em que os protagonistas
conversam e a lavagem da escadaria da Igreja da Penha com sons confusos de
vozes, águas e pés caminhando parecem anunciar, lamentosamente, a tragédia que
está por vir. O som das cigarras - confusas e barulhentas - numa sequência crucial, explicita o nosso incômodo como plateia diante de uma cena brutal. É como se a natureza reagisse diante daquilo que vê e também se
chocasse e se lamentasse.
A produção se segura nas boas atuações do elenco encabeçado por Leandra Leal e Milhem Cortaz que demonstram grande talento cênico, principalmente, nos momentos que exigiram grande intimidade. Fabiula Nascimento também não faz feio como a dona de casa traída e alheia ao perigo. Há ainda as participações de Talita Carauta, que imprime humor em todas cenas em que aparece e ajuda a aliviar o peso da temática densa. Só achei pouco aproveitado o delegado interpretado por Juliano Cazarré, que investe mais no perfil do policial durão engraçadinho. O estarrecimento com as atitudes humanas impensadas poderia conduzir o olhar deste personagem, atribuindo-lhe melhores camadas interpretativas. Infelizmente, não é o que acontece. Mas esse detalhe não prejudica a qualidade da produção.
A narrativa se aprofunda na psique humana que por
impulsos incompreensíveis (ou até compreensíveis, dependendo do ponto de vista)
emerge na forma de atos de extrema violência. Com a mesma facilidade que a
protagonista diz ser fácil comprar um revólver na cidade, a maldade parece
assim ser efetivada. É fácil, prática e rápida. E numa sociedade que põe à disposição
do homem facilidades para seus intentos criminosos, tudo se torna ainda mais
assustador. O lobo atrás da porta atualiza a expressão “lobo em pele de cordeiro”. Agora, a metáfora do lobo não requer mais disfarces. Em tempos modernos, surge sem máscara alguma. O lobo do título torna-se metáfora da maldade humana que, traiçoeira, se esconde de forma quase imperceptível nos lugares mais ordinários e, paradoxalmente, acabam por se tornar os lugares menos prováveis. Está ali, atrás da porta da cozinha na qual a mãe prepara um simples jantar sem se
dar conta do que acontece ao seu redor, seja por ingenuidade ou pela própria
infelicidade de sua vida. Está atrás da porta do quarto que, fechada, acalenta os sonhos dos filhos. Está atrás da porta principal que nos preserva, ilusoriamente, dos perigos da
rua ou atrás da porta da escola que supostamente protege as crianças. O mal está em todo o lugar e espreita a todos nós, calmo e silencioso, mas pronto para nos atingir, a
qualquer momento, sem aviso e sem distinção.
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