Indicado ao Oscar 2015: Melhor Filme Estrangeiro
O que fez Relatos Selvagens cair nas graças da crítica especializada ao redor do mundo foi a competência inquestionável de seu diretor na condução das incríveis - e ótimas - seis histórias que compõem o filme. Por um viés tragicômico, Damián Szifron alinhava sua meia dúzia de médias-metragens produzindo uma crítica contundente sobre o comportamento humano contemporâneo. O diretor, em entrevistas, afirma que o formato de sua obra foi pensado por influência de séries como Além da imaginação (1959 -1964) e Alfred Hitchcock Apresenta (1955 -1965), que contavam com uma estrutura de tramas curtas com começo, meio e fim. O excelente trabalho de montagem permite nos deliciarmos com a história dos passageiros do avião que percebem que nada é mera coincidência, da garçonete que encontra seu algoz numa noite de chuva, do homem atacado numa estrada após xingar outro motorista, do cidadão que resolve se vingar da burocracia de seu país, do pai de família desesperado que tenta salvar o filho adolescente da prisão e, por último - a mais nonsense de todas - a noiva que descobre a traição do marido no dia do casamento. Nas entrelinhas das narrativas quase absurdas, a reflexão sobre a nossa relativa civilidade, principalmente, quando somos expostos a situações limítrofes.
Szifrón e sua equipe arrojada foram muito
bem-sucedidos no intuito de entrelaçar entretenimento e reflexão. A câmera ágil
e esperta (com certa obsessão para filmar automóveis), nos momentos certos, constrói um clima propício de suspense, drama,
ação ou romance, sem cair no ridículo ou na pieguice. E quando cai é puramente
intencional. As histórias são surreais, mas, em nenhum momento, perdem o foco
com a realidade circundante. Se ocorrem na Argentina é tão somente por ser uma
produção desse país, mas poderia muito bem se passar em qualquer grande metrópole
do mundo que a crítica existente continuaria a ser a mesma. O texto é criativo,
cheio de humor negro, ironias, diálogos rápidos e sem rodeios. Os atores que
encarnaram os personagens parecem ter se deleitado com a interpretação. Além da
figurinha repetida Ricardo Darín, que estrela oito entre dez filmes argentinos, há
também as presenças ilustres de Leonardo Sbaraglia como o motorista arrogante
de um Audi que se vê num desespero alucinado ao ser confrontado por outro
motorista; Rita Cortese como a cozinheira que não tem paciência e com um jeito
muito prático resolve problemas, Oscar Martinez (excelente) como o pai
que planeja um jogo sujo e corrupto para salvar o filho e Erica Rivas como a
noiva descontrolada com a descoberta do adultério do marido, entre outros. Relatos
Selvagens é um desfile dos maiores nomes do atual cinema argentino.
Excetuando as qualidades dessa película, dois outros
elementos me chamaram a atenção. Primeiro, a presença de Pedro Almodóvar na
produção do filme. O que prova, cada vez mais, o olhar arguto do cineasta
espanhol para encontrar boas histórias. O segundo é da ordem da comparação. Enquanto as
nossas comédias brasileiras permanecem no estilo pueril de um Zorra Total, os nossos hermanos investem
em produções mais ousadas e inteligentes sem nenhum prejuízo do sucesso nas
bilheterias. Prova de que qualidade também rende grana e, o melhor, projeta o
cinema com mais força em territórios estrangeiros. Não foi à toa que Relatos
Selvagens foi o único filme latino-americano selecionado para Cannes no ano
passado e, recentemente, foi indicado ao Oscar de filme estrangeiro. A sétima indicação de um filme argentino nesta categoria. Além
disso, tornou-se o longa-metragem mais assistido da história do país governado por Cristina Kirchner.
Quem acompanha o cinema com atenção perceberá que a
referência mais direta do filme de Szifrón foi Um dia de fúria (1993), longa-metragem de Joel Schumacher no qual
Michael Douglas interpreta um homem que, após perder o emprego, entra em
colapso provocando um caos pelas ruas de Los Angeles. Essa referência se faz
ainda mais presente nas cenas em que o ator Ricardo Darín surge; uma das mais
criticamente sociais. Violência urbana, descontrole, a banalidade da vida,
nossa aparente civilidade contraposta à nossa animalidade intrínseca, a falta
de diálogo que nos levam a atos extremos e a cultura da vingança tornam esta
produção tão atual que não sabemos se rimos do que estamos vendo porque é
simplesmente divertido ou porque, na verdade, nos reconhecemos tão
descaradamente nas situações ali presentes que o nosso riso é apenas um
movimento involuntário de incômodo e desespero. É impossível não haver identificação. Em
tempos em que uma simples briga de trânsito pode ter um desfecho trágico e
pessoas se matam por tão pouco, Relatos
Selvagens torna-se uma obra oportuna e muito bem-vinda, mais um acerto do cinema argentino.
Para encerrar, uma última observação: atenha-se para
o momento dos créditos iniciais do longa-metragem. Ao mesmo tempo em que um nome da produção aparece, alguma espécie da fauna estampa o fundo da tela fazendo uma interessante relação
com as características dos personagens que os atores viverão. (Para isso, é claro, será
interessante se você conhecer quem são os atores que interpretam os
personagens). A equipe de produção também não escapou da brincadeira sendo
ilustrados com algum animal que faça jus ao cargo desempenhado no filme. O
diretor, sabiamente, escolheu para si uma raposa que ele justificou como um animal de olhar
atento – qualidade de todo cineasta – e que possui uma certa sagacidade. Ideia
simples, porém, genial. Assim como todo o filme.