Tive um professor de
literatura na faculdade que entrava na sala de aula bradando: “Tudo é ficção”.
Ele não dava bom dia e nem cumprimentava ninguém, já entrava dizendo, em alto e
bom som, “Meus queridos alunos, tudo é ficção”. Era quase um bordão. E logo em
seguida, após proferir a sentença, iniciava suas aulas, que geralmente levavam
a turma a pensar na frase que ficava ecoando nas mentes. O motivo desta
introdução, já, já, explicarei. Antes, quero falar da selfie do Oscar
2014.
Selfie é uma expressão americana
utilizada quando uma pessoa tira fotos de si mesma, como num autorretrato. A prática
tornou-se frequente com o uso de celulares com câmeras. Não é nada difícil
encontrar alguma selfie pelo Facebook com gente afastando a câmera e
tirando uma fotografia com o namorado(a) ao lado, com os amigos numa festa, com
o cachorro no colo ou mesmo sozinha. Enfim, uma infinidade de possibilidades. A expressão
tornou-se famosa e rompeu os limites do mundo norte-americano, chegando ao
vocabulário das línguas de outros países. Basta dar uma olhada em textos de
revistas e jornais de nosso país para rapidamente encontrá-la. A nova
palavrinha do século XXI, ainda não está em nossos dicionários, o que gerou em
mim uma dúvida de concordância: seria a selfie ou o selfie? Quando
escrevi o texto sobre o Oscar e intitulei “O Oscar além da festa, dos luxos,
dos egos inflados e do selfie”, usei a expressão no masculino porque
achava que se referia ao movimento, ao gesto de virar a câmera do celular na própria
direção. Mas, dando uma circulada pelos textos on line de nossos principais veículos
de comunicação, observei que a maioria está utilizando no feminino. Certamente
em analogia à palavra feminina “fotografia”. Então, fui lá e corrigi o meu título.
Dúvidas de gêneros à parte, a selfie tirada no
Oscar (foto acima) do último domingo vem dando o que falar. A foto, logo após ser
tweetada, rapidamente gerou 1 milhão de retweets, prova de que a
audiência estava ligada na apresentação, que de fato teve índices recordes e
bateu até mesmo a audiência fenomenal - histórica que cabia ao último episódio
do seriado “Friends”. Em menos de dois dias, somando mais de 3 milhões de replicagens, a selfie do Oscar tornou-se a mais retweetada da história
do Twitter. Com tanta gente curiosa e interessada na fotinho de celular,
rapidamente ela ganhou status de fotografia mais emblemática da história do
cinema e da premiação.
Vejo dois motivos para esse prestígio todo sobre a
selfie oscarizada. Primeiro, a fotografia representou uma quebra de
protocolo. A cerimônia do Oscar sempre foi permeada por uma fama de seriedade.
Afinal, os americanos estão premiando aquilo que fizeram de melhor ao longo do
ano. (O que se formos pensar bem, não tem sido muita coisa). Toda a pompa das
roupas dos astros e estrelas de Hollywood demonstra que aquela não é uma
festinha qualquer. É mais que isso. É cerimônia de gala, de reverenciamento de
grandes talentos, homenagens a quem faleceu e a grandes lendas do cinema que
ainda estão vivas, portanto, todos devem se comportar com deferência. Todos
devem se levar a sério, todos devem se fazer sérios. Tanto é que muitas
macacadas (Vide Roberto Benigni quando ganhou o Oscar de melhor filme
estrangeiro por “A vida é Bela” em 1999. Se não se lembra do momento, procure
no YouTube), sempre são vistas com maus olhos. Mas o Oscar, nas décadas
recentes, tem se levado a sério demais, o que tem tornado a festa bastante
chata. Ao realizar um gesto comum e recorrente das massas, o Oscar aproximou-se
muito mais do público e tirou até mesmo de suas estrelas aquela aura de intocáveis.
A condução do programa pela apresentadora Ellen DeGeneres, popular na televisão
americana, e a presença de entregadores de pizza no palco reforçaram ainda mais
esse lado menos formal da festa.
O segundo motivo é que a selfie reuniu atores e
atrizes de diferentes gerações. Estavam lá, a nova geração encabeçada por
Jennifer Lawrence (Jogos Vorazes) e Bradley Cooper (Se Beber, não case) ao lado
de figuras símbolo do cinemão americano: Julia Roberts, Meryl Streep, Kevin
Spacey e o casal mais famoso Brad Pitt e Angelina Jolie. Ainda figurava na
fotografia, a artista referência da noite em que o filme “12 anos de escravidão”
venceu o Oscar de melhor filme, o primeiro da história da premiação escrito, dirigido e
interpretado por negros: a atriz
queniana/mexicana Lupita Nyong`o, vencedora do Oscar de melhor atriz
coadjuvante. A fórmula era perfeita: quebra de protocolo, reunião de
artistas de diferentes gerações e um comportamento bastante atual e popular.
Resultado: repercussão no mundo todo. A foto circulou por todos os jornais on line
e é uma das mais comentadas nas redes sociais. Uma fama que não deixará a selfie
ser esquecida tão cedo, se é que será esquecida, e que lhe deu ares cult.
No entanto, lendo as notícias recentes, vi a denúncia de
que a selfie foi um golpe de marketing. A Samsung, empresa que
patrocinou a transmissão do Oscar, tinha feito um contrato com a apresentadora
do programa, o que incluiu um treinamento para que a foto fosse feita. A
anfitriã da festa negou que tudo tenha sido forjado. Mas não é muito difícil suspeitar
que isso realmente tenha acontecido. Com uma audiência altíssima, as empresas,
principalmente as de comunicação, saem no tapa para terem um espaço durante a exibição
do programa e assim exibirem seus produtos. O celular usado para a famosa selfie
era o lançamento mais recente da Samsung. São os tempos modernos, uma fábrica
de momentos fabricados. Se até os nossos sentimentos estão cada vez menos orgânicos,
não dá para duvidar que uma simples selfie tenha sido pensada
antes de ser executada.
Mesmo assim, toda essa polêmica em torno da selfie
não diminui seu caráter de fotografia emblemática dos últimos tempos no mundo
do cinema. Pelo contrário, só aumentou ainda mais a sua fama. E é isso mesmo que a Samsung quer, que O Oscar quer, que o mundo das celebridades quer, que o público em geral quer: polêmica. Fico pensando: quem sabe a selfie
realmente não tenha sido espontânea e a informação que denuncia a armação do
momento, essa sim, seja falsa. Num mundo no qual o jogo de aparências é cada
vez mais intenso, no que podemos acreditar? Pois é, talvez nunca saberemos se a
selfie foi ou não espontânea. O que a torna ainda mais célebre.
Toda essa história em torno da selfie me fez
lembrar de uma renomada fotografia, também envolta por polêmicas. Se voltarmos
no tempo, lá em 23 de fevereiro de 1945, lembraremos que uma grande fotografia foi
tirada em meio a Segunda Guerra Mundial. Era a conquista dos americanos na
batalha de Iwo Jima. A foto de Joe Rosenthal (foto abaixo) registrou cinco fuzileiros e um médico
no momento em que içavam a bandeira americana. A fotografia ganhou o prêmio
Pulitzer, percorreu o mundo inteiro e entrou para a história. Porém, a fama de
que aquele momento não tinha sido natural, mas fruto de uma armação, sempre
assombrou a fotografia. Pessoas que estavam presentes no momento do içamento da
bandeira, disseram que Rosenthal chegou atrasado no monte Suribachi e pediu para
que repetissem o gesto, conduzindo os soldados novamente a levantar a bandeira, por várias vezes, até que conseguisse o clique perfeito, aquele que entraria
para a história. A pergunta que não quer calar: o que de fato nessa vida é espontâneo, natural ou sincero?
Só para lembrar do meu professor de literatura com o qual
comecei esse texto, ele foi apenas um gesto de escrita. Algo elaborado por mim apenas para
iniciar o meu texto. Ele nunca existiu. A vida é assim, meus caros... tudo é ficção.
Adorei o texto, como sempre! Parabéns!
ResponderExcluirMuito bom!
ResponderExcluirExcelente!!! Faltou fazer uma selfie nessa aula :)
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