Este texto contém spoilers. Veja o filme e depois leia a crítica.
Paul Verhoeven ficou famoso em Hollywood no final dos
anos 80 e começo de 90 por sucessos comerciais como Robocop: O Policial do Futuro (1987), O Vingador do Futuro (1990) e Instinto Selvagem (1992), e fracassos
retumbantes como Showgirls (1995) e Tropas Estelares (1997) que, hoje, distanciados no
tempo, se transformaram em cults. Fora do universo dos poderosos produtores
americanos encontrou dificuldades pra filmar. Suas temáticas favoritas, a
violência e o sexo, evidentemente, encontraram grandes entraves para a
realização de suas ideias. A Espiã, uma produção belga-alemã de 2006, foi sua
última produção com relevância. Eis que agora, o cineasta, nascido na Holanda, encontrou em
território francês a oportunidade perfeita (leia-se: liberdade criativa) para realizar
o seu novo trabalho. Assim, Elle
surge no cinema marcado pelo rótulo de “filme polêmico”. Exibido no encerramento
do Festival de Cannes 2016, o longa-metragem foi ovacionado pela crítica, mas
não demorou muito para as plateias mais sensíveis começarem a tachá-lo como
“filme machista” ou “filme misógino”. A explicação para a divergência de
opiniões segue adiante.
Michèle Leblanc é uma executiva poderosa e criativa
da indústria de videogames. Comanda sua equipe, e sua vida pessoal, com mãos de
ferro e uma frieza assustadora. Mas essa informação somente chegará a nós,
plateia, depois da abertura quando, subsequente ao término dos
créditos iniciais, escutamos os gritos de uma mulher em desespero. Sem
preâmbulos ou concessões, o diretor abre a imagem com uma brutal cena de
estupro, assim mesmo, sem pedir licença, tanto quanto é o ato violento ali praticado. O que poderia seguir numa denúncia na delegacia, inesperadamente
resvala para outros caminhos. Ainda machucada, Michèle se levanta, recolhe os
cacos da destruição resultante da luta com seu agressor, toma um banho e finge que
nada aconteceu. Esse início, por si só, gera um grande estranhamento. A partir
de então, a projeção nos apresenta a uma numerosa quantidade de personagens que
circundam a figura feminina principal: o filho passivo-agressivo, Vincent
(Jonas Bloquet), e a raivosa e interesseira esposa dele, Josie (Alice Isaaz). A mãe idosa, Irène (Judith Magre),
que paga um garoto de programa, Ralf (Raphäel Lengret), para não se sentir sozinha.
O ex-marido, Richard (Charles Berling), que se sente fracassado na carreira de
escritor mas, ainda assim, tenta conquistar mulheres com seu suposto talento. A melhor amiga e sócia, Anna (Anne Consigny), cujo marido Robert
(Christian Berkel) a está traindo às escondidas e, por fim, o vizinho boa
gente, Patrick (Laurent Lafitte), que desperta o interesse sexual de Michèle e, aparentemente, está feliz e bem realizado com a esposa católica Rebecca (Virginie
Efira). Cada um desses indivíduos, por menor que seja a participação, tem a sua
relevância no enredo e estão todos muito bem conectados ao longo das 2 horas e
10 minutos de duração do filme.
O pai da protagonista, que surge como um passado do qual
ela quer se esquecer, acrescenta tanto à trama que, por um momento, até acreditamos que o sangrento episódio ficcional, ocorrido nos anos 70, de fato, aconteceu. Aliás, fazia tempo que eu não via um filme que utilizasse tão bem o recurso do flashback. A própria cena do estupro é resgatada em dois outros momentos da projeção, sendo uma de rememoração, por meio de um elemento bastante marcante, o miado do gato; e a outra, de imaginação, quando a personagem tenta refazer na memória como ela gostaria que a situação terminasse, caso vencesse a luta contra o seu violador. Desse jeito, vislumbramos o funcionamento da mente diante de um trauma em um constante processo de repetição. Verhoeven, em nenhum momento, julga suas criações, pelo contrário, sem
pudores, revela suas facetas mais detestáveis, trazendo à tona a mediocridade, a
arrogância, a ignorância, a covardia e a vaidade humanas. Um das sequências mais
importantes é quando todos estão reunidos à mesa durante uma cerimônia de
Natal. Até ali, já conhecemos um pouco de cada um deles e reconhecemos
suas fraquezas e seus fingimentos. A crítica que se deseja fazer, de forma bastante irônica, fica ainda mais
contundente quando a encenação ocorre sob a fachada cristã. Não há como negar,
trata-se de uma reflexão sobre a hipocrisia e a moralidade excessiva de nossos tempos que, tomando a decisão de jogar para debaixo do tapete aquilo que não compreende, acaba por gerar desvios de comportamentos bastante agressivos.
Adaptado por David Birke do romance “Oh...” de Philippe Djian, que também escreve o roteiro, Elle faz um inventário de seres humanos cujo desejo é a maior força motora da existência. Não é à toa que o mundo animal
surja à espreita ou, repentinamente, em vários momentos da história: zebras correm numa imagem da televisão, um pássaro se fere ao se chocar contra uma vidraça, um cervo cruza o caminho de um automóvel em movimento, animais mortos são
mencionados pela protagonista numa conversa quando ela conta a tragédia que
viveu na infância, e não podemos nos esquecer do belíssimo gato que é tão
personagem quanto os humanos. É ele, por sinal, que assiste, impassível
(antes mesmo do espectador), a cena do estupro. A animalidade humana revela-se
latente, pronta a se materializar quando menos se espera. Lembremos
que uma das fotografias de divulgação da produção é da protagonista
confrontando um gato (foto acima), numa espécie de cotejo entre mundos distintos nos quais ambos possuem seus afetos e monstruosidades. E o miado do gato, já mencionado nesse texto, serve como dispositivo de conexão entre esses dois universos.
Isabelle Huppert, num papel que poucas atrizes
aceitariam fazer, confere à sua interpretação camadas profundas cujo alcance é intangível. Não sabemos ao certo o quanto ela
seduz ou é seduzida no perigoso embate que realiza com seu algoz. Também temos dúvidas sobre o quanto de psicopatia ela herdou do pai. A cena final com o filho
adiciona ainda mais incertezas sobre a sua conduta. Nesse sentido, é de grande
simbolismo quando o vizinho Patrick, durante uma tempestade, oferece ajuda à empresária para fechar as janelas da residência, e ela responde que na
casa devem haver mais de vinte janelas. Trata-se de uma sutil metáfora da complexidade humana: Michèle Leblanc é uma mulher com vinte janelas abertas e algumas, evidentemente, fechadas. Por mais que a investiguemos, pouco a decifraremos. Assim, é mais que acertada a escolha do título construído apenas com um pronome. (Elle, em francês, significa Ela). Dessa forma, ao associar a casa com a personagem, não me furtei de fazer comparações: a Michèle, de Isabelle Huppert, se alinha à Clara, de Sônia Braga, em Aquarius. São mulheres que, longe de serem vítimas, assumem uma postura de perscrutação de si mesmas, sondando os seus desejos e os seus medos. São duas mulheres que não recorrem à polícia para resolverem seus problemas, que não são nada fáceis de serem resolvidos sozinhos. Aqui, não se trata apenas de orgulho, mas sim de tentar compreender por meios menos maniqueístas, o mundo cheio de ambiguidades com o qual interagem. É maravilhoso que a arte cinematográfica, em 2016, tenha nos presenteado com essas obras, grandes exercícios de observação do mundo feminino por lentes nada convencionais.
Cinematograficamente, Elle é estupendo. A fotografia com palheta em tons de marrom, aproveita muito bem as luzes e as sombras dos cenários, conferindo uma ar de conforto contraditório às perversidades presenciadas. (A elite sabe esconder seus podres como ninguém). Os enquadramentos sugerem claustrofobia aos espaços filmados nos dando a impressão de se estar sempre na iminência de um novo ataque. A
montagem rápida e pontual conduz a trama com bastante movimentação de cena. A
direção, segura do que quer, desconstrói os clichês dos filmes de suspense. Estão lá,
o gato que dá o susto proposital, o homem mascarado cuja identidade precisa ser
descoberta, os suspeitos e as pistas falsas. Na intenção de contar uma história
que nunca pretende ser mais do mesmo, o roteiro é um
exercício de gênero cinematográfico, ao mesmo tempo em que entrega algo para além do suspense proposto. Diálogos rápidos e precisos, cheios de intenções que revelam mais do que aquilo que é dito, permeiam toda a narrativa. Como, por exemplo, a frase
genial “A vergonha não é um sentimento forte o suficiente a ponto de te impedir
de fazer nada”, que pode ser entendida como a tônica de toda a trama. Também é bom ficar atento ao final quando Rebecca diz “a gente acumula coisas”, cujo sentido não é só falar de
ajuntamento de objetos e coisas, mas também sobre nossos acúmulos emocionais
que podem promover atitudes incompreensíveis. Assim sendo, o estupro, no filme, surge como o mais alto nível
dessas insanidades.
Por isso é compreensível que muitas pessoas tenham agido com estardalhaço diante de um longa-metragem tão diferente e dúbio quanto este.
Elle poderia ser um filme de crime, de vingança, de culpados, de vítimas e
vilões, mas não é. É uma obra de provocação que vira do avesso algumas convenções, e Verhoeven faz isso
com maestria. Um dos papéis primevos da arte é o de balançar o senso comum e
fazer com que o apreciador - no caso do cinema, o espectador - consiga se
colocar noutras posições distintas das que estão dadas/impostas. Em um mundo no
qual a indústria cultural transformou a mentalidade do público a ponto de fazê-lo acreditar que o papel majoritário da arte é o entretenimento e o escapismo, o estranhamento provocado por Elle é mais que
bem-vindo. É preciso senso crítico apurado para perceber que, o que está em exibição na tela, não se trata de misoginia e nem de machismo, ainda que fale desses temas. É como arte que Elle deve ser julgado, não como panfleto contra ou favor de causas humanas. E se a arte incomoda é porque disse mais do que deveria dizer e, na
minha opinião, é melhor que se diga. Anotem: Elle é a obra-prima de Paul Verhoeven e será um daqueles filmes discutidos, estudados e revisitados ad infinitum.
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Paul Verhoeven dirige Isabelle Huppert