Muito
antes de estrear nas salas de cinema, quando ainda se encontrava em filmagem,
“Noé”, novo trabalho do cineasta Darren Aronofsky, vinha marcado sob o rótulo
de polêmico. Antes mesmo de sua premiere, países como Bahreim, Catar e Emirados
Árabes já tinham vetado a exibição do filme em seus
territórios. A argumentação contra a obra era uma só: “Noé” deturpava a milenar
história bíblica. Não é difícil compreender toda a polêmica em torno do
longa-metragem, afinal, estamos falando do livro mais célebre da história do
mundo. A Bíblia, que vem acompanhada da alcunha de livro sagrado, manteve ao
longo de séculos seu poder de influência no imaginário dos homens. E é óbvio
que vaguear sobre suas páginas, com alguma liberdade de contestação, é visto,
do ponto de vista religioso, como algo condenável. Assim sendo, não foi nenhuma
surpresa que em uma pesquisa feita nos EUA, 98% do público que assistiu ao
filme emitiu opinião negativa contra a produção, alegando ter sido um erro a
modificação da narrativa original. Logo, conclui-se: o que imperou foi a
opinião religiosa e não a apreciação artística.
No entanto, Darren Aronofsky, que dirigiu e escreveu o
filme, não tinha como objetivo que seu trabalho
fosse visto como um filme religioso na concepção stricto sensu da
palavra. O projeto faz parte de uma HQ, criada pelo próprio diretor, na qual ele recria o universo do personagem do Velho Testamento. O filme é só um desdobramento desse projeto. E por isso, há um olhar diferenciado e ampliado para a trama apocalíptica, como ocorre em toda recriação. Portanto, para apreciar uma obra como esta, é preciso, antes de mais nada, vê-la
como arte. Foi dessa confusão entre o que é do âmbito da arte e o que é da esfera
da religião que proliferaram a maior parte das críticas negativas direcionadas à produção. Não quero dizer com isso que “Noé” seja um excelente filme, pelo
contrário, trata-se de um produto mediano, mas que, em partes, revela-se
bastante interessante. Ao reimaginar a história do homem incumbido de salvar a
humanidade de um dilúvio devastador, o cineasta utilizou-se de toda liberdade
criativa e inventividade para entregar uma reimaginação do mundo de Noé, baseada no
enredo original e não uma versão literal. Ou seja, aqui, estamos falando do Noé
de Aronofsky. Estamos discursando sobre uma adaptação, que pode ou não ser fiel ao texto- base.
A Bíblia como uma narrativa lacunar e cheia de dubiedades
permitiu que o homem, ao longo dos tempos, interpretasse suas histórias. Mas,
para os paladinos da verdade que insistem em deter a palavra única nas vozes
com que berram em seus templos, a Bíblia parece um livro unívoco. Pensar dessa
forma é tornar nulas as belas metáforas existentes nas escrituras e que, se não são
verdades absolutas, ao menos encerram reflexões sobre a condição humana. Foi exatamente nessas lacunas deixadas pela Bíblia que Aronosfky enveredou
artisticamente, criando e recriando de acordo com a sua imaginação. E nisso
não há pecado algum.
Numa leitura da história original da arca de Noé, que
aparece de forma episódica no Gênesis, e imbuídos de algum espírito de
curiosidade, é provável que algumas dúvidas surjam e nos
façam questionar, por exemplo, como ele construiu a arca de proporções
gigantescas sem conhecimentos náuticos prévios? Ele teria recebido ajuda para
isso? Quem teria ajudado? E se houve ajuda, por que essas pessoas não foram
salvas do dilúvio? Outra questão: como os animais sobreviveram sem que
atacassem uns aos outros? Essas são questões que o Bíblia não responde e serão
perpetuadas pela eternidade. Por motivos de coerência da narrativa
cinematográfica, Aronofsky tenta encontrar algumas soluções para as questões
acima, mas com isso não quis, em momento algum, encontrar uma verdade inequívoca.
Trata-se apenas de um exercício imaginativo e isso, temos de convir, é próprio da arte.
O Noé da Bíblia é descrito como “um homem justo e íntegro
entre seus contemporâneos e que andava com Deus”. O Noé de Aronofsky, interpretado pelo ator Russel Crowe, não
deixa de ser como o descrito, mas é, acima de tudo, um homem cheio de
contradições, assim como todos nós. É humano, e por isso, capaz de atos de
solidariedade, como salvar e adotar uma menina ferida (personagem que problematiza
ainda mais a história), e, por outro lado, é capaz de atitudes egoístas como
deixar que uma outra moça seja pisoteada, somente para salvar o filho. O Noé de
Aronofsky é um pai de família que diante da missão de salvar a espécie humana
passa a carregar um imenso fardo. Quem não enlouqueceria diante do encargo de
salvar o mundo? O criador, ao delegar a um homem comum uma responsabilidade
sobre-humana, exige deste força descomunal, dedicação vigorosa e coragem descomedida, o que na prática não é
nada fácil.
A abordagem fílmica do mito bíblico fala ao homem de nosso tempo ao contar a história de alguém que busca por respostas mais claras e diretas do “divino” e, por não obtê-las, acaba por resvalar num fundamentalismo perigoso e excludente. Quantos “Noés” não estão por aí, dentro de igrejas mundo afora, prevendo catástrofes, castigos celestiais e interpretando à suas maneiras as escrituras sagradas e com essa atitude bradam aos ventos suas verdades absolutas argumentando com um conclusivo: “Está escrito na Bíblia”. O longa-metragem é uma reflexão bastante inteligente sobre o poder de interpretação humano tão deteriorado por nossa espécie. É por isso que a narrativa cinematográfica não pretende ser uma cópia fiel da original na qual o criador fala diretamente com a criatura. “Noé”, o filme, problematiza o comportamento humano em seu sentimento coletivo, em sua humanidade, em seu instinto de sobrevivência e em sua fé cega. Perceba como o personagem, no intuito de cumprir o proposto pelo todo-poderoso, acaba por se tornar, paulatinamente, um homem cruel e imponderável. Diante da epopeia orquestrada por um criador punitivo e caprichoso, o Noé de Aronofsky torna-se obcecado e beira à loucura, o que o leva a gestos violentos. Qualquer semelhança com os tempos atuais não será mera coincidência.
A abordagem fílmica do mito bíblico fala ao homem de nosso tempo ao contar a história de alguém que busca por respostas mais claras e diretas do “divino” e, por não obtê-las, acaba por resvalar num fundamentalismo perigoso e excludente. Quantos “Noés” não estão por aí, dentro de igrejas mundo afora, prevendo catástrofes, castigos celestiais e interpretando à suas maneiras as escrituras sagradas e com essa atitude bradam aos ventos suas verdades absolutas argumentando com um conclusivo: “Está escrito na Bíblia”. O longa-metragem é uma reflexão bastante inteligente sobre o poder de interpretação humano tão deteriorado por nossa espécie. É por isso que a narrativa cinematográfica não pretende ser uma cópia fiel da original na qual o criador fala diretamente com a criatura. “Noé”, o filme, problematiza o comportamento humano em seu sentimento coletivo, em sua humanidade, em seu instinto de sobrevivência e em sua fé cega. Perceba como o personagem, no intuito de cumprir o proposto pelo todo-poderoso, acaba por se tornar, paulatinamente, um homem cruel e imponderável. Diante da epopeia orquestrada por um criador punitivo e caprichoso, o Noé de Aronofsky torna-se obcecado e beira à loucura, o que o leva a gestos violentos. Qualquer semelhança com os tempos atuais não será mera coincidência.
Entretanto, apesar dos momentos reflexivos que gera, a
produção, vista pelo conjunto dos elementos que a compõe, descamba num filme
irregular. O texto que cria possibilidades discursivas interessantes e
relevantes é o mesmo que entrega cenas que impossibilitam resultados mais
satisfatórios, principalmente no que concerne ao entretenimento. Os anjos
caídos em forma de monstros de pedra, por exemplo, é uma das escolhas mais pueris do
roteiro. O mesmo acontece com a cena do reflorestamento mágico que serve como
uma fonte de madeiras para a construção da arca. Não quero dizer com isso que elementos fantásticos
sejam um problema, a própria história bíblica tem em seu cerne um
elemento fabular bastante acentuado. Mas escolhas como essas acabam por
enfraquecer a trama em suas questões mais sérias, que acabam se perdendo em meio a um clima escapista de fantasia
bobinha.
A culpa, no entanto, não pode ser creditada apenas na
conta do cineasta. Darren Aronofsky, depois da repercussão de “Cisne Negro”, teve a possibilidade de realizar um trabalho com mais grana
e, de quebra, voltar a um dos temas pelo qual mais se interessa, a obsessão
humana. Essa temática está presente, praticamente, em todos os seus trabalhos
desde “Cisne Negro” e “O lutador”, passando por “A Fonte da vida” até chegar
ao seu primeiro filme, o independente “Pi”. Porém, para realizar uma produção
de valores estratosféricos teve que abrir mão de sua verve autoral para dar
conta de algo mais comercial. É por se prender demais à cartilha do
entretenimento hollywoodiano que “Noé” acaba se tornando um filme ruim.
Embora fique aquela sensação de que poderia
render mais, o longa-metragem é oportuno pelas questões que traz em suas
entrelinhas narrativas e mesmo que isso esmaeça em meio a escolhas estapafúrdias,
não podemos deixar de nos ater a uma importante reflexão acerca da recepção da
obra pelo público, provocada pelos comentários relacionados ao filme que tomaram conta das redes sociais. Aqui, creio eu, há um
problema gravíssimo de apreciação artística de filmes. O público que lotou as
salas de cinema para ver a produção milionária, não conseguiu, em grande parte,
distinguir que, o que estava sendo representado ali, diante de seus olhos, era
arte e não religião. Isso se traduz numa evidência preocupante: o público perdeu
o sentido do que seja uma adaptação e, o pior, confunde o que vê nas telas com
a própria realidade. Não preciso nem dizer
que falta cultura, falta leitura crítica, falta espírito curioso e investigativo,
entre tantas outras faltas que deveriam ser supridas para que uma pessoa
pudesse apreciar uma obra de arte satisfatoriamente. O que, no caso do enredo aqui comentado, significa levantar pontos positivos e negativos de um trabalho
e não apenas falar mal por puro despeito blasfêmico.
O cinema norte-americano, é claro,
tem colaborado exponencialmente para que surja esse tipo de público desprovido
de massa cinzenta, afeito às emoções mais imediatas. E quando os conceitos de
arte e religião tornam-se indistintos, polêmicas fajutas surgem e Hollywood, conhecedora dessa falta de discernimento, tira proveito disso na forma de muitos milhões que enchem os cofres dos estúdios. Se “Noé” seguisse a história
bíblica a contento (como muitos desejavam) estaríamos diante de um filme
didático, o que faria dele apenas uma ilustração da história original e, por isso, viria ao mundo para nada dizer. Didático, limitado, acrítico e vazio é tudo o que o cinema jamais pode ser. Aliás, isso é tudo que nenhuma arte deve ser.