Em
um dado momento do filme Dois dias, uma
noite, a protagonista Sandra almeja uma liberdade que não tem. “Queria estar no lugar deles”, ela diz
insatisfeita. “Deles quem?”, pergunta
o marido sem entender. “Dos pássaros”,
responde sem pestanejar. Liberdade, igualdade e fraternidade foram os lemas basilares
da Revolução Francesa que culminou com a declaração dos direitos civis dos
homens. No entanto, no mundo contemporâneo, em plena era da valorização do
consumo exacerbado e da competitividade extremada, nada mais distante da
realidade do que a tríade humanista francesa.
Os irmãos belgas Jean-Pierre
Dardenne e Luc Dardenne nos lançam no mundo particular de Sandra, interpretada
com delicadeza, melancolia e fragilidade por Marion Cottillard (Piaf - Um hino
ao amor, 2007), uma operária que, após uma decisão interna de sua empresa, descobre
que perderá o emprego. Apoiada por uma colega de trabalho, ela convence seu
chefe a realizar uma nova eleição na qual será decidido o seu futuro. A partir
de então, durante um fim de semana, a trabalhadora vai à casa de 16
funcionários para tentar dissuadi-los de receber um bônus de 1.000 euros a
favor de sua permanência no cargo. É preciso observar que a luta da protagonista
– com viés trágico de uma Antígona de Sófocles – não é só pela manutenção de
sua dignidade, mas também pela conservação de sua saúde mental abalada por uma
forte depressão.
O roteiro escrito pelos próprios
irmãos cineastas é simples, porém, valoroso em suas intenções. A tentativa de
demover os companheiros de labuta do recebimento do pagamento extra chega a ser
cansativa para quem assiste devido à repetição do texto de convencimento.
Entretanto, a ideia é exatamente essa, de que sintamos um pouco da
circunstância extenuante pelo qual a moça está passando. Nada nos filmes dos
Dardenne é por acaso. Sejamos atentos, por exemplo, às músicas que são ouvidas
pelos personagens, sempre dentro de um automóvel em movimento. No interior do
veículo, a sensação de claustrofobia parece aumentar, mesmo que as pessoas estejam
procurando, por meio das melodias, desanuviar o peso de suas vidas. As próprias
letras das canções são traduções do que eles estão sentindo, seja na voz de Petula
Clark, que lamenta o mundo insensato em La
nuit n`en finit plus, ou na voz de Van Morrison, que grita o refrão de Gloria numa alusão à mulher que supera
obstáculos e não apenas em relação a um nome feminino. O automóvel, como
símbolo máximo de uma sociedade de consumo, surge, aqui, como metáfora. Uma
cápsula capitalista que nos aprisiona e sufoca sem ao menos nos darmos conta.
Como contraponto à realidade sufocante de Sandra, ao fundo de diversas cenas,
pássaros cantam alegremente, insetos murmuram ruidosamente e vozes esparsas de
desconhecidos se espraiam pelo ar.
Nas entrelinhas da narrativa do
longa-metragem há questionamentos profundos: como ser livre se necessitamos de
um trabalho que nos pague um salário digno para que tenhamos, não apenas o básico
da subsistência, mas qualidade de vida também? Como ser livre se dependemos o
tempo todo da boa vontade do outro ou - muito além disso - de remédios tarja
preta para podermos acordar, dormir e sorrir porque as pressões sociais, na
maioria das vezes, são insuportáveis? Como ser livre se vivemos cercados pelo
medo? Como podemos pensar em igualdade se para uns terem, outros precisam
perder? Como ser fraterno se, no mundo da competição acirrada, o individualismo
é a voz mais ressoante? Todas essas questões vêm à tona na medida em que a
protagonista encontra seus colegas, e desses encontros surgem as emoções mais
contraditórias, tais como, a culpa, o medo, a raiva, o desespero, a vaidade e a
dúvida.
Muito mais que fazer um retrato da
Europa atual na qual o desemprego é uma realidade tanto quanto é em países
ditos emergentes como o Brasil, os cineastas auscultam o comportamento dos
homens que, indubitavelmente, vêm lutando muito mais pela conquista de bens materiais
do que por valores humanos. Não chegam a seguir a linha de pensamento de um Ingmar
Bergman, cineasta sueco que, certa vez, disse não acreditar mais em revoluções.
O que, de fato, os Dardenne fazem é nos mostrar que a tal revolução que tanto
esperamos que aconteça no mundo, talvez, deva começar em nós, primeiramente, a
partir de pequenos enfrentamentos contra a degradação humana. Pode parecer
piegas, mas esta é uma importantíssima reflexão a ser engendrada por todos nós
de maneira conscienciosa, ainda mais em tempos tão confusos como os que estamos
vivendo, de passeatas esvaziadas de sentido ou com propósitos bastante
inumanos. Nessa perspectiva perpetrada pelos diretores, é importante analisar o
figurino que veste a protagonista. No primeiro dia de sua jornada, ela veste
uma blusa rosa e, no segundo dia, uma blusa alaranjada. É como se a própria
roupa, na tonalidade reforçada, refletisse uma aproximação maior com o vermelho
que na bandeira francesa representa a fraternidade. Na segunda blusa há,
estampados, pequenos laços interligados que, aos olhos menos atentos, podem
passar despercebidos. Eu não disse que na obra dos Dardenne nada era por acaso?
Dois
dias, uma noite, apesar dos contornos melancólicos, é um filme otimista de
certa forma, pois chama a nossa atenção para pensarmos sobre nossas atitudes
como indivíduos e sobre o mundo que nos cerca. É um grito de esperança, que nos
impulsiona para a ação no sentido de não deixarmos nossas utopias de lado em
sonhos de papel ou lemas de bandeiras. Faz-se necessário, de forma salutar e
imperiosa, murmurar nosso protesto tímido à sombra do mundo errado, como diria
Carlos Drummond de Andrade em seu poema Consolo
na praia. Porque o movimento que tem ganhado mais força nos últimos tempos,
com muita clareza, é o da desumanização. Quando vemos memes circulando nas redes sociais em que a sequência Liberté, Égalité, Fraternité é
acrescida de um Beyoncé - cantora norte-americana, ícone de valores de uma
cultura de massa -, muito mais que nos fazer rir, deveria nos provocar um
estranhamento reflexivo. É inegável que algo está muito errado e que o mundo está
resvalando para caminhos bastante obscuros, disfarçados sob a égide do sucesso,
da felicidade, da beleza e do poder. Todavia, segundo a narrativa dardenniana, precisamos
continuar acreditando no homem, nas utopias e no próximo, para podermos seguir
adiante com uma ideia melhor de futuro. É preciso lutar com as armas que se têm
- e no filme, o diálogo é a grande arma de Sandra (e me pergunto se não deveria
ser a de todos nós?) - para que um dia, quiçá, possamos caminhar todos juntos
com uma felicidade mais genuína estampada no rosto e sem precisar invejar a
liberdade dos pássaros.
*Texto escrito para publicação na revista independente Ácido Plural, nº 3. 21 de novembro de 2015. Para conhecer, acesse o link abaixo:
http://acidoplural.wix.com/revista#!edicoes-anteriores/c1bf2
*Filme disponível em dvd.
http://acidoplural.wix.com/revista#!edicoes-anteriores/c1bf2
*Filme disponível em dvd.