Há
um tempo atrás, Woody Allen listou para o jornal britânico The Guardian os seus
cinco livros preferidos. A lista, atraindo a atenção de fãs e curiosos,
percorreu o mundo e agradou, principalmente, a nós, brasileiros, pois, na
seleção - entre O Apanhador no Campo de Centeio
de J.D. Salinger, a biografia do cineasta Elia Kazan e mais dois volumes -
figurava o nosso celebérrimo Machado de Assis com Memórias Póstumas de Brás Cubas. No entanto, causou-nos certo espanto que no top 5
literário do criador de Noivo neurótico,
noiva nervosa não constasse Crime
e Castigo de Fiódor Dostoiévski. Afinal, ao longo de sua extensa carreira, o diretor norte-americano parece ter se inspirado um
bocado na obra literária cujos filmes Crimes
e Pecados, Match Point, O Sonho de Cassandra e, agora, o recém-lançado
Homem Irracional são, evidentemente,
influenciados pela narrativa russa.
O
roteiro do 47° longa-metragem, escrito e dirigido por Woody Allen, gira em
torno de Abe Lucas que, insatisfeito com os rumos que
sua vida tomou, passa a conviver com uma devastadora depressão que o faz perder
o interesse por tudo, incluindo as aulas que
ministrava, os filósofos que idolatrava e as mulheres que amava. Sua visão de
vida é tão pessimista que, sem nenhum receio, se arrisca numa perigosa roleta
russa na frente de diversas pessoas. Tudo começa a mudar quando, acompanhado da
aluna Jill - interpretada pela atriz Emma Stone, musa atual do cineasta - ele acaba ouvindo
uma conversa alheia na qual uma mulher reclama da injustiça perpetrada por um juiz na decisão da guarda do filho dela. A partir de então, como um Raskólnikov (personagem central de Crime e Castigo), o professor Lucas cria
sua própria filosofia e propósito de vida. Em sua tese, ele acredita que
estaria fazendo um grande bem à humanidade, eliminando o lesivo juiz da face da
terra. Sua linha de pensamento é a de que, sendo um estranho à situação vivida
por aquela mulher, ninguém jamais imaginaria que ele, um professor de
filosofia acima de qualquer suspeita, seria o assassino da autoridade jurídica.
Ou seja, seria o crime perfeito. É claro que nem tudo sai do jeito que ele
planejava, afinal, de perfeição, nada tem a vida.
Quando
li algumas críticas sobre Homem
Irracional, dei-me conta de uma certa irritação que se manifestara, de forma geral, entre os críticos de cinema devido à repetição de fórmula que vem
acompanhando o trabalho do diretor nos últimos tempos. O argumento que usam, é sempre o
mesmo: ele já fez isso melhor há anos atrás. Antes de mais nada, é
preciso ter em mente que, prestes a completar seus 80 anos de idade, o cineasta não tem que provar mais nada a ninguém. Repetir-se, faz parte do seu show.
Mas ao dizer tudo o que já tenha dito, me parece que, também, sempre acrescenta algo - senão inovador – no mínimo instigante. Todo
filme de Woody Allen, nas palavras de um crítico americano do Hollywood Reporter, o qual não me recordo o nome, é sempre uma “provocação existencial”. Concordo com a afirmação. Em tempos nos quais praticar a reflexão parece uma tarefa enfadonha para a maioria das pessoas, Allen é sempre um sopro de provocação e inteligência não
importa o que faça, como faça ou se faz com alguns pequenos descuidos. Sabe
aquela cotação em estrelas que os jornais e revistas fazem para avaliar um
filme? Então, tenho uma cotação específica para as produções do roteirista mais prolífico do cinema americano:
cinco estrelas para os grandes filmes e quatro estrelas para todos os outros. Homem Irracional entra na lista do segundo grupo. Tornando mais claro: de ruim, tem muito pouco.
Tudo
bem que ao criar a história do professor universitário assassino, haja repetições. Mas
agora, creio que se coloque um pouco mais de fogo na lenha da fogueira do descontentamento. Abe Lucas é retratado como um homem que busca um sentido para a sua vida e
nessa jornada desenfreada, de querer fazer algo grandioso a todo custo para significar a sua existência antes da morte, envereda por caminhos muito
obtusos. Não bastou ser bem-sucedido na carreira
que escolheu, não bastou praticar atos humanitários e de caridade ao redor do
mundo, não bastou amar e ser amado, a incompletude ainda se fez presente. Ele só encontra o tal "sentido da vida" diante de um ato totalmente incoerente para quem sempre viveu de pensar à condição humana: tirar a vida de outra pessoa. O que o enredo faz, o tempo todo, é nos provocar com questionamentos bastante complexos. Precisamos mesmo buscar esse tal
sentido da vida? Existe realmente um sentido para a vida? Estas são algumas das indagações que permeiam a obra. O protagonista, que
antes pautava toda a sua vida na intelectualidade, incide num desencanto para com o mundo que anula tudo aquilo que um dia aprendeu com seu repertório
literário-filosófico. Tanto é que chega a dizer que o pensamento de
Kant, Sartre e Kierkegaard é pura “masturbação verbal”. A defesa de que o intelecto não capta tudo sobre a vida e de que é necessário estar preparado para uma grande dose de imprevistos que
interpretamos, dependendo do acontecimento, como sorte ou azar; A eterna insatisfação humana propulsora de atos bizarros e inesperados para satisfazer um ego medonho; O nosso desejo de poder, emulando o todo-poderoso, capaz de nos fazer acreditar que podemos mudar o mundo e a vida das pessoas (não é à toa que há algumas cenas diante do mar, refletindo a nossa pequenez diante do mundo); Tudo isso entra em cena e nos faz pensar. É provocação da melhor qualidade.
Com
uma narrativa sobre um crime, Allen aproveita para fazer sua
própria filosofia sobre a violência, expressada na fala da personagem de
Emma Stone ao dizer que um assassinato é apenas o estopim para que outros
aconteçam. A violência como gesto humano teria um efeito de reação em cadeia, um ato violento levaria a outro, num processo contínuo de perda de controle de si mesmo e dos efeitos do ato que se praticou. De fato, assim ocorre no filme. Buscando referências em Alfred Hitchcock, o qual o
próprio Woody diz, em entrevistas, não ser muito fã, o enredo abarca questões psicanalíticas inquietantes. Por detrás da
fachada de bons humanos, podemos esconder lados muito obscuros, perigosos e inumanos. A racionalidade,
aqui, surge como uma máscara que esconde comportamentos inimagináveis. Alguém aí pensou no estudante quietinho que um belo dia entra numa escola e metralha toda a turma? Nos pais bondosos aos olhos da vizinhança que planejam e executam a morte do próprio filho? Nos filhos amáveis que matam os próprios pais? Ou ainda no admirável piloto de avião que resolve jogar, contra as montanhas, uma aeronave com 200 passageiros a bordo apenas com o intuito de entrar para a história e ser lembrado? A cena no parque de diversão em que Abe e Jill estão diante de um espelho que os distorcem, não surge apenas como efeito escapista para divertir, mas serve como imagem-metáfora desse lado "deformado" do ser humano, e a presença do livro A banalidade do mal de Hannah Arendt, também não aparece como mero objeto de cena, funciona como intertexto que se articula ao roteiro apresentado. Em eras tão apáticas, acho tudo isso incrível.
Na
parte técnica do filme, merece destaque a belíssima fotografia, realizada
por Darius Khondji, que tem trabalhado, freqüentemente,
com o cineasta. Observe como a imagem solar preenche as cenas realçando o tom idílico da narrativa woodyalliana. Com uma estética bucólica, o filme nos remete às obras do Arcadismo no qual um
certo artificialismo permeava toda a produção artística. Com esse efeito
fotográfico rutilante, a realidade deprimente de Abe Lucas contrasta com a ambiência
aprazível ao seu redor, provocando, ora uma relação homem infeliz X mundo feliz, ora uma relação homem feliz X mundo artificial. Sinceramente, acho que até merecia uma indicação ao Oscar 2016. O próprio
comportamento da personagem Jill, que pratica aulas de equitação e piano, como
uma mulher de séculos atrás, soma-se ao que aqui tento explicar. A
trilha-sonora, outro elemento técnico muito bem executado, foge um pouco do
convencional jazz que Woody sempre
utiliza em seus filmes, ganhando, agora, um ar mais jocoso que também confronta-se com as angústias do protagonista. Perceba que nos créditos iniciais, não há
música. Apenas os nomes do elenco e da produção surgem em fundo preto, o que nos prepara para embarcar numa trama com viés um pouco mais trágico. Ainda é importante ressaltar a interpretação de Joaquim
Phoenix, um ator bastante versátil que conduz seu personagem com
talento, escapando um pouco dos trejeitos dos personagens masculinos criados por Woody
Allen que sempre são a mimese de seu criador. Phoenix insere um elemento de
enfado à sua composição, conferindo mais substância ao homem que questiona o
tempo todo a validade do mundo das ideias.
Problemas?
Sim, há alguns. Por exemplo, estranhamente, todo o restante do elenco -
excetuando Joaquim Phoenix - não ganha expressão ao longo da trama. A
professora que se apaixona por Abe Lucas, vivida pela atriz Parker Posey, e o namorado
e os pais de Jill não ganham profundidade e se perdem ao longo da história. Juntos, poderiam compor um interessante painel de seres humanos insatisfeitos com a vida, mas
isso só aparece como sugestão. Mas este é um deslize perdoável perto do que
a obra significa. Diminuí-la por isso, com o perdão do trocadilho, seria irracional. Os erros fazem parte da vida de qualquer pessoa (eu mesmo posso ter cometido muitos equívocos no texto aqui escrito) e no trabalho do cineasta, especificamente, muito do
que se imaginava quando se escrevia o roteiro, não se concretiza durante as filmagens por diversos motivos. O próprio Woody Allen diz que não assiste aos seus filmes alegando que nunca ficam do jeito que idealizara no papel, e isso o mortifica. Dessa forma, é inegável
que entre o pensar e o fazer há um abismo incomensurável e, na maioria das vezes, a
teoria, quando em prática, tende a resvalar para o fundo do poço. (Os que viram o
filme, me entenderam). Homem Irracional pode ser visto como uma obra falha e, por isso, ruim. Ou como uma obra falha, mas que tem muito a dizer. Depende do ponto de vista de cada um. Eu prefiro a segunda opção: é falha, tem muito a dizer e é sensacional.
Joaquim Phoenix sendo dirigido pelo mestre
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