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Fetichismo, masoquismo,
sadismo, voyeurismo, ménage à trois, bondage...Se algumas destas palavras
soarem estranhas aos seus ouvidos ou lhe causar algum tipo de incômodo pelo que
possam remeter, talvez você deva passar longe de uma sessão do filme
“Ninfomaníaca”. (Apesar de
achar que você deveria enfrentar seus preconceitos e se arriscar numa sessão). Em seu novo filme, o genial dinamarquês Lars Von Trier descarta todo o manual da correção política que
domina o cinema atual (e o mundo como um todo) e investe pesado em cenas de sexo explícito que, se não
lhe causar nenhuma ofensa aterradora, lhe fará embarcar numa narrativa de
obscuridade, crueza e tristeza que acabará por desenhar um perfil da condição
humana. O longa-metragem narra a saga erótica de Joe, uma mulher
viciada em sexo que não mede esforços para satisfazer os seus desejos. Das
descobertas sexuais ainda na infância até a fase adulta, acompanhamos uma
jornada de vida permeada pelo caos, pelo desespero, pela degradação e pela
melancolia. O filme, em sua versão original, possui cinco horas e meia de
duração, mas, por motivos mercadológicos, teve que ser dividido em dois volumes.
A primeira parte, lançada em janeiro, vai da descoberta à perda do prazer da
protagonista. Já a segunda, lançada em março, vai da tentativa de resgatar o
prazer perdido à aceitação de si mesma.
No primeiro volume, ferida e abandonada, Joe (Charlotte
Gainsbourg) é encontrada por um homem de meia idade chamado Seligman (Stellan
Skarsgard). O estranho oferece ajuda e a leva à casa dele. Entre um pouco
de conforto e algumas xícaras de chá, a mulher passa a contar seu passado de
promiscuidades. É nessa relação entre a mulher e o velho que o filme vai sustentando
sua narrativa. Enquanto ela discorre sobre a vida, o homem tece suas
analogias e reflexões na tentativa de entender o
comportamento dela, sem nunca de fato chegar à uma conclusão satisfatória. Essa
relação pode ser pensada de várias formas. A primeira, e mais evidente, é a
relação paciente e médico. Como um psicanalista, Seligman se coloca diante de
Joe apenas tentando entender os caminhos que a levaram a tal ponto de
destruição. Mas, num segundo olhar, podemos estabelecer outras relações muito
mais interessantes como a relação pecadora e padre. Joe, como quem peca,
confessa todo o seu passado de infortúnios aos quais se submeteu na busca de um
prazer insaciável. Quando encontra o velho lhe diz que é uma pessoa má e que merece
tudo o que lhe aconteceu, assumindo assim uma postura de quem busca por castigo divino ou por perdão. Seligman, no entanto, ouve todas as confissões com complacência, como um bom
padre. A condição sexual de Seligman, revelada no segundo volume, atesta seu papel de bom ouvinte. O prazer que encontra nas histórias que lhe são narradas concentra-se na curiosidade intelectual e não na excitação que elas possam causar. Mas há que se fazer um parêntese: em filmes de Lars Von Trier nada é o que realmente parece ser. Essa relação análoga a um confessionário religioso, talvez seja a melhor que podemos estabelecer entre os personagens, pois a sexualidade e a
religiosidade se misturam o tempo todo no filme, de forma mais clara no segundo
volume que no primeiro. E esse é um ponto-chave de todo o enredo. Antes de
falar sobre sexo, “Ninfomaníaca” é um filme que fala sobre a religiosidade como
um caminho não de salvação, mas de perturbação, tabus, preconceitos e,
principalmente, hipocrisias.
Desde que estabelecida a moral da civilização
judaico-cristã, um cipoal de neuroses passou a afetar o comportamento humano, principalmente de
mulheres. Basta a leitura dos principais livros do Romantismo/Realismo para atestar que a mulher que traía o marido era punida, sem mudança de regra, ora com a loucura, ora com a morte. Não é em vão que o cineasta escolha a figura da mulher como
protagonista da maioria de seus filmes. É nela que recai toda a culpa, toda a
responsabilidade, todos os medos, todas as cobranças de uma sociedade machista
e patriarcal. A sexualidade da mulher, uma vez submetida ao homem, precisa
estar sempre na ordem do dia, bem composta nas engrenagens social, familiar e
amorosa. Transgredir essas regras, invariavelmente, vem acompanhada de uma
torrente de palavras pejorativas tais como puta, vadia, piranha e por aí vai.
Um homem de peito nu, de bermuda caída cintura abaixo com a cueca à mostra é
algo aceito pela sociedade. Agora, uma mulher de pouca roupa é acusada,
apontada, ofendida e difamada. É na mulher que se deposita a cobrança de um casamento
feliz e saudável, o sucesso ou fracasso da criação de um filho. E quantas
dessas mulheres, cobradas o tempo todo, tentam se adequar aos padrões impostos
e acabam, por fim, infelizes? Joe é uma dessas mulheres. Ela banaliza o ato
sexual por causa das regras que lhe foram impostas desde criança. Cobrada, direta ou indiretamente, para
formar uma família, encontrar um homem a quem deva ser fiel, parir uma criança e
amá-la por toda a vida, Joe nem de longe se enquadra nesse modelo. Mas, uma vez inserida
neste mundo de tabus religiosos e conservadorismo hipócrita, acaba por tomar
atitudes consideradas abomináveis. Abandona o filho porque não consegue se ver
como mãe zelosa, mas o faz não sem antes sofrer. Abandona o marido porque não
consegue, apenas com um homem só, sentir prazer e o próprio reconhece não pode
dar a ela o tanto que deseja.
Joe banaliza o sexo porque vive à margem da
sociedade, negando o que sente, o que quer, o que deseja. A degradação de Joe é
nada mais, nada menos do que um desdobramento de uma sociedade que impõe normas comportamentais de todos os tipos, que fomenta interdições religiosas e descarrega na mulher
toda a culpa do mundo. O vício em sexo é um reflexo dessas circunstâncias
sociais contaminadas de opressões sistemáticas. Seligman, ao final do
segundo volume, levanta a questão: se um homem agisse como Joe seria
ele alvo de julgamento? Em minha opinião, de quem tenta entender o mundo com todas as suas contradições, creio que para esta pergunta há uma resposta. Se fosse um homem heterossexual, certamente não recairia sobre ele toda essa punição que se aplica à mulher. Mas em um homem homossexual, sim. Pois compartilho da teoria de que quando há um ataque homofóbico não é o homem em si que está sendo punido, mas a feminilidade que nele transparece. Não quero discorrer sobre teorias. Mas fica evidente que aquilo que é da ordem do feminino sempre foi alvo dos mais violentos ataques e assim permanece no mundo atual.
O que o cineasta quer com essa história é provocar o
público e isso Lars Von Trier faz muito bem desde que se tornou célebre com o
filme “Ondas do destino” de 1996. Seu desejo é mexer com as próprias limitações
do público, brincando o tempo todo com a plateia, mexendo com assuntos considerados tabus, incluindo neste pacote a
sexualidade infantil e a pedofilia. Ao colocar dois personagens dentro de um
pequeno quarto discursando sobre assuntos considerados polêmicos,
é como se o diretor nos convidasse a observar aquela conversa como quem olha por
um grande buraco da fechadura que é a tela do cinema. É, portanto, proposital a repetição da frase “Preencha
todos os meus buracos” que a personagem principal profere algumas vezes durante
a exibição do segundo volume. Uma frase que pode ser entendida não apenas da
forma sexual óbvia, mas também pode ser entendida como a busca incessante do
preenchimento do próprio vazio existencial, algo inerente a todo ser humano. Sabendo que seu filme causará
controvérsias, Lars Von Trier traz o espectador para o jogo cinematográfico
como se o convidasse a também preencher os buracos, não os sexuais, mas os de sua
narrativa cheia de incoerências, contrastes e contradições entremeada de cenas de sexo.
Cheio de participações especiais, o que torna alguns
capítulos do filme um deleite a parte, “Ninfomaníaca” traz a atriz Uma Thurman, que
aparece no primeiro volume, como uma mulher traída e sem noção, que leva os
filhos para conhecer a cama onde o pai trai a mãe. É um dos momentos mais hilários do
filme e a representação máxima do recalque feminino. E o ator Jamie Bell, que surge no segundo volume num dos momentos mais sádicos,
como um homem que atrai mulheres com o único intuito de lhes dar porrada e os dois tiram prazer disso. É uma
espécie de garoto de programa misógino. Essa parte do filme tem uma cena de caráter religioso fortíssimo ao colocar a mulher em posição de castigo (com as nádegas voltadas para cima) sendo açoitada como se estivesse sendo crucificada às avessas. É uma cena extremamente sádica, forte e inquietante. Há ainda no elenco as presenças de Shia Labeouf (nos dois volumes), como o marido de Joe. Willem Dafoe (somente no volume 2), como um cobrador de dívidas para o qual Joe trabalha. Christian Slater (somente no volume 1), como o pai da protagonista e a atriz revelação Stacy Martin (nos dois volumes), como a Joe jovem.
O longa-metragem é corajoso e oportuno por provocar o público de cinema, atualmente, tão anestesiado diante
de narrativas insípidas. Algumas pessoas poderão dizer que a obra é de mau gosto, por exibir genitálias com tanta naturalidade e cenas de sexo que deixarão qualquer conservador ruborizado, mas o filme é esperto por incorporar em seu enredo justamente essas prováveis reações da plateia. É contundente a cena em que a protagonista pronuncia a
palavra nigger para se referir a dois negros com quem ela tentou fazer
um ménage a trois. Seligman recua, dizendo para que ela não utilize o termo,
pois é considerado politicamente incorreto. E ela discorda, dizendo que ao
deixarmos de pronunciar alguma palavra já estaríamos revelando o nosso
preconceito. Não é exatamente isso que a sociedade faz? Quando nos incomodamos com algo, procuramos logo eliminar ou
mudar, em vez de enfrentar e tentar entender. Eis uma excelente crítica do
comportamento humano contemporâneo. Com os dois volumes de
Ninfomaníaca, o diretor, que também escreveu o roteiro, quis propor uma
reflexão acerca da hipocrisia relacionada ao âmbito da sexualidade. É patente que a compreensão do ser humano em relação às questões que envolvem o sexo é bastante
enviesada e limitada o que incorre, na maioria das vezes, em conclusões e ideias
estapafúrdias. Porém, Lars Von Trier não tem a mínima pretensão de trazer respostas para sua proposta cinematográfica, ele deixa que o público julgue com os elementos de que dispõe, sejam eles preconceituosos ou não. É um trabalho que mexe com as entranhas do comportamento e do corpo humanos. Um
filme que utiliza a pornografia a serviço da reflexão. E isso o torna de grande
relevância no cinema mundial.
E quem diria que em um filme
rotulado como “pornográfico” haveria espaço para a poesia. Pois há. Em um momento da projeção, Joe descobre a árvore com a qual se identifica depois de procurá-la por
anos. Em sua infância, era um hobby que seu pai tinha de procurar uma espécie
de árvore favorita, que seria aquela que mais o representaria. A protagonista
a encontra ao se reconhecer num grande tronco retorcido, solitário, encravado em
cima de uma montanha. Um bela metáfora do que ela é no mundo. Seu pai lhe dizia que as árvores desfolhadas durante o
inverno revelavam suas almas projetadas na forma de variados galhos secos e Joe se reconhece exatamente num grande tronco torto e seco. No
meu entendimento, a cena vai além ao nos dar a dimensão do que somos
quando nos vestimos. Será que sem roupas (o que considero uma de nossas
primeiras máscaras sociais) seríamos tão hipócritas? Será que daríamos tanta
importância ao sexo como é recorrente no mundo atual? Pecado e culpa tomariam
nossas consciências e acabariam por criar, em consequência, uma gama de perversões?
Como disse antes, não há respostas prontas em “Ninfomaníaca”,
mas o final deixa evidente que por trás de uma aparência de normalidade, todos
nós, por mais bem-intencionados que sejamos, escondemos, sob toneladas de dissimulações,
alguma perversão. E assim seguimos, disfarçados de belas árvores cheias de folhas quando na verdade somos estranhos galhos tortos.