Indicações ao Oscar 2016:
Melhor atriz: Cate Blanchett
Melhor atriz coadjuvante: Rooney Mara
Melhor roteiro adaptado
Melhor fotografia
Melhor trilha sonora
Melhor figurino
Therese Belivet trabalha em uma loja de brinquedos. É
véspera de Natal e o local está repleto de mães em busca do presente ideal para
seus filhos. De repente, surge uma bela mulher, de elegância impecável, que
entra no estabelecimento e, sem querer, esbarra num dispositivo que mantém um
trenzinho em funcionamento dentro de uma redoma de vidro. Imediatamente, o
brinquedo deixa de fazer seu incansável e ruidoso percurso circular que tanto
encanta as crianças. É uma cena aparentemente simples - que dará conta do
primeiro encontro entre Therese e Carol – mas que dirá muito sobre o universo
dessas duas poderosas personagens femininas.
O diretor Todd Haynes construiu sua adaptação do
livro de Patrícia Highsmith, - autora de sucessos como Pacto Sinistro e
O Talentoso Ripley, todos já transpostos para o cinema - de forma
extremamente sutil e delicada, sem resvalar em nenhum momento para exageros ou
apelações. A título de curiosidade, a obra literária se chamava The prince
of salt e foi publicada, em 1953, sob o pseudônimo de Claire Morgan.
Atualmente, o livro também é reconhecido pelo nome que batiza o filme. Desde o
início, quando vemos as duas protagonistas conversando em uma mesa de
restaurante e um personagem masculino surge para cumprimentá-las, podemos
observar a sutileza com a qual o diretor nos apresenta às moças. Carol se
levanta, cumprimenta o rapaz com um aperto de mão breve e firme e, antes de
partir, toca o ombro de Therese. Na sequência, o homem faz o mesmo. Filmada de
costas, Therese - tocada dos dois lados dos ombros - revela-se uma mulher
dividida, em dúvida, e confusa em seus pensamentos. É o que basta para o
espectador entender o comportamento da personagem em questão. Tudo em Carol é
conduzido com o maior cuidado e o resultado é uma obra de arte cinematográfica
de qualidade ímpar.
Apesar de Carol ser o nome que intitula a produção, é
sob o olhar de Therese que a história de amor é conduzida. Acompanhamos a
evolução da jovem vendedora de brinquedos, que sonha em ser fotógrafa, pela
brilhante atuação da atriz Rooney Mara (performance premiada em Cannes) que
imprime à sua caracterização timidez, curiosidade, melancolia e estranheza em
doses bastante equilibradas, o que a torna crível e apaixonante diante de
nossos olhos. O momento da projeção em que ela vai passar um fim de semana na residência
da nova amiga e a observa num conturbado relacionamento familiar com o marido
e, logo em seguida, retorna para casa, não sem antes, desabar em um choro
contido e dorido, é de uma beleza e tristeza incríveis. Nessa passagem,
percebemos o quanto Therese está apaixonada e, diante disso, não é preciso
dizer muita coisa. A emoção revelada é a perfeita tradução do momento. Quem, na
vida, viveu uma grande paixão, aqui, compreenderá a natureza da dor que emerge
diante da possibilidade de um amor que corre o risco de não se concretizar.
Cate Blanchett está irritantemente elegante em sua
composição (e isso é um elogio) e empresta à sua personagem suas próprias
marcas de expressão que, sem vaidades, são expostas no rosto da atriz que
sabiamente envelhece. Blanchett é, sem dúvidas, um dos maiores talentos do
cinema mundial. Sua Carol Aird é uma mulher independente para os padrões
conservadores dos anos 50, tem opinião própria e vive sua sexualidade de uma
forma muito natural dentro do possível para a época. Mantém um casamento de
fachada com o marido (Kyle Chandler) que, durante algum tempo, fingiu aceitar
sua bissexualidade em nome de uma imagem familiar idealmente organizada e feliz
e, socialmente, legitimada. O problema vem à tona quando ele resolve pedir na
justiça a guarda da filha, alegando a imoralidade do comportamento da esposa.
Assim, Haynes nos leva a um debate bastante contemporâneo que diz respeito à
condição de homossexuais na criação de filhos. Se hoje em dia, ainda vemos
situações absurdas de indivíduos que julgam pessoas do mesmo sexo incapazes de
cuidar de crianças, imagine como era em décadas passadas. É numa frase de Carol
que se introduz a crítica quando, aviltada, ela questiona: “tirar a filha de
uma mãe, não seria imoral também?”.
Aliás, Cate Blanchett profere muitos bons diálogos,
por vezes, permeado de um leve humor irônico, por exemplo, quando questiona o
porquê das pessoas acharem que receber notícias ruins será menos pior quando
estão sentadas, ou quando, irritada, após uma discussão, arremata: “Quando mais
nada pode piorar, o cigarro acaba”. O roteiro adaptado, muito bem urdido, foi
devidamente indicado ao Oscar 2016, assim como as atuações da dupla de
protagonistas. O filme também figura entre outras categorias dada a excelência
do produto final que se exibe ao público. Fotografia, direção de arte e
figurino foram concebidos com esmero, e juntos, ajudam a reconstruir os belos
cenários de uma Nova York dos anos 50 onde se passam os acontecimentos
narrativos. Apesar das indicações que recebeu, é uma pena que a produção não
tenha conquistado um espaço entre os melhores filmes. Porém, isso não diminui,
de maneira nenhuma, a potência desse trabalho. Pequenos detalhes dão um
toque especial ao longa-metragem. Observe com atenção como vidros embaçados e
foscos aparecem o tempo todo, ao longo da narrativa, fazendo evidente
referência à vida daquelas mulheres que se amam, mas precisam viver em segredo
aquilo que sentem. Em uma passagem específica, as duas estão dentro de um carro
em movimento, o automóvel adentra um túnel e os vidros das janelas, cobertos de
vapor condensado provocado pelo frio, pela chuva e pela respiração de ambas,
fundem-se a uma música distorcida que as fazem mergulhar no meio da escuridão.
Eis uma bela metáfora erótica realizada para demarcar a tensão sexual que
começa a aflorar entre elas.
A trilha-sonora colabora de forma eficaz para a nosso
processo de imersão e traz em sua partitura notas melancólicas que refletem ora
a força, ora a fragilidade do amor. A cena do trenzinho, supracitada, torna-se
uma analogia da própria vida que circula incessantemente por caminhos muito
iguais e repetitivos e que, por algum motivo, de repente, para. Pode parar por
causa de uma tragédia, de um arrependimento, de uma perda. E ao parar, nos faz
ver o mundo com outros olhos, sair da zona de conforto. No caso do filme, a
paixão é o que faz o “trem da vida” parar. E assim, torna-se inevitável o resgate
da expressão “fora dos trilhos” tão comumente pronunciada quando o sentido e os
rumos da vida tornam-se confusos e complexos demais. A paixão entre Carol e
Therese acontece durante um período de rigoroso inverno e, não é por acaso, que
quando viajam para o oeste do país, as cenas ganhem nuances mais solares,
refletindo o momento de realização do amor. Mas a neve e o frio insistem em se
fazer presentes e, logo, Carol terá que enfrentar seus demônios.
Muito mais que receber o rótulo de “filme lésbico”, Carol é,
acima de tudo, uma grande obra de cinema e não deve ser reduzida a um rótulo
tão limitador. É uma história de amor avassaladora, vivida em uma época de
muitos preconceitos, e que Todd Haynes - assim como fez em Longe do paraíso (2002),
outro belíssimo trabalho do diretor, também ambientado nos anos 50 - coloca a
disposição do espectador para que ele pense e reflita. É em um diálogo no qual
Therese, acostumada a fotografar objetos, diz que precisa se interessar mais
por humanos que podemos assimilar o recado que o diretor parece estar dando ao
mundo. Decerto, todos nós temos que nos interessar mais pelos humanos e o
momento atual urge por isso. Mas se o frio do mundo insiste em nos sabotar, é
no calor dos corpos que parece existir uma força inabalável que se traduz em
amor, sexo, paixão e vida.
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