Esqueça a destruição pela
destruição, o novo filme do famigerado monstro japonês quer ser levado a sério
e o estrago, dessa vez, vem contextualizado. Nada de destruir apenas para o
deleite do público. Apesar disso também acontecer, a proposta deste
longa-metragem, aparentemente, é outra. Depois das recentes tragédias
vivenciadas pelo mundo contemporâneo (Torres Gêmeas, Tsunami, Fukushima)
qualquer filme-catástrofe que se preze, precisa trazer algo a mais, que vá além do
prazer de destruir. Portanto, agora os dramas são mais sérios, a trama mais
realista dentro do possível e os desastres mais aliados ao lado humano.
Para disfarçar o apelo fugaz às tragédias que retumbaram
pelo mundo moderno e que serviram de referência para as cenas de ação, o
roteiro foi construído de forma a levantar questões relevantes que fugissem do
mero escapismo. Assim, as entrelinhas do texto abordam o medo mundial de
um ataque nuclear, o medo dos E.U.A de sofrer um novo ataque externo e o medo
da força da natureza, que alterada pelo homem, vem revelando sua faceta mais
devastadora. Essa escrita baseada em medos humanos resgata, em parte, a
simbologia oficial do Godzilla japonês. Para quem não sabe, o monstro foi
criado em 1954 para burlar a censura dos norte-americanos que impediram os
japoneses de falar sobre as bombas atômicas de Hiroshima e Nagazaki. O monstro,
surgido de um vazamento de uma usina nuclear, era uma criativa metáfora da
morte, da destruição e do luto sofridos pelos habitantes da terra do sol
nascente.
É perceptível, então, o esforço de toda a produção em
criar um bom produto que vá além da diversão e que satisfaça não só os fãs do
monstro, mas também os fãs de filmes-catástrofe, os cinéfilos e o espectador
comum que vai ao cinema em busca de um entretenimento de qualidade. O
elenco de nomes de peso como Bryan Cranston, Juliette Binoche, Sally Hawkins,
David Strathain, Ken Watanabe e os jovens Aaron Taylor Johnson e Elizabeth
Olsen demonstra o interesse de bons atores pelo filme que, certamente, viram no
roteiro um vislumbre de boa ideia. A fotografia escura, sombria e, por vezes,
esfumaçada, em tons de cores que confundem o monstro com os prédios e as
pinceladas de vermelho que reforçam a evocação de um mundo apocalíptico crível é
bastante interessante. O esforço também pode ser notado na construção de cenas
que, se não entram para a história do cinema, ao menos são empolgantes,
divertidas e bem construídas. A descida dos paraquedistas numa cidade desolada,
o ataque ao trem que conduz uma ogiva, a destruição no Havaí numa referência
clara aos icônicos filmes B e a chegada de Godzilla a São Francisco são
exemplos de boas cenas que aliam efeitos especiais, emoção e diversão.
Há ousadias atípicas ao cinema hollywoodiano como a falta
de um protagonista evidente. Especificamente, ninguém carrega o filme nas costas. Nem
o próprio monstro que intitula o filme, fato que tem gerado numerosas críticas
ao trabalho do diretor novato Gareth Edwards do qual reclamam que o monstro é
coadjuvante do próprio enredo. A falta de um protagonista, apesar de ser uma
aposta arriscada, é curiosa e não atrapalha tanto quanto a montagem irregular do
longa-metragem. Este sim, um problema que interfere diretamente no ritmo.
Algumas cenas surgem isoladas dentro da narrativa e não são bem alinhavadas ao
roteiro como um todo. Há ainda furos narrativos problemáticos que incomodam o
espectador mais atento como, por exemplo, a iluminação das cidades atacadas que vai e
volta o tempo todo ou as soluções fáceis quando crianças e animais estão em
perigo. Mas, ok. Sejamos mais leves nas críticas, estamos falando de um filme
hollywoodiano e não de uma obra felliniana.
Transplantado pela segunda vez para a cultura
norte-americana e apesar dos esforços empreendidos na realização da
obra, Godzilla não esconde sua maior verdade: é um grande filme B de luxo. Tudo
é muito bem pensado, mas não escapa aos rudimentos do passatempo mais fugaz. Isso
fica evidente quando o drama familiar da primeira parte se dissipa totalmente
para dar espaço ao descarado MMA de monstros que toma conta da parte final. Uma
garota ao meu lado, durante a exibição do filme, se queixava ao namorado em tom
de enfado: “Que droga! Cadê o monstro que não aparece?” Pois é, Godzilla é um
longa-metragem de mais de 2 horas e o bicho só aparece depois de 1h de
projeção. E o público de hoje, em sua maioria, não está a fim de ver
entrelinhas narrativas criativas, originais ou históricas. O público de hoje, e
principalmente o público-alvo de filmes como este, quer ver tiro, porrada e
bomba. Pancadaria é o que importa.
É o nosso
sentimento anárquico, numa concepção mais ampla da palavra, que é incitado (e
excitado) o tempo todo na projeção do filme. Sabe aquela história de lançar um
homem contra um leão no Coliseu diante de uma plateia vibrante e sedenta por
sangue? Pois é, esse é o sentimento que domina o longa-metragem e que está presente na
humanidade até hoje. Observemos as lutas de MMA que fazem tanto sucesso na
televisão, as rinhas de galos e cães que acontecem às escondidas no interior de
várias cidades, as touradas na Espanha ou mesmo a moda dos linchamentos em
praça pública que tem tomado conta dos noticiários. Apesar de cada uma dessas
situações terem propósitos e origens distintas, o que se desnuda em todas é a
sedução lasciva pela violência sangrenta. Você pode até discordar, caro leitor,
mas lembre-se de sua infância. Das brincadeiras um tanto cruéis com as quais se
divertia. Aquela criança ainda vive em você, só foi lapidada com o tempo, ou não. A violência habita em nós de diversas maneiras e o cinema sabe disso
e joga muito bem com isso. Não é à toa, que o público pareça somente despertar
para a história quando o ringue de monstros começa. Quando isso acontece são
urros, aplausos e gritos eufóricos. Drama humano? Para que isso? É chato.
Certamente diriam alguns dos meus companheiros de sala de cinema.
Assistindo Godzilla, e pensando sobre esse fascínio
exercido pela violência no público, não pude deixar, como brasileiro, de fazer uma breve analogia
com os Black Blocs que representam, de uma forma geral, esse nosso lado mais destrutivo. (Daí,
o título engraçadinho desta postagem). Aí, você me pergunta: mas o que tem a ver uma coisa
com a outra? Talvez, querido leitor, haja mais do que possamos imaginar. Sei
que os Black Blocs têm uma ideologia que justifica os seus ataques, mas no fundo,
creio eu (e você pode discordar), o que impera nesses comportamentos, de fato, é
o nosso mais arraigado instinto de violência. Empreendemos violência por motivos políticos acreditando em mudanças, mas o que, inevitavelmente, se sobressai é a nossa raiva furiosa que está sempre pronta para emergir na forma de caos
e destruição. É exatamente esse o raciocínio que Godzilla segue. Uma força
bruta que hiberna e só desperta porque tem um motivo. (Não pude deixar de
lembrar da hashtag mais célebre dos últimos tempos: “O gigante despertou”). A
destruição que o monstro causa vem justificada tanto quanto possa ser
justificada a ação violenta dos Black Blocs. Agora, na nova versão, o
monstrengo é um predador, ou seja, ele precisa matar outros monstros para
restaurar o equilíbrio da natureza. Ele destrói e mata na intenção de estabelecer a
paz, não sem antes provocar uma “pequena” bagunça. Godzilla, em resumo, é um vândalo, palavra que caiu na boca do povo e que vem sendo utilizada com
recorrência pela mídia em geral, principalmente, quando há investida dos Black
Blocs pelos centro das cidades.
A motivação de Godzilla, no entanto, atenta para um erro
narrativo biológico, mas que gera uma reflexão bastante curiosa. A maioria dos predadores mata outro animal com o intuito de se alimentar, não matam por matar. O
homem, sim, faz isso. Dessa vez, o descomunal bichano carrega uma alma humana que engloba tudo de bom e de ruim que isso possa significar. Na minha opinião, a representação mais marcante que o Godzilla de 2014 faz é a que
está nos anseios da plateia de cinema que, tacitamente, sedenta por doses de
violência, vai à uma sala escura para assistir pancadaria, destruição e caos e, por fim, se o filme dialoga com o público contemporâneo mundial, como dialogava com o
Japão do pós-guerra, esse diálogo está na quase confidência de que a linha imaginária que separa monstros de humanos é cada vez mais tênue. (E desconfio que nunca
tenha existido). Isso fica claro numa cena em que Godzilla, exausto da luta,
desaba lentamente sobre prédios e, chegando ao chão, seus olhos fitam os olhos
de um dos personagens humanos da história. Homem e monstro se reconhecem e, ali,
por segundos, se tornam um só.